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1.5 Memória e Enunciação

1.5.2 O Enunciado e sua materialidade repetível

1.5.2.1 Em torno da Formação Discursiva

Estaremos entendendo o conceito de formação discursiva (FD) a partir de aproximações e distanciamentos entre as noções propostas por Michel Pêcheux e Michel Foucault. De forma resumida, delinearemos inicialmente a maneira como ambos conceberam tal conceito em momentos específicos de seus projetos. Em seguida, daremos enfoque às reformulações empreendidas em especial por Pêcheux no que diz respeito a esse conceito.

O conceito de FD, já re-interpretado por Pêcheux, mas não pela última vez, em Les

Vérités de La Palice (1975) – momento de primeiras mudanças teóricas

fundamentais –, ainda mantém vínculo com as propostas althusserianas: “a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.)”. (PÊCHEUX, 1988, p. 160). Logo, pode-se facilmente concluir dessa definição de FD que Pêcheux tende ainda a concebê-la segundo discursos de classe ideologicamente marcados. Somente a partir do final dos anos sessenta, depois de sucessivas discussões e autocríticas efetuadas pelo grupo em torno de Pêcheux, que a noção de FD recebe profunda reavaliação. Particularmente, quando as teses da interpelação ideológica e luta de classes se vêem enfraquecidas e a problemática da heterogeneidade passa a ser “a bola da vez”. (Rever comentários mais específicos em torno dessa questão em 1.2.1).

Retomaremos as últimas reformulações pecheuxtianas em torno das FDs mais a frente, assim que abordarmos como Foucault concebia o conceito de FD em seus estudos, mais precisamente em L’Archéologie du Savoir (1969), a obra da qual os principais conceitos foucaultianos ligados à teoria do discurso emergiram, como derivados da articulação entre a discussão em torno do conceito de história e a sua relação com o método arqueológico, ambos sustentados a partir do princípio da

descontinuidade.

Foucault (1969) conceitua FD teórico-metodologicamente, vendo-a como um conjunto de enunciados submetidos a uma regularidade e a uma dispersão. Ou seja,

um grupo de enunciados pode ser analisado a partir desse paradoxo, que pode descrever a singularidade e a dispersão dos sentidos produzidos. Dessa forma, através de uma espécie de tensão constitutiva, detecta-se em uma série de enunciados uma regularidade (uma certa ordem geral) e uma dispersão (ruptura, desvio, diferença, heterogeneidade). É a partir desse paradoxo que deriva o conceito foucaultiano de FD, pautado sobre o princípio de repartição e de dispersão de enunciados:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação

discursiva (FOUCAULT, 1995, p. 43).

Com isso, pode-se perceber que Foucault não nega a unidade que se pode formar em grupos de enunciados, mas questiona a evidência dessa unidade, muitas vezes tomada como dada, à medida que propõe a descrição das dispersões. Certamente não se trata de encará-las como caóticas ou aleatórias. Sua proposta de descrição funda-se na possibilidade de se buscar os índices de regularidade, apesar das dispersões.

Daí a idéia de descrever essas dispersões; de pesquisar se entre esses elementos, que seguramente não se organizam como um edifício progressivamente dedutivo, nem como um livro sem medida que se escreveria, pouco a pouco, através do tempo, nem como a obra de um sujeito coletivo, não se poderia detectar uma regularidade: uma ordem em seu aparecimento sucessivo, correlações em sua simultaneidade, posições assinaláveis em um espaço comum, funcionamento recíproco, transformações ligadas e hierarquizadas (FOUCAULT, 1995, p. 43).

Para Foucault, enfim, as fronteiras de uma FD são fundamentalmente instáveis, constantemente atravessadas por dispersões. Por conta delas (das dispersões), que uma FD é constitutivamente marcada pelo heterogêneo, pois conflitos, contradições, lacunas, deslizes são comuns em seu interior. Portanto, o discurso, para Foucault, não tem uma estrutura estável e acabada, mas está em constante construção, enfaticamente colocado sob o signo da heterogeneidade.

Há um certo consenso entre os estudiosos do discurso quanto ao fato das idéias foucaultianas terem subsidiado os estudos de Pêcheux, colaborando com o projeto

pecheuxtiano de reformulação das bases da AD francesa. Entretanto, não entraremos, no momento, no mérito de discutir, por exemplo, as contribuições que a noção foucaultiana de FD teria trazido aos estudos pecheuxtianos sobre esse conceito. Pode-se encontrar notável dedicação sobre esse tema em trabalhos de autores franceses como Denise Maldidier (1990)7 e Jean-Jacques Courtine (1981)8. Dois lingüistas que participaram ativamente do grupo de Análise do Discurso fundado por Pêcheux. Apesar de todas as discussões, aparentemente unânimes, em torno das influências foucaultianas sobre o conceito de FD desenvolvido por Pêcheux, Baronas (2004) alerta para o fato de o conceito de FD em Pêcheux já ter sido anunciado antes mesmo da publicação de Arqueologia do Saber, de Foucault (1969), quando o conceito foucaultiano supostamente teria aparecido pela primeira vez. Segundo Baronas, “o conceito de formação discursiva, embora não esteja desenvolvido, está anunciado desde 1968, data da publicação do artigo de Culioli, Pêcheux e Fuchs” (BARONAS, 2004, p. 53), outro texto de Pêcheux, Lexis et

metalexis: les problemes des determinants9.

Controvérsias a parte, quanto à procedência do conceito de FD e quanto ao fato de ela ter sido problematizada, re-interpretada por Pêcheux, o que nos interessa frisar, em torno da noção de FD assumida aqui, é o fato de ela ter passado a incidir sobre a interdiscursividade, onde se focalizam os estudos da heterogeneidade discursiva, que colocam em evidência que uma FD será sempre atravessada, por exemplo, por uma contradição. Segundo essa perspectiva, as FDs passam a ser, enfim, constituídas pela contradição, são heterogêneas por constituição, apresentam fronteiras fluidas e reconfiguram as suas relações continuamente. Tomar a FD no interior da heterogeneidade é deixar de referi-la a um exterior ideológico, como se procedia no início dos trabalhos em AD, e passar a buscá-la na dispersão dos lugares enunciativos do sujeito. Uma FD será compreendida como um “jogo de princípios reguladores que formam a base de discursos efetivos, mas que permanecem separados deles” (BARONAS, 2004, p. 54). Com isso, podemos pressupor que, ainda segundo Baronas,

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Tradução brasileira de Eni P. Orlandi. MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (Re)ler Michel Pêcheux hoje. Campinas, Pontes, 2003.

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Tradução brasileira provisória de Sírio Possenti e texto de circulação restrita. COURTINE, J-J. Análise do discurso político: a propósito do discurso comunista dirigido aos cristãos. Langages, n. 62, 1981.

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palavras, expressões e proposições adquirem seus significados a partir de determinadas formações discursivas nas quais são produzidas (os elementos lingüísticos selecionados, como eles são combinados) e, assim o sentido se torna um efeito sobre um sujeito ativo, e não uma propriedade estável (BARONAS, 2004, p. 54).

Quanto às mudanças ocorridas especificamente ao conceito de FD de Pêcheux, Gregolin (2006, p.155-6) relata apontamentos fundamentais de dois estudiosos envolvidos com os estudos do discurso. O primeiro deles é Courtine (1981), que considera a noção pecheuxtiana “muito fechada”, propondo considerá-la a partir das propostas foucaultianas, “como fronteiras que se deslocam”. O outro é Guilhaumou:

Analisando a mudança no conceito de “formação discursiva”, produzida pelas transformações teóricas e políticas da Análise do Discurso, Guilhaumou (2002)10 afirma que “esse conceito produziu mais efeitos sobre o devir da Análise do Discurso do que qualquer outra noção desse campo de pesquisa” (GREGOLIN, 2006, p. 156. Ver nota 115).

Ainda segundo Gregolin (2006), pode-se constatar em um texto de Pêcheux, Lecture

et Mémoire: Project de Recherche (1981)11, observações feitas pelo próprio autor sobre tais transformações, onde ele faz, em particular, uma síntese desses novos rumos que os trabalhos desenvolvidos dentro da AD tomavam, diante das mudanças na época provocadas por questionamentos externos e internos à própria AD, particularmente questionamentos de cunho teórico e político.

Ao estabelecer as bases epistemológicas desse projeto, ele (Pêcheux) deixa claro seu afastamento das posições althusserianas e sua aproximação com a “nova história”, com Bakhtin e Foucault. Primeiramente, Pêcheux propõe tratar do “estatuto social da memória como condição de seu funcionamento discursivo na produção e interpretação textual” (Gregolin, 2006, p.156).

Pêcheux afirma ainda em seu último texto, L’Inquietude du discours (1990)12, que

a noção de “formação discursiva”, emprestada de Foucault pela análise de discurso, derivou muitas vezes para a idéia de uma máquina discursiva de assujeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna e, por isso,

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GUILHAUMOU, J. Les historiens du discours et la notion-concept de formation discursive. Récit

d’une transvaluation immanente. Segundo Gregolin, trata-se de uma cópia mimeografada. 11

Projeto de pesquisa proposto ao CNRS, que permaneceu inédito e foi recolhido por D. Maldidier em Pêcheux, M. L’Inquietude du discours. Textes choisis par D. Maldidier. Paris: Cendres, 1990. Tradução de Gregolin e de circulação restrita.

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mesmo, voltada à repetição: no limite, essa concepção estrutural da discursividade desembocaria em um apagamento do acontecimento, através de sua absorção em uma sobre-interpretação antecipadora (Pêcheux, apud Gregolin, 2006, p.159, grifo nosso).

Essa afirmação de Pêcheux refere-se claramente à crítica ao conceito de FD empregado no interior da AD, interpretado a partir da perspectiva marxista- althusseriana sustentada sob a noção de luta de classes. No entanto, na medida em que o autor passa a conceber o discurso intrinsecamente como estrutura e acontecimento, as idéias iniciais que sustentavam os trabalhos em AD, de “assujeitamento radical” e de “máquina discursiva”, tornam-se necessariamente insustentáveis. Em decorrência dessa mudança de direcionamento conceitual, o autor relativiza ambas as noções, afirmando enfim que

não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido performativo do termo – isto é, no caso, por um “erro de pessoa”, isto é, sobre o outro, objeto da identificação (Pêcheux, 1990, p. 56-57).

Em suma, à medida que os trabalhos passam a se aproximar das teses foucaultianas e, em decorrência, a primar pela heterogeneidade, tanto em termos conceituais quanto em termos metodológicos, as análises voltam-se para a problemática em torno das redes de memória, como Pêcheux já anunciava desde 1980.

Para tanto, o trabalho de análise se resumirá em refazer a trama discursiva construída historicamente em torno da mulher, que se situa na ordem da memória, que, por sua vez, remete o dizer ao interdiscurso.