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CAPÍTULO I – O MODERNISMO, A ARTE CONTEMPORÂNEA E A ESCRITA

1.2. ARTE CONTEMPORÂNEA

As diversas experiências feitas pelos modernistas mudaram a forma como produzimos e entendemos a arte atualmente. Enquanto os modernistas criavam obras capazes de esgarçar as fronteiras entre as diversas linguagens artísticas, hoje em dia a própria definição do que é arte foi ampliada.

“Quem examinar com atenção a arte dos dias atuais será confrontado com uma desconcertante profusão de estilos, formas, práticas e programas. De início, parece que, quanto mais olhamos, menos certeza podemos ter quanto àquilo que, afinal, permite que as obras sejam qualificadas como 'arte', pelo menos de um ponto de vista tradicional. Por um lado parece não haver mais nenhum material particular que desfrute do privilégio de ser imediatamente reconhecível como material da arte: a arte recente tem utilizado não apenas tinta, metal e pedra, mas também ar, luz, som, palavras, pessoas, comidas e muitas outras coisas. Hoje existem poucas técnicas e métodos de trabalho, se é que existem, que podem garantir ao objeto acabado a sua aceitação como arte. (…) ao lado dos artistas tradicionais há aqueles que utilizam fotografia e vídeo, e outros que se engajam em atividades tão variadas como caminhadas, apertos de mão ou cultivo de plantas. (…)o significado de uma obra de arte não estava necessariamente contido nela, mas às vezes emergia do contexto em que ela existia.” (ARCHER, 2008, ps. IX e X)

Na contemporaneidade, o conceito, a ideia que uma obra transmite tornou-se tãorelevante – e por vezes, até mesmo mais relevante – quanto as questões formais e técnicas que ela possa abordar. Uma das tendências artísticas que influenciou essa transformação na forma de entender e produzir arte foi a Arte Conceitual, que começou a ser praticada durante a década de 1960. Esse termo engloba diversas produções artísticas nas quais o conceito é o foco, e é o contexto no qual a obra está inserida que a valida como arte em vez de algum aspecto formal (VENEROSO, 2012, p. 258).

Figura 9 – Box, Cube, Empty, Clear, Glass – A Description, Joseph Kosuth,1965.

“A Arte Conceitual possuía, assim, um caráter marcadamente antiformalista e antiobjetual. Há uma verdadeira prioridade da ideia e do conceito, em detrimento da realização. A linguagem passa a ocupar o primeiro plano, e muitos artistas recorrem à linguagem como material, às vezes exclusivo, de seus trabalhos. Textos impressos passam a ser exibidos em revistas e jornais – configura-se uma arte- linguagem.” (VENEROSO, 2012, p. 258)

Apontei a seguir algumas obras contemporâneas nas quais a escrita foi utilizada, ressaltando mais uma vez que a presente dissertação não pretende abordar todas essas manifestações mas, ser um recorte conciso das referências que utilizei na criação da minha própria produção.

Há trabalhos de arte que utilizam a escrita da maneira convencional, empregando as palavras em seu sentido denotativo para criar textos, como é o caso de muitas obras de arte conceitual. Joseph Kosuth (1945 -) é um artista conceitual estadunidense que utiliza as palavras dessa forma. Uma de suas obras mais famosas é One and three chairs, de 1965, na qual são colocadas lado a lado a

fotografia em branco e preto de uma cadeira de madeira, uma cadeira de madeira (presumivelmente a mesma cadeira representada na fotografia), e a definição de um dicionário da palavra “cadeira”. Em muitas de suas obras é criado um reforço do significado expresso pelo texto, como acontece em Box, Cube, Empty, Clear, Glass – A Description (figura 9, p. 21), produzida em 1965 e composta por cinco cubos de vidro com uma das palavras que intitula a obra escrita em cada um deles, gerando uma redundância na medida em que características dos cubos de vidro são destacadas pelos enunciados.

Outros exemplos das palavras usadas como texto tradicional podem ser encontrados nos trabalhos da artista estadunidense Jenny Holzer (1950 -), que projeta mensagens como “And now I don’t know what in all that was real”, que foi projetada Krakow, Polônia, no ano de 2011 (figura 10, p.22), e escreve essas declarações de caráter pessoal em outros veículos públicos, como impressões em camisetas e placas.

Contudo, essa forma de empregar a escrita, utilizando palavras em seu sentido literal, está presente em trabalhos produzidos com diversas técnicas. O artista brasileiro José Leonilson Bezerra Dias (1957 - 1993), natural de Fortaleza - CE, mais conhecido como “Leonilson”, bordava manualmente as palavras que escreveu em suas obras, em vez de escrever com fontes tipográficas tipicamente utilizadas nos jornais e nas propagandas. Em “Where can I find one bay to rest my head?” (figura 11, p.23), a pergunta que intitula a obra é vista escrita embaixo de um desenho simples de uma mão com nomes de cidade escritos em cima dos dedos; o bordado é simples como o desenho, formando letras que não possuem uma padronização perfeita e transparecem a forma de sua feitura. Observando a referida obra podemos constatar como Leonilson utiliza as palavras em seu sentido poético sem desvincular-se por completo da denotação literal.

Figura 11 - Where can I find one bay to rest my head?, Leonilson, 1990.

Nesse tipo de trabalho o aspecto gráfico da escrita restringe-se ao cuidado com a diagramação, como em qualquer texto tradicional. Nas projeções de Holzer e nas obras de Kosuth, por exemplo, os textos são normalmente escritos em caixa alta e em negrito, com fonte sem serifas: configuração semelhante à dos títulos de matérias que aparecem em jornais, pois esse tipo de diagramação atrai a atenção do leitor sem usar floreios que poderiam dificultar a rápida apreensão da informação transmitida pelo texto. A diagramação desses trabalhos costuma ser condizente com as outras características dos mesmos; nas obras de Leonilson, ao contrário das de Kosuth e Holzer, a escrita utilizada é simples e artesanal, obtida a partir do bordado à mão, transmitindo a ideia de algo pessoal.

A escrita à mão está presente de maneira igualmente expressiva na produção do artista estadunidense Jean-Michel Basquiat (1960 – 1988), que iniciou sua carreira trabalhando com o

grafitti:

“(...) a explosão do grafitti surgiu como uma forma de resistência, praticado por indivíduos pertencentes a duas minorias étnicas específicas e, ainda que minorias, expressivas, em Nova York: os negros e os porto- riquenhos. (...) Essa ‘palavra visual’ do grafitti, subversiva e transgressora, é uma forma de expressão dessas minorias que, não tendo onde se expressar, se expressam nas ruas (...). Esses graffiti, muitas vezes incompreensíveis, deixam vislumbrar somente alguns trechos de palavras e nomes (...)”. (VENEROSO, 2012, p.211).

Na década de 1980 Basquiat passou a pintar em telas e expor em galerias, sem perder a expressividade original do graffiti; o trabalho do artista desenvolveu-se e incorporou novas referências. A escrita aparece junto de imagens figurativas, formado esquemas saturados de informações, como em Skin head wig, 1982-83, Tuxedo, 1983 e Pegasus (figura 12, p. 24), 1987. Acompanhada ou não pela imagem, a escrita de palavras em seu sentido denotativo oferece muitas possibilidades dentro das artes visuais. Apenas a manipulação do tratamento estético recebido pelo texto já é capaz de comunicar significados diferentes, que podem reforçar e concordar com a mensagem denotativa do texto, como constatamos a partir das obras citadas anteriormente, ou podem contradizê-la.

Outra possibilidade é relacionar não apenas escrita e desenho (ou outra linguagem visual), mas artes visuais e literatura. Marilá Dardo (1973 -), artista contemporânea natural de Belo Horizonte - MG que vive e trabalha em São Paulo, explora essa possibilidade. Em Ulyisses, 2008, a artista apropria-se do livro Ulisses, de James Joyce, e cria no espaço expositivo uma edição visual bilíngue a partir de imagens das páginas e da capa do livro original e do livro traduzido para o português. Nas imagens, as passagens onde aparece o termo “word” (palavra) são destacadas por marcadores coloridos próprios para o uso em livros.

Dardo explora a relação entre literatura e artes visuais na série Alices (figura 13, p. 26), 2010, constituída por 13 quadros com trechos do livro Alice no país das maravilhas, de autoria de Lewis Carrol. Os trechos escolhidos são aqueles que abordam as mudanças de tamanho que a protagonista da história, Alice,

sofre durante a narrativa. Os trechos são reproduzidos em tamanhos diferentes, concordando com o aumento ou diminuição de tamanho da própria personagem. A artista, portanto, utiliza um recurso visual: o tamanho de cada imagem em relação às demais da mesma série, relacionado às passagens da obra literária que se referem a mudanças de tamanho da personagem. A mesma ideia, mudança de tamanho, é apresentada tanto pelo texto quanto pela imagem, mas de formas diferentes, com as particularidades de cada meio.

Em minha própria produção, a função denotativa também é importante. Por mais que inicialmente eu me concentrasse no aspecto gráfico da escrita, foi impossível me desvincular completamente do sentido do texto escrito.

Um dos primeiros trabalhos que motivou essa pesquisa, A fumaça é a forma de ver o vento, produzido em 2011, é um desenho/poema visual no qual a frase que intitula o trabalho é repetida e sobreposta sugerindo a representação da fumaça. Apesar de haver partes nas quais o texto é ilegível, a observação do título aliada à das partes legíveis insinua que todo o texto presente nesse trabalho é essa mesma frase repetida. Mesmo nesse trabalho, a denotação já possui um papel essencial; se ignorarmos o sentido do texto não é possível entender o desenho como representando a fumaça sendo moldada pelo vento.

Enfim, a partir dos exemplos acima, considero que as possibilidades oferecidas pelo uso da palavra em seu sentido literal dentro das artes visuais abrangem mais do que o significado que pode resultar do efeito visual de um texto diagramado.

Existem tantos artistas contemporâneos trabalhando com escrita quanto existem possibilidades de empregar a escrita nas artes visuais. Apontei aqui apenas alguns deles, cujos trabalhos serviram como referência durante a presente pesquisa na medida em que pude aferir e diferenciar algumas das possibilidades oferecidas pela escrita como elemento poético.

Porém, por fim, gostaria de ressaltar que durante essa pesquisa deparei-me com três artistas que se destacaram entre todos os outros, pois seus trabalhos foram os que utilizei como principais referências para minha própria produção e, por isso, foram os que mais me influenciaram em minhas experiências, reflexões e escolhas. O argentino León Ferrari (1920 – 2013) e Mira Schendel (1919 – 1988), artista nascida na Suíça e radicada no Brasil, foram dois que utilizaram a escrita de diversas formas, sobre diversos suportes, combinada com várias linguagens visuais, inclusive o livro de artista. E o estadunidense Cy Twombly (1928 – 2011), cuja produção concentrou-se especialmente na linguagem da pintura e do desenho, com a presença da escrita. Discorrerei a seguir em mais detalhes acerca das obras desses artistas.

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