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Observar as ruas das ilhas sempre marcou uma segunda ruptura com meu cotidiano na cidade. Se a partida do centro até a beira da estrada resgatava a travessia da água “embarcada” que ouvia dos narradores, a caminhada pelas ruas me inseria em um novo ambiente. Era um deslocamento lento e gradual de inserção nas pequenas ruas, nos becos, nas estradas de terra, nos quintais e casas em uma proximidade muito maior com os moradores, e em uma situ- ação de total desproteção perante seus olhos. Para olhar de perto, é preciso se deixar observar. Diferentemente do que descrevi da Ilha da Pintada, a Rua Nossa Senhora Aparecida, na Ilha Grande dos Marinheiros, propõe um trajeto de transição por diferentes formas de ocupação da ilha. Esta rua marca o co- meço do “lado norte da ilha”, que parte da estrada e segue 12 km em direção ao “inal” da ilha. No lado sul, a rua que segue até a ponta da ilha percorrendo apenas uns 2 km (Rua João Ignácio da Oliveira) apresenta terrenos e casas dos dois lados, sendo que vários destes pátios têm acesso ao Guaíba. Já a Rua Nossa Senhora Aparecida, partindo de baixo da ponte até o norte da ilha, tem em sua parte inicial uma densa ocupação de ambos os lados por casebres, além de gal- pões de reciclagem, armazéns, oicinas e o Clube de Mães, construções cada vez mais equipadas com cercas e muros. Porém, é neste trecho mais “apertado” da rua que as relações de vizinhança são mais intensas, no sentido dos encontros constantes e da relação das janelas e portas com a rua. Estar ali é ver e ser visto.Apresento aqui um trecho do diário de campo que escrevi em 2001, no qual descrevo a ambiência dessa rua, como espaço ísico e espaço de relações sociais:

“Caminhada pela Ilha Grande dos Marinheiros, Rua Nossa Senhora Aparecida, no meio da vila, após uma leve subida das águas. A mes- ma sensação de desconforto. Tarde de sábado. Pessoas nas janelas. Crianças jogando taco na rua. Cachorros, gatos, cavalos. Um grupo de vizinhos conversa em frente a um portão de madeira. Uma mu- lher está sentada numa velha lata enferrujada de tinta, improvisada como banco. Reparo na casa do casal que trabalha no galpão, bem enfeitada, recém-pintada, na beira do rio. Brincam comigo, me tes- tando – Veio olhar a pobreza hoje? Não respondi, apenas acenei. Essa tarde, queria apenas passar, como às vezes passava com a bi- cicleta, rápido, em direção à casa de um informante. Um dia de sol, quente e úmido. Os pátios das casas ainda estão muito embarrados. As pessoas improvisam caminhos com tábuas, para evitar afundar o pé na lama. As madeiras das casas ainda têm um aspecto úmido, molhado. E os telhados, alguns aproveitam o sol para arrumar. As crianças andam com os pés descalços, sob restos de madeira, plás- tico e terra molhada da última cheia. O cheiro do lixo acumulado nos quintais, misturado ao barro e à matéria orgânica, evapora com o calor, levanta do chão. Uma velha senhora lava os degraus da sua casa, e agachada, tira o barro, degrau por degrau. Um adulto joga

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com crianças, fazendo palhaçadas. De forma cortês, me espera pas- sar, para continuar o jogo sem me dar uma bolada. Sorri para mim, com um cumprimento de quem inge que se conhece de vista: Oh! Talvez ele me conheça mesmo, como muitos ali, que me reconhe- cem, sem que eu os conheça. Sinto-me nu sempre que passo nessa rua. O seu tipo de sociabilidade é completamente diferente do ano- nimato da multidão da rua, onde o reconhecimento é uma surpresa. Ali, se tem a cara e a vida conhecidas, e ter conhecimento (de pes- soas) é ter segurança por ali, como dizem. Reparo numa menina, em um quintal ainda bem embarrado, calçando um sapato de salto alto que tem o dobro do tamanho de seus pés. Ela caminha com diiculdade, eniando o salto no barro, e dá risada. Sinto-me assim, atrapalhado, como se usasse um sapato que não é o meu, afundan- do no barro fofo. Rua adentro. Passo pela casa de Laci. Ela me vê de longe, sorri, e convida para entrar. Retiro o tênis molhado e coberto de barro e entro de meias em sua casa. Apesar de me sentir um visitante, para ela eu também já era de casa.” (Devos, 2007, p. 38)

As interações nas ruas com os moradores evidenciavam a situação de pesquisa. Por vezes, era confundido com um iscal da prefeitura, ou um jor- nalista, quando fotografava a rua. Muitos anseios e temores dos moradores sobre a política ambiental apareciam nestas conversas. Quando lhes contava meu objetivo, e meus “conhecimentos” entre a rede de vizinhança, era iden- tiicado como o rapaz da “faculdade”. Então me contavam as últimas notícias – “Dizem que vão tirar essas casas aí. Área de risco, perto da estrada.” – “Diz que vão abrir uma rua aqui, vai passar o caminhão da prefeitura.”. Essas inte- rações não deixavam de evidenciar o lado “técnico” da pesquisa, da observa- ção das mudanças recentes na paisagem local, que me aproximava de outros pesquisadores (biólogos, geógrafos) que por ali também já trabalharam. Uma nova casa, um terreno que se dividiu em dois, uma nova cerca, alguém que se mudou, alguém que chegou. No entanto, era quando buscava a casa de al- guém, e ia parando para conversar e fotografar, ou mostrar as fotos da pesqui- sa já reveladas, que novos informantes eram conquistados. Alguns assumiam a igura do narrador (Eckert e Rocha, 2005) e me falavam, a partir de uma situação cotidiana (a água do rio que subiu a estrada, um cavalo que cruza o caminho, o vento que vem do sul) suas lembranças de quando ali “tudo era mato”, de como era sua infância ali ou de quando chegaram ao local.

É mais ao norte que essa rua, que passa a ser chamada de “estrada” pe- los moradores, vai deixando de ser ocupada de um lado ou de outro e vai dando mais abertura para a margem do rio ou para o banhado. Ainda está presente essa sociabilidade intensa dos encontros e do reconhecimento das pessoas e seus pertencimentos a redes sociais. Mas uma mudança é signiica- tiva. Em certo ponto, as casas se concentram apenas de um lado da estrada, e

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a estrada se apresenta como acesso ao rio do outro lado, conigurando uma “orla” como espaço de relações – é onde os pescadores deixam o barco, ven- dem ou trocam o pescado, é onde a Kombi do verdureiro atende à freguesia, é onde as pessoas se encontram para conversar, onde as crianças são vistas brincando, onde mulheres às vezes lavam roupa. Esse arranjo do uso da rua e da margem é algo semelhante ao que via na Rua Nossa Senhora da Boa Via- gem, na Ilha da Pintada, um “controle”, um “cuidado” com a rua como espaço comum de atualização das relações sociais. Esses ethos vão conigurando a rua e são mantidos por este arranjo.Frequentar essas duas ruas foi uma estratégia de inserção nestas redes de relações, o que me levou a conhecer não apenas os narradores ou “conta- dores de causo”, como eram indicados alguns “guardiões da memória” locais, mas também me permitiu perceber essas distinções entre os grupos locais e suas expressões no cotidiano. Assim, conheci muitos moradores que desempe- nhavam papéis sociais muito diferentes na Região Metropolitana (pescadores, barqueiros, papeleiros, religiosos, aposentados, trabalhadores assalariados), mas que se identiicavam pela mesma identidade de ilhero. Ilhero, no lugar do “ilhéu”, que muitas vezes é airmado pelos moradores mais estabelecidos (Elias, 2001) da Ilha da Pintada (pescadores, ex-donos de peixarias, etc.) traz uma ên- fase diferenciada em uma identidade apoiada na prática cotidiana (ilhero soa como papelero, capinero, barquero, carrocero, benzedera) do que na srcem étnica (muitas vezes o “ilhéu” é pensado como descendente dos moradores das ilhas de Açores que colonizaram cidades do RS). São essas categorias que se aproximam do que A. Moles e E. Rohmer (1982) deinem como ilheidade, a experiência fenomenológica do espaço da ilha, que não é o isolamento, mas a presença constante do limite da água, expressa na travessia cotidiana dessa fronteira e no retorno a um “refúgio” delimitado pelas águas. Nas ilhas, ocorre justamente esse arranjo diferenciado entre a terra, o mato e a água na conigu- ração desse cosmos, pois essas ilhas são 90% água e banhado e apenas 10% de faixa de terra. A forma como essa faixa de terra irá compor um espaço públi- co de relações entre os pátios, a beira d’água e o banhado terá uma inluência grande na forma como se dará essa experiência da margem.

Era nessa parte mais ao Norte da ilha dos Marinheiros, quando a rua deixava perceber a margem e o banhado, e na área menos “arrumada” da Rua Nossa Senhora da Boa Viagem, em que o limite entre a água e a terra se altera- va constantemente, que a dimensão mais fantástica da ilha era mais presente nas narrativas. Uma paisagem diferente, referida por alguns moradores da Ilha dos Marinheiros como uma parte “assombrada”. Nesses locais a beira do rio, as matas, os canais de navegação ganham importância como um espaço liminar, nem o espaço doméstico do pátio e da casa, nem o espaço público de circulação das estradas e da ponte, ou das ruas da vila. Um espaço “natural” de importância para a vida na ilha, em que os narradores se descreviam à mercê

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das manifestações dessa paisagem fantástica, imersos no cenário pleno de cores, de cheiros, sons e seres do local. O que se constata hoje é uma redução dessa dimensão “fantástica” do uso da ilha, e da margem, com as recentes transformações na forma de ocupação dos terrenos, que é percebida como parte de uma degradação da qualidade das águas e da “natureza” da região.