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A oportunidade de gravar um documentário2 em São Paulo, em 2004, jun-

to com a equipe do Banco de Imagens e Efeitos Visuais, permitiu que pudesse estender meu olhar sobre a estética das feiras livres nesta capital. Mercados de frutas e legumes situados sob viadutos e escadarias testemunhavam bem o gigantismo da cidade e as estratégias inventivas de aproveitamento de espaço.

Na feira livre da Rua Mourato Coelho, no bairro Vila Madalena, Zona Oeste de São Paulo, que ocorre aos sábados de manhã, a ambiência compar- tilhada por seus frequentadores está associada à constituição de um espaço labiríntico3 (Moles, Rohmer, 1982). As bancas, dispostas ao longo da rua, ocu-

pando em torno de quatro de suas quadras, formam dois corredores estreitos, como que dividindo a rua em duas. O espaço de circulação de fregueses torna- -se então bastante restrito, sendo que a distância entre uma banca e outra é de no máximo dois metros. A proximidade entre as bancas que conformam o corredor e as esquinas e cruzamentos conigurados por sua disposição criam esta sensação labiríntica do percurso da feira livre, estabelecendo múltiplas escolhas de caminhos e percursos a serem seguidos. Da mesma forma, os constantes pregões dos feirantes, em sotaques diferenciados e que ultrapas-

2. Refiro-me a gravação das imagens e entrevistas do documentário “Narradores Urbanos, Antropologia e Etnografia nas cidades Brasileiras, São Paulo, José Guilherme Magnani, BIEV, 2008”.

3. Segundo Moles e Rhomer o labirinto é um espaço “no qual as paredes ou muros, sendo constrangimentos à mobilidade são ao mesmo tempo fonte de riqueza sen- sorial, de prazer e desprazer, de concordâncias ou discordâncias: uma longa fila de lojas na rua, uma longa fila de cestos de alimentos nas prateleiras do supermerca- do, um conjunto de quadros nas galerias do museu (...) fornecem a cada instante àquele que percorrel’allée, o corredor (...) motivações diversas para ir mais adiante, a parar, a voltar sobre seus passos (...)” (tradução livre, Moles e Rhomer, 1982, p. 77)

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sam as barreiras das bancas enfatizam ainda mais esta sensação de labirinto, pois ao andar pelo corredor podemos ouvir os anúncios e nem sempre iden- tiicar de onde vem.

Diferente do Mercadão do Produtor em Porto Alegre, e mesmo da Feira Modelo, as feiras livres em São Paulo apresentam uma organização quase que milimétrica dos alimentos em cima das bancas. Passeando por seus corredo- res podemos ver, por exemplo, em uma banca de verduras, brócolis e alfaces, etc., a montagem de formas com os alimentos. No caso dessas verduras, elas são arranjadas como se fossem os tijolos de um muro que cobre a banca até quase não ser possível enxergar o lado interno dela. É uma bela imagem de cores e texturas combinadas que acompanha o percurso do freguês pelo cor- redor da feira, potencializando as qualidades sensoriais destes alimentos: o verde característico é muitas vezes multiplicado na organização dessas ver- duras, a textura rugosa da couve-lor composta em múltiplas camadas meta- morfoseia o alimento em escultura. Uma estética que se estende às cenouras e beterrabas, ao rabanete e às berinjelas. Este apelo sensorial às cores e formas dos alimentos convoca o frequentador da feira livre ao devaneio em torno da manipulação desta matéria que é plena de transformações.

As bancas de temperos provocam ainda mais a imaginação, ao disporem delicadamente as múltiplas possibilidades de produção do gosto do alimen- to transformado em comida: várias pequenas bacias arranjadas lado a lado, comportam uma diversidade imensa de temperos, alguns simples – como ervas maceradas, pimentas em pó, gengibre picado – e outros elaborados a partir de misturas de ervas, pimentas e outras especiarias. As bancas de tem- peros são uma descoberta à parte, pois não só evocam saberes bastante es- pecíicos – como fazer, em que tipo de comida usar, qual a quantidade – mas também nos transportam para o ininitamente pequeno, para o interior de um “processo de transubstanciação” (Bachelard, 1947) da matéria. Uma pe- quena quantidade basta para transformar o gosto, e um erro de cálculo pode colocar tudo a perder.

Porém, o percurso ainda não acabou e as frutas – laranjas, maçãs, pês- segos, ameixas, frutas-do-conde – também são motivos de arranjos especiais. Pequenas porções de cinco a seis laranjas conformavam pequenas pirâmides à espera de um comprador. Nada de uma montanha de laranjas e bergamo- tas “à vontade”, mas pequenas porções e seus preços. As vendas, nesse caso, efetuam-se por unidades e não por quilo, como é o costume em Porto Alegre. Assim, em cada banca de frutas – exceto em relação às bananas – os produtos são organizados em quantidades já determinadas, formando pequenas pilhas ou pirâmides, quase que imitando uma mesa posta em que podemos nos ser- vir. E a feira continua, com suas enormes bancas de peixes e frutos do mar organizados no interior de refrigeradores que procuram manter suas carac- terísticas de “salubridade”, o mesmo que ocorre com as carnes e seus diversos

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tipos de cortes. Além é claro, do famoso pastel de feira a ser consumido no inicio deste percurso – por aqueles que saíram de casa ainda sem tomar café – ou no im, para “se restaurar” da jornada.

Ao me deparar com estas imagens de feira em São Paulo, decorrente de uma curta estadia na cidade, mais do que marcar as diferenças em relação às feiras livres de Porto Alegre, a impressão – no sentido de imprimir sensações e elaborar sentidos – que me acompanhou na observação etnográica foi a da potência criativa de feições diversas que são veiculadas pelos simbolismos do alimento. Desviando da construção de uma razão prática para explicar o fenômeno dos mercados de rua como algo relacionado a baixos preços, uma necessidade de atender as camadas mais populares da cidade, evoco estas imagens de uma feira livre em São Paulo para tentar compreender a comple- xidade da dimensão simbólica deste evento que emerge nas ruas da cidade contemporânea.

Flannerie

nos mercados parisienses

Foi a experiência constante de etnografar a rua, ou as ruas, de Paris/ França, durante o período do estágio de doutorado que possibilitou meu en- contro “inesperado” com oMarché Maubert,Marché Maubert,no Vèmemearrondissement arrondissement 44.. Inespe-

rado por não estar inicialmente no plano de estudos 5

do estágio de doutorado

como um dosmarchésmarchéspassíveis de participar da pesquisa, e também porque lá conheci uma feirante brasileira, chamada Andromeide. Na Antropologia, este encontro com o Outro é fundamental e o estabelecimento de uma relação de proximidade com “um nativo”6 é sempre importante para a iniciação do pesquisador na descoberta deste universo particular. Por outro lado, a experi- ência de Andromeide em vencer as barreiras da língua e se estabelecer como feirante, ummétiermétierque exige uma série de saberes relacionados à interação com o outro bem como sobre os próprios alimentos, apresenta um ponto de vista peculiar sobre o mercado de rua. Andromeide foi uma importante inter-

4. Paris é dividida em 20 departamentos ou distritos, cada um com uma subprefeitura. Estes departamentos organizam a vida coletiva e também burocrática no sentido da presença de escolas, instituições de assistência social e de saúde e mesmo dosmarchés. 5. No plano de estudos constavam algunsmarchésindicados por antropólogos que

já haviam morado em Paris e frequentado suas feiras. Mesmo assim, estava planejada também uma experiência de etnografia de rua (Eckert e Rocha, 2002) como forma de estudo exploratório sobre os marchés no sentido da escolha de um ou dois para uma investigação etnográfica mais aprofundada, o que acabou ocorrendo no Marché Maubert.

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locutora da pesquisa, na medida em que podíamos trocar considerações so- bre as diferenças culturais entre Brasil e França que pudemos experimentar.

A Place Maubert, onde ocorre o marché todas as terças, quintas e sába- dos pela manhã é mesmo um canto do Boulevard Saint-Germain, ocupando os dois lados da rua, formada no encontro da Rue des Carmes e da Rue de la Montagne Sainte-Geneviéve. Trata-se de um pedaço bastante turístico de Pa- ris, pois nas proximidades localiza-se a Catedral Notre Dame de Paris, o Museu da Idade Média Cluny, a Sorbonne, o Rio Sena, entre outros. Isto faz com que o marché também seja frequentado por muitos turistas. Além disso, oVemeVeme

é um dos departamentos de Paris habitado em geral por uma população de renda alta, aspectos que acabam delineando as próprias características deste mercado de rua. Uma das extremidades dessa praça é ocupada por um prédio alto que tem no andar térreo vários pequenos estabelecimentos comerciais: uma Brasserie, uma Boucherie, uma casa de vinhos e um comércio dealimen-alimen- tation général

tation général que expõe seus produtos em um balcão na calçada. Em dias de marché este comércio parece englobado pelas bancas, constituindo também a ambiência da feira. Apesar de pequeno, o espaço comporta muitas bancas que, como em São Paulo, também constroem um “espaço labiríntico” (Mo- les; Rohmer, 1982) para a circulação de seus frequentadores, com corredores apertados e várias esquinas entre as bancas.

Nesse labirinto (Moles; Rohmer, 1982) estão muitas coisas à venda como roupas de diversos tipos, inclusive étnicas. Um feirante peruano vende muitas saias coloridas e diversos tipos de bandanas para o cabelo, além de colares e brincos. Em outra banca é possível encontrar camisetas em tecido africano e pequenas estatuetas e outros artesanatos. Há outras bancas de roupas, de diversos tipos e preços, banca que vende chapéus femininos e masculinos, outra com brinquedos em madeira ou com utensílios para cozinha, como fa- cas, canivetes, etc., banca de lores. Encontramos até mesmo bijuterias nessa feira. No percurso sinuoso dos corredores, podemos encontrar quase tudo e não necessariamente com uma ordenação de seções como veríamos em um supermercado, mas em uma disposição propícia a surpresa e ao devaneio.

Entre todas as bancas, encontram-se as de alimentos que também são bastante diversas. Temos o famoso fois gras fois gras vendido em uma pequena banca, peixes e frutos do mar, carnes cortadas na hora e mais três ou quatro bancas de frutas, verduras e legumes, cada uma vendendo um pouco de tudo. Essa possi- bilidade de encontrarmos quase tudo que existe em uma feira livre em uma só banca foi um de meus primeiros estranhamentos. Na experiência etnográica em Porto Alegre, descobri que cada feirante ou cada comerciante recebe um alvará de comercialização de um tipo de produto apenas. Se for um produtor o alvará fará referência ao tipo de produto que produz, se for um comerciante que compra na CEASA para revender na feira, o alvará será para frutas, ou para legumes, e assim por diante. Em Paris, noMarché Maubert Marché Maubert , esta distinção não

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parecia importante, pois em cada banca é possível encontrar todos estes pro- dutos ao mesmo tempo. O que faz a diferença entre as bancas é justamente a composição estética dos produtos e principalmente as relações estabelecidas com os fregueses.

A disposição dos alimentos nas bancas é, antes de tudo, um traço especí- ico de cada feirante, que procura uma composição das formas dos alimentos e de suas cores que insira o freguês em uma experiência estética particular e primeiramente visual. Neste arranjo, a maior parte dos alimentos é apresen- tada para o freguês em pequenas quantidades – se comparada às feiras livres no Brasil – dentro de pequenas caixas ou cestos de vime, nada que impeça o tato, mas que garanta uma ordenação de cores e formas, potencializando a beleza do produto. Um morango precisa ser admirado, assim como framboe- sas, cerejas, melões e mesmo alfaces, tomates, berinjelas e alcachofras antes de tudo por suas formas, visualmente. Esta apresentação dos alimentos como se fossem pequenas obras de arte, ou artigos caros em uma vitrine, tem ca- racterísticas diferentes em cada banca, mas segue em princípio a ideia da reu- nião de alguns produtos em pequenas quantidades, combinados com outros também em pequenas quantidades. Assim podemos ver lado a lado algumas caixas de morangos, seguidas de cerejas dispostas quase que livremente so- bre a banca, contidas por mais caixas de framboesa. Em seguida, cestos com berinjelas, abobrinhas e pimentões. Também fazem parte os espinafres, as vagens e as cenouras, tudo ocupando um devido lugar. Essa organização dos alimentos em caixas e em pequenas quantidades exige que os feirantes proce- dam a rearranjos constantes, à medida que os fregueses compram alimentos, deixando seus espaços vazios na banca. A banca sempre bem organizada e com uma ótima apresentação dos produtos, valorizando suas cores e formas, faz parte do ritmo de trabalho dos feirantes e principalmente de sua forma de relação com os fregueses.

Essa feição doMarché Maubert Marché Maubert , expressa na potencialidade das formas estéticas dos alimentos, é seguida de diversas maneiras em outrosmarchésmarchés

parisienses. Uma organização em pequenas quantidades, um saber sobre cada alimento, suas srcens e características, as formas como podem ser pre- parados, conformam uma ambiência de mercado também marcada pelas so- noridades dos anúncios, pelas conversas de corredor entre vizinhos, pelos carrinhos de feira e sacolas que perambulam pelomarché marché , gestos que tam- bém encontramos nas feiras livres no Brasil.

Essa forma de apresentação dos alimentos como obras de arte, que vemos em alguns marchés parisienses, falam de Paris e de sua estética urbana, mas falam também do mercado como um arranjo social urbano (Rocha, 1994) que não é especíico de Paris, mas compartilhado em muitas cidades do mundo, em suas diversas feições. Repousa no interior dessas práticas de manipulação da matéria do alimento, seja na forma como feirantes aderem a uma estética

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para a banca e para o mercado de rua, seja nos gestos de compra, a tessitura de laços sociais pautados em trocas que são simbolizadas pela compra e venda de alimentos, mas que não se reduzem a isso. Nesse sentido, a forma de organiza- ção e disposição dos alimentos nas bancas dos mercados de rua é fundamental, pois revela um convite aos gestos de compra e conigura-se como uma maneira de comunicar algo ao outro. Com muitos alimentos ou com poucos, organizados ou displicentemente dispostos, esta estética da ordenação dos alimentos media a tessitura do laço social que se estabelece nessas práticas de mercado.

Em Paris, entre o XIèmeèmearrondissementarrondissemente o XXèmeème arrondissement, arrondissement, as sex-

tas-feiras pela manhã, nos deparamos com um enormemarché,marché,bastante di- verso doMaché Maubert.Maché Maubert.OMarché de BellevilleMarché de Belleville expressa as características do espaço urbano que o abriga, sendo uma das principais a grande diversidade étnica de seus habitantes, bem como, em alguns casos, as precárias condições de vida e baixa renda, embora não seja considerado como periferia, ao menos nos moldes brasileiros.

Estemarché marché ocupa praticamente toda a extensão doBoulevard de Bel-Boulevard de Bel- leville

leville, com aproximadamente 700 metros de feira livre onde também se en- contram todo o tipo de produto, desde roupas até alimentos, passando por toalhas de mesa, utensílios de cozinha, etc. Claro que, em uma cidade como Paris, umBoulevard Boulevard não “fecha” para que aconteça uma feira, como é o caso de algumas ruas em Porto Alegre e mesmo São Paulo, então ela é montada em uma espécie de “canteiro” (como chamaríamos no Brasil), entre as duas vias

doBoulevard Boulevard . Isso signiica um espaço estreito entre os dois lados de bancas,

mais ou menos dois metros, formando um corredor para os fregueses circula- rem enquanto fazem suas compras.

A primeira vez que entrei nestemarché marché tive a impressão de estar no Bra- sil, pois suas formas se aproximavam muito da estética do mercadão. Além de uma ocupação constante do espaço sonoro, ou seja, muitos e muitos anúncios ao mesmo tempo, muitos deles feitos em outras línguas que não o francês, as bancas também correspondiam à estética da abundância que adota o merca- dão, compostas de grandes quantidades dos mesmos produtos. Os alimentos não estão arrumados em pequenos cestos, mas dispostos em cima da banca e apresentam preços consideravelmente mais baixos do quemarchésmarchésde outros

bairros, o que se associa aos tipos de compras que são realizadas ali, geral- mente em quantidades grandes para famílias numerosas.

Mulheres com carrinhos de feira ou de bebê, crianças, velhos que mal conseguem se movimentar ao longo da feira, árabes, africanos, orientais, ju- deus, franceses, é claro – identiicados como tal por suas vestimentas e ma- neiras de falar – todos compondo a ambiência do lugar, se encontrando no corredor, se esbarrando, resmungando e escolhendo suas compras da sema- na. Este movimento nos corredores de mercados de rua, sejam eles labirín- ticos, quadrados ou retilíneos, podem ser percebidos como uma forma que

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se molda ao longo de um dia de feira, nas escolhas de trajetos e percursos de escolha no interior do mercado. Uma forma orientada pelos ritmos cíclicos que, conforme airma Durand, ilia-se à luta contra a “dissolução do tempo” (Durand, 2001), no qual o alimento simbolicamente marca a construção de laços com a própria cidade, fazendo perpetuar a existência dessas pessoas.

Como o exemplo do mercado de Belleville, outras feiras livres nosar-ar- rodissements

rodissements de Paris se adéquam a sua clientela formada de moradores de bairro, além dos turistas. Ao norte da cidade, os mercados lembram a imagem bíblica de uma torre de Babel com predominância de africanos na venda dos produtos. No 16ème, a demanda por produtos “srcinais” que tragam a aura daFrance profondeFrance profonde com queijos tradicionais, produtos francesesde souche,de souche,

demonstra estarmos em um bairro de forte distinção social e arraigado às tradições francesas. Assim, os mercados de Paris vão moldando suas fruições estéticas às formas sociais de pertença. Desse modo, é possível multiplicar as imagens de mercados de rua na cidade de Paris, identiicando estes espa- ços com a estética doquartier quartier que os abriga:marché Place d’Italiemarché Place d’Italie e a grande

quantidade de fregueses e feirantes orientais, além dos cheiros peculiares de sua culinária expressos nas bancas de lanches; a efemeridade dosmarchésmarchés

das zonas centrais que representam diferentes ritmicidades; a intimidade dos

pequenosmarchésmarchésdo XIVèmearrondissement arrondissement ocupando pedaços de calçadas e

esquinas, conformando as múltiplas feições dos mercados de rua da cidade.