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Ele é constante no camelódromo e quando não está presente, é motivo de lamúria. Fala-se nele durante todo o dia. Todos o desejam. Ele é o sentido do trabalho, da rotina, da felicidade e da tristeza: dinheiro, dinheiro, dinheiro. Símbolo onipresente, símbolo onipotente.

Não é possível falar em mercado sem referir-se à moeda, pois é ela quem o movimenta. A sua circulação é vital. No camelódromo, não é diferente: sem dinheiro, o sistema comercial não engrena. Precisa-se de consumidores endi- nheirados para que a muamba seja vendida e, então, faça-se a busca de novas mercadorias em Ciudad Del Este, pagando-se à vista os fornecedores. Volta- -se carregado para Porto Alegre, vende-se tudo de novo e, assim, caminha a economia do camelódromo e o dinheiro gira. Por isso, perder mercadoria na polícia é um verdadeiro drama, não só por afetar incisivamente o orçamento familiar, mas também porque desorganiza um sistema comercial estruturado, rompendo a sequência de um ciclo.

O dinheiro raramente sobra para os informantes. Em geral, eles não o acumulam, usam-no somente como capital de giro e para o consumo básico de cada um. A lógica, portanto, é a do imediatismo e não da poupança. E isso é o suiciente para alguns camelôs, como Aníbal (57 anos), pois o desejado é conseguir recursos para manter-se trabalhando e conseguir dinheiro para pagar as contas e manter o nome e a honra limpa na “praça”.

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O dinheiro, em sua forma literal. No camelódromo e em busca de mer- cadorias em Ciudad Del Este, o dinheiro era sempre “vivo”, à vista, reduzindo, assim, as possibilidades de “calote”. A maioria dos camelôs não aceitava che- que (somente de clientes coniáveis). Logo, a mesma moeda que recebiam é a que pagavam os fornecedores e também os funcionários, que recebem por dia. Quando ele faltava, a permuta entre os comerciantes era a melhor alter- nativa. Entre os comerciantes da Praça XV, mais especiicadamente entre as microrredes existentes de solidariedade e coniança, havia uma circularida- de de dinheiro em forma de empréstimo. Quando alguém precisava de troco, pede-se para um vizinho próximo que o empresta. Se o dinheiro retornava no mesmo dia, não havia acréscimo sobre o valor. Porém, se havia a necessidade de pedir alguns dias de prazo, era estipulada uma quantia de juro que variava em proporção ao valor do empréstimo.

Afora o dinheiro vivo, no interior do camelódromo, havia vários ven- dedores ambulantes de alimentos que vendiam “iado 2”. Estes eram pagos

semanalmente pelos camelôs, quitando a dívida anotada no “caderninho”. Segundo Márcia, uma jovem vendedora de lanches, os seus clientes sem- pre pagavam no dia combinado, por isso ela raramente levava calote3. Caso

isso acontecesse, a fofoca desprestigiosa era tamanha no interior do grupo (“ fulano deu fulano deu ‘cano’ ‘cano’ em belem beltrano” trano” ) que o comerciante icava com a reputação e a honra muito afetadas, o que o impossibilitaria de continuar trabalhando com seus colegas.

No início da etnograia, surpreendia-me com o “poder” que o dinheiro exercia no universo de pesquisa estudado. Estranhava o quanto se falava nele e o fato de que, para meus informantes, tudo poderia ser calculado em cifras monetárias. Até as relações entre vizinhos e parentes eram reguladas por ele. Tudo parecia muito utilitarista. O casal Carminha e Chico, por exemplo, passa- vam o dia negociando, fazendo cálculos, vendo quem vendeu mais, porque ven- deu menos, etc. Em casa ou no trabalho, existia sempre um papel e uma caneta na mão, instrumentos pelos quais se ponderavam ganhos e perdas: os ganhos mensais eram altos e alcançam cinco dígitos, mas a hemorragia monetária era intensa ao se redistribuir o dinheiro entre os parentes, funcionários, manuten- ção e novas mercadorias. O resultado entre ganhos e perdas era sempre zero.

Se o dia estava bom, é porque tinha entrado dinheiro, se estava ruim, é porque não entrou. Briga-se com um familiar por causa de um ou cinco reais. Certa vez, sob um temporal e frio intenso, Jorge (33 anos) dizia que o dia esta-

2. Vale-Transporte também é uma espécie de moeda no interior do camelódromo. Muitos vendedores aceitam-no nas vendas e depois trocam por alimentos ou vendem para os comerciantes ilegais de vale.

3. Donos de bares da redondeza também já me falaram que os melhores clientes são camelôs porque pagam sempre à vista.

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va lindo, pois tinham vendido muitos chapéus: o dinheiro apareceu no lugar do sol. A onipresença e onipotência do dinheiro incomodavam-me, uma vez que ele se constitui assunto velado no Brasil (Oliven, 2001), bem como sina- lizava a frieza das relações interpessoais calculadas em cifras. Ainal, entre camelôs, não há nenhum pudor para falar em dinheiro, ao contrário, ele é um símbolo escancarado, um bem desejado e preservado: uma linguagem.

Um episódio interessante, acontecido comigo e Chico em uma viagem que o acompanhei ao Paraguai, pode ilustrar as duas visões de mundo em relação ao dinheiro. Ele comprou seiscentos dólares em mercadorias em uma loja; eu, menos de um. Passei no caixa e a atendente não me deixou realizar a compra, pois não era permitido realizar uma venda de um valor tão baixo na- quele atacado. Então, pedi a Chico que colocasse minhas compras (cujo valor era de sessenta centavos), junto com as dele, que fossem pagas tudo junto e eu lhe daria o dinheiro depois. Então, furioso com meu pedido, pagou e avisou- -me: “anota aí nesse blocoanota aí nesse bloco[meu caderno de campo] que tu me deve sessenta que tu me deve sessenta centavos. Não vai te esquecer, heim?”

centavos. Não vai te esquecer, heim?”Eu iquei ofendida com a atitude, que considerei mesquinha naquele momento, ainal eu já havia comprado algu- mas coisas durante a viagem e dividido com ele. Na ingenuidade, comparava com as viagens que realizava com meu círculo de classe média, em que o di- nheiro emprestado é devolvido sem a necessidade de aviso.

Depois de um tempo, percebi que tudo que eu tinha dado a Chico ele tinha anotado em seu caderno, não havia esquecido de nada. Assim, entendi que, para ele, saldar a dívida comigo era algo de extrema importância dentro de sua concepção de mundo e seu código moral de honra. Por isso, esperava que eu agisse da mesma maneira, com a mesma responsabilidade e cuidado sobre as contas e sobre o dinheiro. Ou seja, desejava que eu falasse a mesma linguagem que ele.

Foi então que eu passei a compreender o porquê de os camelôs não con- seguirem escrever, muitas vezes, seus próprios nomes, mas saberem calcular com precisão e agilidade qualquer conta de subtração, adição, multiplicação e divisão. Dinheiro nada mais é do que um símbolo qualquer de comunicação e de troca. É através dele que os informantes comunicam-se, classiicam o mundo e medem os afetos.