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Seja em Porto Alegre, São Paulo ou Paris, esta ambiência de fruição es- tética dos mercados de rua está fundada na multiplicidade de formas as quais os simbolismos cíclicos do alimento podem assumir em arranjos sociais que falam da própria vida urbana, em suas diversidades e complexidades. Deri- vam das adesões de seus habitantes a diferentes conjuntos de imagens e de maneiras de tecer este laço social. Perpassando os arranjos sociais e a fruição estética das feiras etnografadas, pode-se sugerir que esta dimensão simbóli- ca elabora pistas sobre a “duração” (Bachelard, 1988) dessas práticas sociais no interior de uma vida urbana, narrando nas ambiências, gestos, itinerários (Eckert e Rocha, 2005), nas artes de fazer de seus habitantes, os arranjos so- ciais a partir dos quais o corpo coletivo se produz e se dá a ver. Para Michel Maffesoli (1988) as ruas são o habitat da coletividade, nos quais toma expres- sividade em diversas feições o desejo de participação em um corpo coletivo que carrega “as imagens e símbolos de uma civilização” (Durand, 2001). Ima- gens e símbolos que estão veiculados pelos gestos ordinários e cotidianos de fazer a feira, por exemplo. Neste sentido, compartilhar de uma determinada ambiência de mercado, onde a matéria do alimento e os gestos que engen-

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dram são o elemento principal do voulour-vivre coletivo, faz parte de celebrar a vida cotidiana como expressão de uma cultura. Estes fenômenos moventes – que colocam a vida social em movimento – são integradores do indivíduo em uma “globalidade cósmica” (Maffesoli, 1996) na medida em que constituem uma dimensão sensível da vida social.

Essa dimensão sensível que leva Gaston Bachelard, como um habitante da cidade de Paris, a declarar que o Marché Maubert “est mon petit villageest mon petit village”7. É esta ambiência relacionada aos sentidos compartilhados coletivamente, crian- do relações afetivas entre as pessoas e com o próprio espaço, que transforma o Marché Maubert, situado em umcoincoin do Boulevard Saint-Germain, no petit petit village

village de Bachelard, ao mesmo tempo em que o vincula simbolicamente aos mercados de rua de Porto Alegre ou São Paulo, por exemplo. A dinâmica de uma “vida das ruas” (Sansot, 1985) que se transformam nos espaços de compra e venda, de trocas sociais onde os próprios objetos da troca não permanecem os mesmos: os alimentos pouco a pouco amadurecem, se transformam, o di- nheiro e as moedas mudam constantemente de mãos, sofrem os efeitos deste manuseio. Nessas cidades, aparentemente tão diversas (Porto Alegre, São Paulo e Paris), a circulação do alimento, os simbolismos que veiculam e os gestos que demandam se fazem presentes sob diferentes feições na vida das ruas, em que se celebra a dimensão cósmica de um viver urbano coletivo.

Na investigação desta ambiência de mercado compartilhada por seus feirantes e frequentadores, a interrogação que orienta toda a pesquisa repou- sa principalmente sobre o fato de que estas diferenças na composição estética do espaço falam na verdade das formas como um mesmo conjunto de imagens – no caso as imagens relacionadas ao alimento e sua potência de narrar uma temporalidade cíclica – são elaboradas para conigurar o mercado enquanto um arranjo social da vida urbana. A estas diferentes “formas de expressão estética” (Rocha, 1994) adotadas pelos mercados de rua estão associados gestos e simbolismos comuns no sentido de um “trajeto antropológico” hu- mano. Não signiica que os mercados de rua sejam todos os mesmos, mas sim que são o resultado do agenciamento desses gestos e símbolos culturalmente, guardando, portanto, as formas expressivas particulares de cada sociedade.

As feições da ambiência do mercado de rua, fundadas nas imagens dos alimentos em grandes ou pequenas quantidades, que são organizados em cestos ou livremente em cima das bancas, referem-se à celebração de uma “regeneração periódica do tempo” (Durand, 2001) vivida pelos habitantes da

7. Durante entrevista realizada para o documentário Bachelard Parmi nous ou l’héritage invisible (Bringuier, 1972), Bachelard fala de sua experiência cotidiana no quartierem que vivia, nas proximidades da Sorbonne e de sua adesão ao marché Maubert. Quando assisti ao documentário já havia começado meu trabalho de campo nestemarché.

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cidade que aderem a estes espaços. Compartilhar desta ambiência e desfrutar dos prazeres que o alimento proporciona – concretamente e simbolicamente – signiica uma maneira peculiar de viver a cidade, de estabelecer laços, de se perpetuar cotidianamente. O mercado, nesse caso, marca uma condição tem- poral urbana calcada no “drama mítico da morte e do renascimento” (Durand, 2001) na forma como transforma o espaço da rua no cenário da ritualização deste drama. É claro que esta dimensão dos mercados como forma de rituali- zar o tempo não é universal, ou seja, não são todas as cidades que comportam ou aderem a este arranjo social. Da mesma forma, a adesão ao mercado não é feita por todos os seus habitantes. Trata-se aqui de reletir justamente sobre o mercado como um arranjo social e coletivo presente nas “cidades moderno- -industriais” (Velho, 1980) que ao se estabelecer cotidianamente nas ruas da cidade, coloca em movimento os simbolismos da circulação do alimento.

O fato de estar trabalhando aqui com os arranjos sociais de mercado em cidades diferentes e que passaram por “processos sócio-históricos” (Oliven, 2007) também diferentes que acabaram por inluenciar suas formas de viver, exige um distanciamento no sentido do não encompassamento destas cidades em uma mesma ritmicidade temporal. Segundo Ana Luiza Carvalho da Rocha (2007) as cidades brasileiras vivem o tempo na dinâmica de uma constante dissolução, que aparece representada nas transformações urbanas que asso- lam os espaços da cidade. Esta seria a marca de uma “estética da desordem” (Rocha, 1995) e do caos apoiada no refazer constante da vida urbana – pelos “processos de destruição e reconstrução” (Rocha, 2007) – onde “as paisagens urbanas no Brasil só podem se perpetuar caso seus habitantes as reconquis- tarem cotidianamente em seus sonhos e devaneios” (Rocha, 2008, p. 6). Nis- so, a cidade brasileira diferencia-se das cidades europeias. Para a autora, a sociedade brasileira é marcada por “um tempo descontínuo para a duração do corpo coletivo” (Rocha, 2008, p. 6) como expressão de si, o que não se dá com outras sociedades, que têm como marca temporal outras características. Aderindo a esta forma de pensar o tempo e a cidade, a proposta deste ensaio em reunir as imagens de mercado destas cidades – Porto Alegre, São Paulo e Paris –, e mesmo de tantas outras que habitaram os pensamentos da antropóloga durante a pesquisa, direciona-se justamente à emergência des- sa ritmicidade cíclica no interior da vida urbana para compreender o gesto humano de viver e pensar o tempo, nesta forma com que ele se apresenta nos arranjos sociais de mercado. Uma ritmicidade que é vivida e compar- tilhada no cotidiano dos habitantes da cidade e que, portanto, só passa a ser “compreensível” ao aderirmos a ela. É vivendo e compartilhando am- biências de mercado, aderindo aos simbolismos cíclicos dos alimentos que tenho condições, como antropóloga, de narrar estas imagens. Condição que deriva da realização de uma “etnograia de rua” (Eckert e Rocha, 2002), não apenas como possibilidade de inserção em campo, de descoberta desta vida

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cotidiana e de escuta do outro, mas principalmente também como parte deste arranjo social e coletivo urbano. Nesse caso, não resta dúvida de que foi a etnograia de rua que me possibilitou construir uma relação diferencia- da com os informantes desta pesquisa, revelada na adesão a circulação da palavra em determinadas bancas, ao perambular pelo mercado, na escuta atenta de suas sonoridades, a adesão enim a esta forma expressiva do cor- po coletivo urbano. Nesse caso, ter a etnograia de rua como uma da formas de se investigar a cidade, percorrendo seus recantos, reconhecendo lugares e pessoas, nos coloca diretamente em contato com uma “poética do cotidia- no” (Sansot, 1985) vivida por seus habitantes em todos os seus trajetos e fazeres mais simples.

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Flávio Leonel Abreu da Silveira Flávio Leonel Abreu da Silveira