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A escrita como elemento poético nas artes visuais

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Academic year: 2021

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MARIA HELOISA ANGELI

A ESCRITA COMO ELEMENTO POÉTICO NAS ARTES

VISUAIS

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MARIA HELOISA ANGELI

A ESCRITA COMO ELEMENTO POÉTICO NAS ARTES

VISUAIS

Orientadora: PROFA. DRA. LÚCIA EUSTÁCHIO FONSECA RIBEIRO Co-orientadora: PROFA. DRA. LUISE WEISS

CAMPINAS 2015

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Artes Visuais.

Este exemplar corresponde à versão final de

dissertação defendida pela aluna Maria Heloisa Angeli, e orientada pela Profª Drª Lúcia Eustáchio Fonseca Ribeiro

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes

Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Angeli, Maria Heloisa,

An43e AngA escrita como elemento poético nas artes visuais / Maria Heloisa Angeli. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

AngOrientador: Lucia Eustáchio Fonseca Ribeiro. AngCoorientador: Luise Weiss.

AngDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Ang1. Arte moderna. 2. desenho. 3. escrita. I. Ribeiro, Lucia Eustáchio

Fonseca,1960-. II. Weiss, Luise,1953-. III. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. IV. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The writing as poetic element in the visual arts Palavras-chave em inglês:

Modern art drawing writing

Área de concentração: Artes Visuais Titulação: Mestra em Artes Visuais Banca examinadora:

Lucia Eustáchio Fonseca Ribeiro [Orientador] Ivanir Cozeniosque Silva

Tatiana Fecchio da Cunha Gonçalves Data de defesa: 31-07-2015

Programa de Pós-Graduação: Artes Visuais

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RESUMO

A presente dissertação aborda meu processo criativo na busca pela construção de uma poética própria utilizando o hibridismo entre as linguagens escrita, desenho e livro de artista nas artes visuais. A feitura de diversos trabalhos e estudos e a experimentação com soluções estéticas variadas e diferentes materiais, unidas à pesquisa de referências na Arte Contemporânea, fizeram parte desse percurso de criação e descoberta. No início meu foco era praticamente apenas no elemento gráfico da escrita; contudo, na medida em que a pesquisa se ampliou minha percepção acerca desse elemento se desenvolveu e passei a abordar outras faces da escrita em minha produção, passando a explorar a função poética das palavras por meio de sua denotação e da redação e apropriação de textos.

ABSTRACT

The present master's degree dissertation addresses my creative process in the search for the construction of my own poetics, using the hybridism between various languages such as writing, drawing, and artist's book. The make of several art works and studies, experimentation with various aesthetic solutions and different materials, joined to the reference's research in the contemporary art, were part of this course of creation and discovering. In the beginning my focus was only the writing graphic aspect, nevertheless, as my research grew my perception on the subject developed and I started to address also other constituents of the written language in my art production, exploring the poetic function of the words by way of their meaning, and by writing texts and appropriating from texts by other authors.

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“Mas como o verbo torna-se escrita? Por que ele é o livro que representa e encarna o verbo? Como, e com que garantias, passou-se de um a outro? A partir disso, com efeito, o simples fato de escrever vai se revestir de uma importância quase mítica, como se o detentor da escrita, dessa ferramenta incomparável, desfrutasse de uma relação secreta com Deus, com os segredos da Criação.”

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AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, Profª Drª Lucia Eustáchio Fonseca Ribeiro por sua confiança em meu trabalho, sua paciência, dedicação, e atenção.

A minha co-orientadora, Profª Drª Luise Weiss, pelo incentivo, por acreditar em meu trabalho desde o projeto, e por suas críticas e sugestões.

Aos membros da banca, Profª Drª Ivanir Cozeniosque Silva e Profª Drª Tatiana Fecchio da Cunha Gonçalves por aceitarem o convite para integrar a banca examinadora, cedendo seu tempo, e compartilhando seus conhecimentos para melhoria de minha dissertação.

Aos colegas e professores do Instituto de Artes com quem tive contato durante o curso e contribuíram diretamente ou indiretamente para elaboração de minha pesquisa.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO_____________ _______________________________________________1

CAPÍTULO I – O MODERNISMO, A ARTE CONTEMPORÂNEA E A ESCRITA____7

1.1. MODERNISMO_________________________________________________________9 1.2. ARTE CONTEMPORÂNEA______________________________________________21 1.3 LEÓN FERRARI, MIRA SCHENDEL, E CY TWOMBLY_______________________29 1.4 O LIVRO DE ARTISTA COMO LINGUAGEM PARA O TRABALHO DE ARTE____45

CAPÍTULO II – DEFINIÇÕES DE CAMINHO: LIVRO DE ARTISTA E ESCRITA DES ESCRITA _________________________________________________53

2.1 PRIMEIRAS EXPERIENCIAS_____________________________________________55 2.2 LIVRO. MÚSICA. DESENHO_____________________________________________63

CAPÍTULO III – ALÉM DO ASPECTO GRÁFICO____________________________69

3.1 TRÊS DIÁRIOS: DES-ESCREVENDO NA COR______________________________71 3.2 PONTO DE CONFLUÊNCIA______________________________________________81

CONSIDERAÇÕES FINAIS________________________________________________85

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa estuda as relações de proximidade entre desenho e escrita nas artes visuais e as possibilidades poéticas oferecidas por tais relações, tendo em vista que a individualidade presente no traço do desenho é tão forte quanto a presente na caligrafia pessoal. Ana Albano afirma que mesmo as garatujas de crianças em idade pré-escolar podem ser distinguidas umas das outras, a partir de elementos como a intensidade dos riscos feitos sobre o papel e a composição espacial. Esses grafismos infantis também transparecem a individualidade de cada criança. A autora descreve que em uma turma a professora e seus alunos eram capazes de distinguir o caderno de cada um por meio de uma garatuja desenhada na capa (ALBANO, 2008: p.34).

A individualidade do traço permanece quando a criança começa a ser alfabetizada. Aos poucos aprendemos a escrever e refinamos “nossa letra”, objetivando tornar o resultado de nossa escrita manual cada vez mais claro e legível. O tamanho das letras em relação às linhas do papel, a presença de arestas ou a preferência por letras arredondadas, a inclinação para a direita ou esquerda, o uso de letra bastão em vez de letra cursiva, vícios de escrita adquiridos no processo de alfabetização (por exemplo, não acentuar a letra “i”), entre outras, são características que conferem individualidade a nossa caligrafia pessoal. Devido a essas particularidades somos capazes de distinguir entre o texto escrito à mão por uma pessoa ou outra, mesmo que tal texto não esteja assinado, e por essa mesma razão é muito difícil imitar convincentemente a caligrafia pessoal de outro individuo.

Chamamos de “escrita” a representação gráfica da fala feita a partir de caracteres e sinais. Tais caracteres – letras, números e sinais gráficos como a vírgula e os acentos – possuem valor fonético e são combinados na formação de palavras que possuem denotação. Assim sendo a escrita possuí valor fonético, denotação e aspecto gráfico.

O aspecto gráfico da escrita, ou seja, os caracteres e sinais gráficos que a compõem, podem ser produzidos de duas maneiras diferentes: à mão ou com o auxílio de uma máquina, como a máquina de escrever, a prensa tipográfica ou um software instalado em um computador, celular ou aparelho similar.

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Todos os caracteres de um determinado sistema de escrita (o alfabeto latino, por exemplo) possuem um desenho único que permite distingui-los uns dos outros. Não confundimos a letra “a” com a “b” ou com a “c”; porém é possível escrever em estilos diferentes, caracterizados por variações nos caracteres gráficos (o tamanho, presença ou ausência de serifa, em itálico, em negrito). Como já abordado, cada pessoa possui sua caligrafia pessoal – ou seja, seu jeito particular de escrever as letras e números –, mas além dessa caligrafia pessoal existem também fontes técnicas padronizadas para escrita.

Essas fontes padronizadas variam entre si, mas sempre mantêm a forma básica dos caracteres representados permitindo distingui-los independente da fonte utilizada. Tais fontes são parte do aspecto gráfico da escrita e, portanto, podem ser representadas por meio de uma máquina ou à mão. “Tipografia”1 é o termo que empregamos para nos referir às fontes padronizadas utilizadas pelas máquinas; esse termo também é utilizado denotando a área do design gráfico dedicada ao estudo e desenvolvimento dessas fontes. “Caligrafia” é o termo que empregamos para nos referir a escrita à mão - esse termo é utilizado tanto se referindo a uma fonte padronizada produzida com o auxílio de lápis ou caneta quanto à “caligrafia pessoal” de cada um. Visando preservar a clareza do presente texto utilizarei “caligrafia” apenas me referindo a fontes padronizadas feitas à mão, em oposição à “caligrafia pessoal”, a caligrafia particular de cada indivíduo.

Da mesma forma, cada um possui também seu “traço pessoal”, que confere ao desenho a mesma distinção presente na caligrafia pessoal.

As correspondências entre desenho escrita, contudo, ultrapassam a similaridade entre as linhas das letras e as dos desenhos. Partindo da concepção de que a escrita pode ser feita como o desenho, a partir dos mesmos procedimentos, nos mesmos suportes e com os mesmos materiais, iniciei a pesquisa em artes visuais objetivando explorar as possibilidades poéticas oferecidas por essa relação de proximidade entre as duas linguagens, escrita e desenho. O seguinte questionamento conduziu essa pesquisa: como relacionar desenho e escrita na criação de uma poética própria?

1 A palavra “tipologia” é por vezes utilizada com o mesmo sentido que “tipografia”. Contudo, o termo não é utilizado apenas no âmbito das artes gráficas, podendo ser encontrando também em textos de biologia e psicologia, entre outros. Por essa razão, considero-o mais genérico e não o empregarei no presente texto.

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Refletindo sobre essa questão pesquisei referências dentro do âmbito das artes visuais, busquei compreender as possibilidades oferecidas pelo uso da escrita como elemento poético por meio da leitura de textos críticos e redigidos pelos artistas e da observação das obras de artistas contemporâneos e modernistas que contêm escrita. A partir dessa pesquisa de referências entendi os diferentes conceitos envolvidos nas diferentes poéticas e modos de empregar a escrita nas artes visuais, percebi que a união das duas linguagens pode ocorrer a partir do foco no aspecto gráfico da escrita, mas também pela exploração da denotação das palavras, ou da literatura, ou ainda de outras maneiras.

Considerando essas diversas possibilidades, concentrei meu interesse inicial no aspecto gráfico da escrita, produzi desenhos que remetiam a textos sem que o sentido da sintaxe e da semântica fosse relevante, e desenhos feitos por meio da sobreposição de palavras, soluções utilizadas nos trabalhos Caderno e A fumaça é a forma de ver o vento, respectivamente. No entanto, durante o desenvolvimento de minha pesquisa voltei minha investigação também para outras características da escrita, como sua relação com o tempo devido à organização do discurso, sua qualidade de registro, a denotação das palavras utilizadas e a estrutura do livro.

Dentre as diversas possibilidades que permitem o uso conjunto da escrita e do desenho optei por utilizar o livro de artista, que permite o hibridismo entre linguagens a partir do uso do livro. Inicialmente, essa escolha se deu porque essa terceira linguagem possibilita o uso conjunto do desenho e da escrita por ser feito de papel e poder receber interferências produzidas com lápis e caneta.

Porém, conforme minha produção se desenvolveu e se ampliou meu conhecimento sobre o livro de artista e o uso da escrita como elemento poético nas artes visuais, novas questões surgiram a partir dos novos trabalhos, ampliando minha perspectiva, servindo de base para reflexão e desenvolvimento da pesquisa. Observando meus trabalhos questionei-me acerca de suas dimensões físicas, pois a maioria é pequena, medindo entre 15 x 20 cm e 20 x 30 cm quando fechados, sobre a razão que motivou a escolha do papel-arroz em vez de qualquer outro papel, sobre o uso da cor azul em detrimento das demais e da técnica da diluição da tinta que forma o texto, da opção por utilizar sempre a escrita à mão e da própria escolha do livro de artista.

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conteúdos por meio de sua organização em módulos e oferece possibilidades diferentes de acordo com o tipo de livro: o formato brochura possibilita a sugestão de ritmo pelo hiato que se forma no momento em que viramos a página, enquanto o sanfonado permite reforçar a conexão entre o conteúdo de cada página pela ligação entre as mesmas de ambos os lados (pois as páginas não são separadas por um corte, como na brochura, e sim apenas por dobras que marcam áreas num mesmo pedaço de papel).

Além disso, o livro não pertence exclusivamente ao âmbito das artes; pelo contrário, é um objeto de uso cotidiano e pessoal, que se relaciona com o corpo humano pela necessidade ser manipulado, folheado, transportado e armazenado. Conforme minha produção cresceu e a pesquisa avançou gradativamente reconheci a importância desse fato.

Igualmente, a minha perspectiva do uso da escrita como elemento poético na relação com a linguagem do desenho mudou. Quando iniciei a pesquisa meu foco era apenas seu aspecto gráfico e plástico, mas esse foco foi aos poucos ampliado. Essa transformação se deu especialmente a partir da análise da série Des-escrevendo, na qual me apropriei de meus antigos diários e diluí os textos por meio da aplicação de tíner. Quando tive a ideia de produzir essa série simplesmente pensei em transformar o texto escrito em desenhos abstratos de manchas azuis, porém logo percebi que esses trabalhos suscitavam mais questões. A escrita permite a produção de registros parciais das experiências vividas, então o que significava apagar esses registros, redigidos por mim, em meus diários?

Outras questões também surgiram dessa forma. Nessa mesma série, Des-escrevendo, utilizei pela primeira vez a cor azul. A escolha havia sido feita por esta ser uma cor constantemente utilizada na escrita à mão, o azul das canetas esferográficas. Contudo, conforme produzi mais e a pesquisa avançou ficou claro que a cor transmitia diversos significados, como a remissão à imaterialidade e à melancolia, que participavam do conteúdo de meus trabalhos tanto quanto a referência à escrita. Deixei o aspecto formal para entrar em assuntos de vida.

Para responder à pergunta inicial, “Como relacionar desenho e escrita na criação de uma poética própria?”, e abordando o conteúdo resultante da pesquisa de referências na História da Arte e na Arte Contemporânea, bem como das experiências provindas da minha própria produção, dividi a pesquisa em três partes:

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No primeiro capítulo elenco na História da Arte certos artistas que empregaram a escrita na criação de suas poéticas, com o intuito de aprender e compreender as diferentes abordagens e modos da relação escrita/desenho em suas obras. A partir desse recorte, apontei o uso da escrita como elemento poético de diversas formas na modernidade e na contemporaneidade sem a intenção, contudo, de abordar esse tópico à exaustão nem esgotar o assunto. Aprofundei me na obra de três artistas contemporâneos com os quais considero que meus próprios trabalhos se relacionam: Leon Ferrari, Mira Schendel e Cy Twombly. Por fim foquei minha abordagem nas características e possibilidades oferecidas pelo livro de artista e como as emprego em meus próprios trabalhos.

No segundo capítulo tratei das primeiras experiências que fiz com a escrita e descrevo o desenvolvimento de trabalhos nas quais elas resultaram, apontando todas as etapas do processo criativo.

Enfim, no terceiro capítulo, analisei a série Des-escrevendo, que mudou o rumo da pesquisa. E apresentei a descrição do meu processo de criação com a análise de três trabalhos que enfocam diferentes aspectos da escrita e marcam um ponto de conclusão em minha pesquisa poética com esse elemento.

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CAPÍTULO I – O MODERNISMO, A ARTE CONTEMPORÂNEA E A

ESCRITA

No presente capítulo apontei algumas práticas artísticas, artistas e trabalhos de arte modernistas e contemporâneos que ajudaram a responder à pergunta “Como utilizar a escrita como elemento poético na criação de uma poética própria?”. Procurei entender as soluções encontradas por autores para abordar as relações de proximidade entre desenho e escrita e empregá-las no desenvolvimento de suas poéticas, buscando por esse meio encontrar meus pares e desenvolver minha própria maneira de empregar a escrita poeticamente.

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1.1. MODERNISMO

O uso conjunto da escrita e do desenho pode ser encontrado de diferentes formas em todos os períodos históricos, sendo a Idade Média e o Renascimento apenas dois exemplos. Entretanto, foi durante o século XX, dentro do âmbito das artes visuais e da literatura, que as relações de proximidade entre a escrita e as linguagens visuais começaram a ser exploradas com mais liberdade; os artistas e escritores passaram a quebrar convenções e buscar possibilidades novas e inusitadas. Foram propostas abordagens diferentes, produzidas experiências poéticas, cada movimento fez sua leitura e emprego do livro, da letra e da palavra em produções visuais. Discorro a seguir sobre algumas dessas propostas modernistas e o como a escrita foi empregada na produção dos artistas com elas envolvidos.

O Cubismo foi um dos movimentos da vanguarda moderna que utilizou bastante a escrita em conjunto com duas linguagens visuais: a pintura e a colagem. Os artistas desse movimento exploraram novas formas de representar os objetos e o espaço, rompendo com a tradição da representação a partir da perspectiva, fechada em uma figuração literal.

Uma das formas que os cubistas encontraram de inovar em suas obras foi apropriarem-se de textos presentes em bilhetes de trem, embalagens, partituras de música e recortes de jornais, produzindo colagens com esses fragmentos. Em um segundo momento, esses artistas começaram a pintar letras à mão, preservando as características tipográficas das mesmas, imitando os textos dos fragmentos utilizados nas colagens (VENEROSO, 2012, p. 109).

Além de fragmentos de jornais e partituras esses artistas se apropriavam de outros objetos como areia, estopa e papéis pintados, incorporando à pintura elementos reais colocados em novos contextos. Os cubistas utilizavam esses textos como elementos plásticos em suas composições, não buscando manter os textos legíveis para que comunicassem uma mensagem escrita, mas sim os empregando como objetos gráficos autônomos, mesmo quando as letras eram pintadas manualmente (VENEROSO, 2012, p. 118).

Por exemplo, na obra Garrafa sobre a mesa, de 1912-13, Pablo Picasso (1881-1973) utilizou o jornal como fundo para sintética garrafa representada; esse jornal encontrava-se de cabeça para baixo, reforçando a sugestão de que seu conteúdo textual não deve ser lido da forma tradicional,

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e sim percebido visualmente.

“(...) as letras e papéis colados, longe de representarem alguma coisa, tinham a função de conferir textura ou de atuar como elementos plásticos em interação com os outros elementos do quadro. O aparecimento de letras pintadas na tela não significa uma volta à cópia do real, mas indica que a pintura deixou de ser um meio de representação dos objetos para se tornar uma realidade gráfica, visual.” (BELL, 2008, p. 150).

Muitas das propostas das vanguardas artísticas modernas envolviam o esgarçamento de fronteiras entre as diversas linguagens artísticas; no Cubismo não foi diferente - o poeta Guillaume Apollinaire (1880 - 1918) se interessava pelo Cubismo, conhecia Picasso e escreveu uma série de textos acerca do estilo que resultou no livro Méditations esthétiques: les peintres cubistes, publicado em 1913. Devido a seu interesse, Apollinaire escrevia poesia tendo em mente alguns dos procedimentos que os cubistas empregavam em sua produção visual (VENEROSO, 2012, p.121).

A ausência de pontuação nas poesias de Apollinaire, por exemplo, assemelha-se à recusa da perspectiva da pintura cubista na medida em que o texto é composto de forma diversa que influencia sua leitura, como a recusa pela representação da perspectiva tradicional modifica a forma como se percebe o espaço na pintura.

Outro movimento modernista cuja contribuição interdisciplinar entre as diversas linguagens artísticas gerou várias possibilidades novas do uso da escrita foi o Futurismo. Suas propostas abrangiam não apenas as artes visuais, mas também a literatura, a arquitetura, a música e o teatro. Buscando o desenvolvimento de um novo tipo de arte, genuinamente moderna, Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) escreveu o Manifesto Futurista, que foi publicado como prefácio em um de seus livros de poesia, em Milão - Itália, no ano 1909. No mesmo o ano o manifesto foi traduzido para o francês e publicado novamente no jornal Le Figaro. A partir dessas publicações Marinetti disseminou suas ideias e encontrou outras pessoas cujos interesses eram similares aos seus; assim iniciou-se o movimento Futurista (LYNTON, p85 e 86, 2000). Os artistas futuristas entendiam as linguagens artísticas como veículos de reflexão e divulgação das maravilhas da industrialização. Fascinados com as luzes elétricas, trens e motores a vapor, eles acreditavam numa renovação da arte capaz de acompanhar as mudanças ocorridas num

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mundo onde floresciam as novas tecnologias. O movimento possuía uma forte dimensão política - os artistas eram entusiastas da guerra e posteriormente tais ideais se converteram em apoio ao fascismo na Itália.

“O que o futurismo oferecia ao mundo? Seus pontos de vista básicos, importando numa insistência em que o crescimento da tecnologia e o concomitante desenvolvimento na sociedade e no pensamento exigiam expressão em novas e audaciosas formas de arte não eram únicos, mas nunca tinham sido postulados com tanta veemência. Além disso, aí estava um movimento que antepunha a ideia ao estilo, desafiando assim não só os valores artísticos tradicionais, mas também as ambições estéticas da arte de vanguarda mais radical.” (LYNTON, 2000, p.90)

Cada membro do movimento possuía, contudo, sua própria abordagem estética acerca do assunto, o que resultou na produção de pinturas (figura 1, p.12), músicas, peças de teatro e poesias. Entre essas diversas abordagens, houve aquelas preocupadas com o aspecto gráfico da escrita. Marinetti criou poesias nomeadas Parole in libertá (Palavras em liberdade), compostas não apenas de palavras, mas também com a tipografia e a diagramação, resultando em páginas nas quais o tamanho e fonte das letras – bem como a orientação das palavras – mudava, criando novas possibilidades de denotação. Seu objetivo, segundo ele próprio, era criar com esses textos uma nova forma de expressão genuinamente futurista, capaz de revolucionar a tradição italiana: “Il libro deve essere l’espressione futurista del nostro pensiero futurista...” (MARINETTI, 1913 apud MAFFEI; PICCIAU, 2008, p.47).

O livro comum era visto pelos futuristas como um meio saturado pela tradição, especialmente pela tradição italiana, que precisava ser renovado para acompanhar os progressos da modernidade. No entanto, nas publicações futuristas costumava prevalecer a forma tradicional, a brochura, sendo que as grandes mudanças transpareciam na estrutura e na diagramação de seus textos.

Algumas publicações apresentavam esquemas e diagramas feitos a partir de desenhos à mão, como Rarrefazioni e Parole in libertá, escrita por Corrado Govoni (1884 – 1965) e publicada em 1915, mas em geral os adeptos do futurismo não se dedicavam à produção de livros artesanais

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Figura 1 - Manifesto per la mostra alla Galleria Angelelli. Giacomo Balla. 1915

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Um dos pontos favorecidos pelos livros impressos industrialmente é a maior facilidade de produzir edições e, consequentemente, de divulgação. Além disso, os futuristas admiravam imensamente as máquinas: a própria prensa tipográfica inspirou a apresentação performática Macchina tipografica, composta por Giacomo Balla (1871 – 1958), na qual doze pessoas imitavam os movimentos e barulhos da prensa. Portanto, dificilmente optariam por produzir artesanalmente algo que poderia ser produzido mecanicamente (GOLDBERB, 2006, p12).

Um exemplo marcante da produção futurista é Zang Tumb Tumb (figura 2, p.13 e figura 3, p.14), de autoria do próprio Marinetti. Impresso sobre papel, consiste em um livro de poesia sonora com diagramação diferenciada, contendo palavras dispostas em diagonal e em diversos tamanhos na mesma página. Marinetti acompanhou como repórter a Guerra dos Bálcãs, no ano de 1912. Inspirado por tal experiência escreveu Zang Tumb Tumb, o relato peculiar do cerco de Adrianópolis pelos búlgaros em decorrência de tal guerra. O livro consiste em uma extensa poesia do tipo “parole in libertá”, cheia de onomatopeias que visam expressar os fatos ocorridos durante o cerco. O livro foi lido publicamente em performances ocorridas em Paris, Londres, Berlim, Moscou e São Petesburgo (PERLOFF, 1993, p. 119).

Houve algumas experiências que inovaram também a forma do livro; um exemplo é Parole in libertá futuriste: tattili-termiche olfattive, publicado por Marinetti, em parceria com Tullio d’Albisola (1899 – 1971), em 1932. Em vez de papel, esse livro foi feito de lâminas de lata, material metálico difundido durante a industrialização (SILVEIRA, 2008, p.205). L’anguria lírica (lungo poema pastorale) foi escrito por Tullio D’Albisola em parceria com Bruno Munari (1907 – 1998) e, como Parole in libertá futuriste: tattili-termiche olfattive, foi impresso sobre lâminas de lata. Segundo Munari, seus livros comunicavam por meio das características do papel: a espessura, a transparência ou opacidade, a cor e o formato, a textura, a maciez ou dureza da folha faziam parte do conteúdo da mesma forma que o texto (MAFFEI; PICCIAU, 2008, p.64). Além disso, o Futurismo teve muitas publicações acerca do movimento em sua própria época. Porém, apesar da divulgação efetiva dos ideais do movimento, grande parte dos artistas italianos

Figura 2 - Capa do livro Zang Tumb Tumb. Filippo Tommaso Marinetti, 1912

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envolvidos com o Futurismo o abandonou após a Primeira Guerra Mundial. A influência do Futurismo foi importante durante a modernidade, especialmente para a Rússia e para o já citado movimento cubista:

“Como o Futurismo estava profundamente envolvido no Cubismo, suas conquistas foram também conquistas para o Cubismo. Sem a atividade dos italianos, o Cubismo jamais teria desempenhado um papel tão grande na Arte Moderna. (...) A Rússia pode ser declarada a maior devedora imediata do Futurismo. Com efeito, o Futurismo literário de Maiakovsky deve muito ao de Marinetti, apesar de suas concepções políticas serem substancialmente opostas, e a arte revolucionária da Rússia, sobretudo a arquitetura, é em muitos aspectos a concretização do que os milaneses tinham tentado.” (LYNTON, 2000, p.90)

Os futuristas, contudo, não foram os únicos a propor mudanças nas artes durante a modernidade. Houve outros grupos que desenvolveram propostas similares em outros locais, simultaneamente ou pouco tempo depois, como é o caso do movimento Dadaísta.

Ao contrário dos futuristas, cuja produção teve seu ápice antes da primeira guerra mundial e cujos artistas eram entusiastas da guerra, os dadaístas iniciaram sua produção durante a guerra e a desprezavam. A insatisfação e a frustração em relação à guerra, à sociedade e à arte pertencente a essa sociedade eram o

âmago do movimento: o Dadaísmo não era constituído por pessoas com as mesmas ideias, como o futurismo, mas por membros que produziam de maneira heterogênea, de perspectivas diferentes. Dawn Ades explica em seu texto Dadá e Surrealismo:

“Era como se o dadá tivesse uma vida própria – porquanto não havia unidade real entre os dadaístas. Suas exposições, por exemplo, eram notáveis por sua total incoerência. Nada há que seja um estilo dadá.” (ADES, 2000, p.100).

Esse movimento é essencialmente diferente dos outros, pois seu foco estava na negação da arte de seu tempo a partir de ações variadas, muitas delas irônicas, que não objetivavam a disseminação de um novo ideal estético.

Inicialmente, as primeiras manifestações proclamadas dadaístas ocorreram em Zurique, na Suíça,

Figura 3 - Interior do livro Zang Tumb Tumb. Filippo Tommaso Marinetti, 1912

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país que sempre manteve posição neutra e não participou da guerra. Hugo Ball (1886 – 1927), um alemão que foi à Suíça evitando a guerra, foi quem fundou o Cabaré Voltaire. Nesse lugar ocorriam apresentações de arte de todos os tipos, com todas as linguagens, como música rudista, semelhante às músicas de Russolo, e leituras de poemas compostos de maneira vanguardista, abstratos, sem palavras efetivas ou lidos simultaneamente em três idiomas.

Além da presença da poesia, que mantém sua forma escrita apesar da ênfase na performance da leitura pública, o Dadaísmo possui relação com a escrita também no nome do movimento.

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Escolhido pelos próprios adeptos, na época do Cabaré Voltaire, o termo “dadá” faz parte das primeiras tentativas da criança de falar, remetendo ao início, o início da arte renovada que eles almejavam. Significa em romeno “sim, sim” e em francês “cavalinho-de-pau” (GOLDBER, 2006, p. 52).

Apesar de o grupo inicialmente ter se reunido em Zurique, os artistas eram de diversos países europeus; assim sendo o termo “dadá”, de certa perspectiva, era um nome que não fazia forte referência à cultura de certo local, se adequando ao grupo. Inclusive, posteriormente, o Dadaísmo foi levado a outros países:

“Foi um movimento essencialmente internacional: dos dadaístas de Zurique, Tzara e Janco eram romenos, Arp, alsaciano, Ball, Richter e Huelsenbeck, alemães. Tampouco se limitou à Europa. Em Nova York, os expatriados franceses Duchamp e Picabia apresentaram, durante a guerra, artigos críticos protodadaístas

391 e Rongwrong, e reuniram à sua volta um grupo de jovens americanos insatisfeitos, incluindo Man Ray”

(ADES, 2000, p.99).

Entre as experiências feitas pelos dadaístas, destacam-se pelo uso da escrita em seu aspecto gráfico os discos confeccionados por Marcel Duchamp (1887 – 1968). Entre eles uma parte possuía desenhos de espirais que causavam ilusão de óptica, e outra, frases aparentemente desconexas escritas em sua superfície. Esses discos foram combinados e resultaram em parte das cenas do filme Anémic-Cinéma (figura 4, p.15), que teve sua primeira exibição em 1926, na cidade de Paris, e foi feito pelo próprio Duchamp. No filme os discos aparecem girando, e as espirais alteram-se com as frases. A imagem das espirais e a escrita com a qual foram formadas as frases são apresentadas da mesma maneira, como iguais. O efeito, contudo, é diferente: enquanto as espirais confundem o olhar sugerindo relevos, as frases convidam à leitura, que é dificultada por conta do texto ser apresentado sobre uma superfície em movimento.

Figura 5 – Capa de Caixa verde. Marcel Duchamp, 1934

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Além dessas experiências com os discos, Marcel Duchamp utilizou em sua produção o suporte livro referente. Entre seus livros está Caixa Verde, de 1934 (figura 5, p.16), que é parte de outra obra do artista, La Marieé mise à nu par sés célibataires, meme, título que aparece escrito na caixa verde em letras maiúsculas compostas por furos. O conteúdo desse livro é a documentação acerca da construção dessa obra e ele foi assinado pelo alter-ego de Duchamp, Rose Sélavy. O artista produziu ainda outras obras com livro. Prierre de touche é um livro de artista feito com a capa do catálogo de uma exposição surrealista; apresenta o título da obra em um lado da capa e na contracapa um seio de borracha (SILVEIRA, 2008, ps.30 e 38) (MAFFEI; PICCIAU, 2008, ps.72 e 73).

Outras produções dadaístas trabalhavam a linguagem escrita e as linguagens visuais de forma diferente. Hans Arp (1886 – 1966), um dos artistas envolvidos com o movimento, iniciou experiências com o acaso, produzindo desenhos por meio da tinta que escorria pelo papel sem controle, e poesias espontâneas com técnicas como o uso de frases aleatórias de um jornal ou a combinação de partes de frases sem relação de conteúdo.

O método da produção por meio do acaso veio a ser aprofundado por outro movimento moderno, que partiu do dadaísmo pela iniciativa de artistas interessados em desenvolver uma proposta clara de renovação da arte: o Surrealismo.

Em seus primeiros anos o Surrealismo esteve concentrado em Paris, sendo um movimento predominantemente francês. No ano 1924 André Breton escreveu o Manifesto surrealista, no qual apresentava suas novas ideias acerca da produção de arte; o enfoque desse manifesto era a literatura, mas englobava outras linguagens.

Os surrealistas visavam produzir a arte por meio do acaso e do acesso ao “inconsciente”. Esse termo foi criado por Sigmund Freud (1856 – 1939), um dos primeiros psicólogos, para designar o que ele acreditava ser um dos componentes da

Figura 6 – Amour, pintura poema de Joan Miró. 1926

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personalidade humana, onde ficariam as memórias a que não temos acesso, que não somos capazes de lembrar conscientemente.

Na época da atividade surrealista a psicologia começava a se popularizar e ser reconhecida como ciência. André Breton teve contato com os estudos desenvolvidos por Freud durante a época em que estudou medicina. Assim, interessou-se pelo método da análise freudiana, que consiste em incentivar o paciente a produzir um monólogo livre, a partir do qual o terapeuta destaca conteúdos que considera expressões do inconsciente

(ADES, 2000, p.110).

Inspirados pelos métodos de Freud os surrealistas procuraram outras formas de dar vazão ao conteúdo do inconsciente; uma das maneiras que encontraram foi o jogo chamado Cadáver delicado (figura 7, p.18), criado pelos próprios surrealistas. Esse jogo oferece a possibilidade de ser jogado tanto escrevendo quanto

desenhando - um grupo se reúne e um dos membros faz um desenho ou escreve em um papel, após o que ele dobra o papel de forma que apareça apenas uma pequena parte do desenho, ou a última palavra escrita, conteúdo suficiente para que o próximo possa continuar a criação da imagem ou do texto. O Cadáver delicado aproxima tanto as linguagens visuais quanto a escrita de sua gênese no pensamento. A escrita automática foi outra forma que os surrealistas utilizaram para concretizar seu objetivo de obter a expressão mais pura possível do próprio pensamento. Essa técnica consiste em produzir o monólogo característico da análise freudiana em formato escrito em vez de falado, ou seja, o escritor registra no papel tudo aquilo em que pensando, sem nenhum tipo de filtro, sem procurar organizar a escrita na estrutura tradicional do texto.

Com os mesmos objetivos, os artistas registravam seus sonhos em imagens ou textos acreditando, como Freud, que os conteúdos oníricos correspondiam a manifestações do inconsciente (BRADLEY, 1997, ps. 30 e 31).

Figura 7 - Cadáver delicado, Mas Ray, Yves Tanguy, Joan Miró, Mas Morise.

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Os exercícios surrealistas, por buscar o acaso e a expressão do inconsciente, possibilitavam facilmente o uso conjunto de linguagens visual e escrita. Entre os artistas que se envolveram com o movimento, um dos que mais experimentou criar com linguagens visuais e texto simultaneamente foi Joan Miró (1893 – 1983). Nas pinturas de Miró (figura 6, p.17 e figura 8,p.19), bem como nas de outros surrealistas como Arp e Max Ernest (1891 - 1976), a técnica do automatismo e da narração de sonhos era combinada na produção da imagem, sendo que seu processo de trabalho envolvia utilizar o automatismo numa primeira fase de elaboração das pinturas, e posteriormente finalizá-las com cuidado e precisão técnica (ADES, 2000, p.115).

Outros exemplos do emprego do aspecto gráfico da escrita e da aproximação desta das linguagens visuais podem ser encontrados em outras produções modernistas, como o livro de artista Jazz, produzido por Henri Matisse (1869-1954) em 1947.

Apesar dessa diversidade de produções, decidi focar o presente texto nos movimentos cubista, futurista, dadaísta e surrealista, pois esses quatro apresentam produções que abordam os mesmos conteúdos mas são feitas com diversas linguagens e mídias, frequentemente utilizando mais de

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uma linguagem em uma mesma obra e empregando a escrita de diversas maneiras. Ressalto por fim que as experiências desenvolvidas na modernidade influíram e ainda influem na produção de Arte Contemporânea.

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1.2. ARTE CONTEMPORÂNEA

As diversas experiências feitas pelos modernistas mudaram a forma como produzimos e entendemos a arte atualmente. Enquanto os modernistas criavam obras capazes de esgarçar as fronteiras entre as diversas linguagens artísticas, hoje em dia a própria definição do que é arte foi ampliada.

“Quem examinar com atenção a arte dos dias atuais será confrontado com uma desconcertante profusão de estilos, formas, práticas e programas. De início, parece que, quanto mais olhamos, menos certeza podemos ter quanto àquilo que, afinal, permite que as obras sejam qualificadas como 'arte', pelo menos de um ponto de vista tradicional. Por um lado parece não haver mais nenhum material particular que desfrute do privilégio de ser imediatamente reconhecível como material da arte: a arte recente tem utilizado não apenas tinta, metal e pedra, mas também ar, luz, som, palavras, pessoas, comidas e muitas outras coisas. Hoje existem poucas técnicas e métodos de trabalho, se é que existem, que podem garantir ao objeto acabado a sua aceitação como arte. (…) ao lado dos artistas tradicionais há aqueles que utilizam fotografia e vídeo, e outros que se engajam em atividades tão variadas como caminhadas, apertos de mão ou cultivo de plantas. (…)o significado de uma obra de arte não estava necessariamente contido nela, mas às vezes emergia do contexto em que ela existia.” (ARCHER, 2008, ps. IX e X)

Na contemporaneidade, o conceito, a ideia que uma obra transmite tornou-se tãorelevante – e por vezes, até mesmo mais relevante – quanto as questões formais e técnicas que ela possa abordar. Uma das tendências artísticas que influenciou essa transformação na forma de entender e produzir arte foi a Arte Conceitual, que começou a ser praticada durante a década de 1960. Esse termo engloba diversas produções artísticas nas quais o conceito é o foco, e é o contexto no qual a obra está inserida que a valida como arte em vez de algum aspecto formal (VENEROSO, 2012, p. 258).

Figura 9 – Box, Cube, Empty, Clear, Glass – A Description, Joseph Kosuth,1965.

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“A Arte Conceitual possuía, assim, um caráter marcadamente antiformalista e antiobjetual. Há uma verdadeira prioridade da ideia e do conceito, em detrimento da realização. A linguagem passa a ocupar o primeiro plano, e muitos artistas recorrem à linguagem como material, às vezes exclusivo, de seus trabalhos. Textos impressos passam a ser exibidos em revistas e jornais – configura-se uma arte-linguagem.” (VENEROSO, 2012, p. 258)

Apontei a seguir algumas obras contemporâneas nas quais a escrita foi utilizada, ressaltando mais uma vez que a presente dissertação não pretende abordar todas essas manifestações mas, ser um recorte conciso das referências que utilizei na criação da minha própria produção.

Há trabalhos de arte que utilizam a escrita da maneira convencional, empregando as palavras em seu sentido denotativo para criar textos, como é o caso de muitas obras de arte conceitual. Joseph Kosuth (1945 -) é um artista conceitual estadunidense que utiliza as palavras dessa forma. Uma de suas obras mais famosas é One and three chairs, de 1965, na qual são colocadas lado a lado a

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fotografia em branco e preto de uma cadeira de madeira, uma cadeira de madeira (presumivelmente a mesma cadeira representada na fotografia), e a definição de um dicionário da palavra “cadeira”. Em muitas de suas obras é criado um reforço do significado expresso pelo texto, como acontece em Box, Cube, Empty, Clear, Glass – A Description (figura 9, p. 21), produzida em 1965 e composta por cinco cubos de vidro com uma das palavras que intitula a obra escrita em cada um deles, gerando uma redundância na medida em que características dos cubos de vidro são destacadas pelos enunciados.

Outros exemplos das palavras usadas como texto tradicional podem ser encontrados nos trabalhos da artista estadunidense Jenny Holzer (1950 -), que projeta mensagens como “And now I don’t know what in all that was real”, que foi projetada Krakow, Polônia, no ano de 2011 (figura 10, p.22), e escreve essas declarações de caráter pessoal em outros veículos públicos, como impressões em camisetas e placas.

Contudo, essa forma de empregar a escrita, utilizando palavras em seu sentido literal, está presente em trabalhos produzidos com diversas técnicas. O artista brasileiro José Leonilson Bezerra Dias (1957 - 1993), natural de Fortaleza - CE, mais conhecido como “Leonilson”, bordava manualmente as palavras que escreveu em suas obras, em vez de escrever com fontes tipográficas tipicamente utilizadas nos jornais e nas propagandas. Em “Where can I find one bay to rest my head?” (figura 11, p.23), a pergunta que intitula a obra é vista escrita embaixo de um desenho simples de uma mão com nomes de cidade escritos em cima dos dedos; o bordado é simples como o desenho, formando letras que não possuem uma padronização perfeita e transparecem a forma de sua feitura. Observando a referida obra podemos constatar como Leonilson utiliza as palavras em seu sentido poético sem desvincular-se por completo da denotação literal.

Figura 11 - Where can I find one bay to rest my head?, Leonilson, 1990.

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Nesse tipo de trabalho o aspecto gráfico da escrita restringe-se ao cuidado com a diagramação, como em qualquer texto tradicional. Nas projeções de Holzer e nas obras de Kosuth, por exemplo, os textos são normalmente escritos em caixa alta e em negrito, com fonte sem serifas: configuração semelhante à dos títulos de matérias que aparecem em jornais, pois esse tipo de diagramação atrai a atenção do leitor sem usar floreios que poderiam dificultar a rápida apreensão da informação transmitida pelo texto. A diagramação desses trabalhos costuma ser condizente com as outras características dos mesmos; nas obras de Leonilson, ao contrário das de Kosuth e Holzer, a escrita utilizada é simples e artesanal, obtida a partir do bordado à mão, transmitindo a ideia de algo pessoal.

A escrita à mão está presente de maneira igualmente expressiva na produção do artista estadunidense Jean-Michel Basquiat (1960 – 1988), que iniciou sua carreira trabalhando com o

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grafitti:

“(...) a explosão do grafitti surgiu como uma forma de resistência, praticado por indivíduos pertencentes a duas minorias étnicas específicas e, ainda que minorias, expressivas, em Nova York: os negros e os porto-riquenhos. (...) Essa ‘palavra visual’ do grafitti, subversiva e transgressora, é uma forma de expressão dessas minorias que, não tendo onde se expressar, se expressam nas ruas (...). Esses graffiti, muitas vezes incompreensíveis, deixam vislumbrar somente alguns trechos de palavras e nomes (...)”. (VENEROSO, 2012, p.211).

Na década de 1980 Basquiat passou a pintar em telas e expor em galerias, sem perder a expressividade original do graffiti; o trabalho do artista desenvolveu-se e incorporou novas referências. A escrita aparece junto de imagens figurativas, formado esquemas saturados de informações, como em Skin head wig, 1982-83, Tuxedo, 1983 e Pegasus (figura 12, p. 24), 1987. Acompanhada ou não pela imagem, a escrita de palavras em seu sentido denotativo oferece muitas possibilidades dentro das artes visuais. Apenas a manipulação do tratamento estético recebido pelo texto já é capaz de comunicar significados diferentes, que podem reforçar e concordar com a mensagem denotativa do texto, como constatamos a partir das obras citadas anteriormente, ou podem contradizê-la.

Outra possibilidade é relacionar não apenas escrita e desenho (ou outra linguagem visual), mas artes visuais e literatura. Marilá Dardo (1973 -), artista contemporânea natural de Belo Horizonte - MG que vive e trabalha em São Paulo, explora essa possibilidade. Em Ulyisses, 2008, a artista apropria-se do livro Ulisses, de James Joyce, e cria no espaço expositivo uma edição visual bilíngue a partir de imagens das páginas e da capa do livro original e do livro traduzido para o português. Nas imagens, as passagens onde aparece o termo “word” (palavra) são destacadas por marcadores coloridos próprios para o uso em livros.

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Dardo explora a relação entre literatura e artes visuais na série Alices (figura 13, p. 26), 2010, constituída por 13 quadros com trechos do livro Alice no país das maravilhas, de autoria de Lewis Carrol. Os trechos escolhidos são aqueles que abordam as mudanças de tamanho que a protagonista da história, Alice,

sofre durante a narrativa. Os trechos são reproduzidos em tamanhos diferentes, concordando com o aumento ou diminuição de tamanho da própria personagem. A artista, portanto, utiliza um recurso visual: o tamanho de cada imagem em relação às demais da mesma série, relacionado às passagens da obra literária que se referem a mudanças de tamanho da personagem. A mesma ideia, mudança de tamanho, é apresentada tanto pelo texto quanto pela imagem, mas de formas diferentes, com as particularidades de cada meio.

Em minha própria produção, a função denotativa também é importante. Por mais que inicialmente eu me concentrasse no aspecto gráfico da escrita, foi impossível me desvincular completamente do sentido do texto escrito.

Um dos primeiros trabalhos que motivou essa pesquisa, A fumaça é a forma de ver o vento, produzido em 2011, é um desenho/poema visual no qual a frase que intitula o trabalho é repetida e sobreposta sugerindo a representação da fumaça. Apesar de haver partes nas quais o texto é ilegível, a observação do título aliada à das partes legíveis insinua que todo o texto presente nesse trabalho é essa mesma frase repetida. Mesmo nesse trabalho, a denotação já possui um papel essencial; se ignorarmos o sentido do texto não é possível entender o desenho como representando a fumaça sendo moldada pelo vento.

Enfim, a partir dos exemplos acima, considero que as possibilidades oferecidas pelo uso da palavra em seu sentido literal dentro das artes visuais abrangem mais do que o significado que pode resultar do efeito visual de um texto diagramado.

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Existem tantos artistas contemporâneos trabalhando com escrita quanto existem possibilidades de empregar a escrita nas artes visuais. Apontei aqui apenas alguns deles, cujos trabalhos serviram como referência durante a presente pesquisa na medida em que pude aferir e diferenciar algumas das possibilidades oferecidas pela escrita como elemento poético.

Porém, por fim, gostaria de ressaltar que durante essa pesquisa deparei-me com três artistas que se destacaram entre todos os outros, pois seus trabalhos foram os que utilizei como principais referências para minha própria produção e, por isso, foram os que mais me influenciaram em minhas experiências, reflexões e escolhas. O argentino León Ferrari (1920 – 2013) e Mira Schendel (1919 – 1988), artista nascida na Suíça e radicada no Brasil, foram dois que utilizaram a escrita de diversas formas, sobre diversos suportes, combinada com várias linguagens visuais, inclusive o livro de artista. E o estadunidense Cy Twombly (1928 – 2011), cuja produção concentrou-se especialmente na linguagem da pintura e do desenho, com a presença da escrita. Discorrerei a seguir em mais detalhes acerca das obras desses artistas.

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1.3 LEÓN FERRARI, MIRA SCHENDEL, E CY TWOMBLY

O aspecto gráfico da escrita abrange todas as suas características visuais, a começar pela fonte tipográfica utilizada nas letras que compõem as palavras de um texto: se essa fonte possui ou não serifas, se é utilizada em itálico, negrito ou sublinhada, se as palavras são escritas com letras maiúsculas, minúsculas ou ambas. O espaçamento entre palavras e parágrafos de um texto, o alinhamento do texto, as margens utilizadas, a orientação vertical ou horizontal na qual o texto é disposto, o suporte que recebe o texto e a própria forma básica das letras e sinais, todos os elementos que precisam ser levados em conta quando um texto é diagramado fazem parte do aspecto gráfico da escrita.

A partir das experiências que desenvolvi com escrita e caligrafia e da pesquisa de artistas contemporâneos que utilizam escrita como elemento poético descobri que uma das possibilidades de uso poético da escrita é destacar seu aspecto gráfico, que se aproxima do desenho, dando menos destaque a seu valor fonético e sua denotação.

Percebi que existem diversas possibilidades de abordagem da escrita a partir desse aspecto. Uma delas é o uso de caracteres gráficos (letras, números, sinais gráficos etc...) isolados, sem formar palavras. Nessa situação a forma, o “desenho” desses sinais é a informação mais evidente. Outra possibilidade é a apropriação dos elementos que caracterizam a diagramação textual tradicional: linhas horizontais, blocos de parágrafos, tamanhos diferentes dos caracteres (remetendo ao título e ao corpo do texto), para a composição de uma imagem.

Letras e sinais gráficos podem ser utilizados também como fundo para o desenho, sobrepostas à imagem, ou formando desenho pela saturação. O desenho pode dialogar com esses elementos ou pode sugeri-los sem de fato incorporá-los. Da mesma maneira, outras linguagens visuais como a gravura e a pintura podem ser utilizadas em conjunto com a escrita.

León Ferrari e Mira Schendel utilizaram com frequência o enfoque no aspecto gráfico em seus trabalhos. Ocorreu uma exposição com obras de ambos os artistas chamada León Ferrari e Mira Schendel: o alfabeto enfurecido, que foi exibida no MOMA (Museum of Modern Art) nos Estados Unidos, no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía na Espanha e, entre 8 de abril e

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11 de julho de 2010, na Fundação Iberê Camargo, no Brasil. O título escolhido para a exposição deixa claro que uma das principais relações estabelecidas entre as obras dos dois foi o uso da escrita como elemento poético em suas produções:

“Em uma época em que boa parte da arte ocidental tinha um fundamento linguístico, ambos lidaram com a linguagem como se não houvesse diferença entre signos, códigos, palavras e outras formas visuais. Em vez de usarem a linguagem como substituto para o objeto de arte, eles produziram objetos de arte que fizeram da linguagem um objeto visual” (LOWRY, 2010, p.7)

Na produção de ambos podem ser encontradas tanto obras em que sinais gráficos e letras são utilizados ou sugeridos sem de fato formar palavras quanto obras nas quais as palavras podem ser identificadas e lidas. Nesses casos há aqueles nos quais a mensagem pode ser lida apenas parcialmente, ou é um tanto confusa, e outros nos quais a mensagem pode ser lida por completo e é muito clara.

Em minha própria produção optei por utilizar a escrita da mesma maneira: trabalhos como A fumaça é a forma de ver o vento e Blue of my oblivion apresentam textos escritos à mão que

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podem ser lidos parcialmente. Já Caderno apenas sugeri o texto por meio de desenhos que remetem à escrita. E Sanfona, da série Livretos musicais, possui um texto ilegível.

A artista Mira Schendel também escreve à mão em algumas de suas obras, como na série Segno dei segni, 1964-65. Porém, outras são feitas com letras de fontes tipográficas padronizadas, por exemplo Sem tiítulo (Achilles) (figura 14, p. 30), 1984, e parte da série Objetos gráficos. Já Leon Ferrari utiliza principalmente a escrita à mão, o que contribui para a sugestão das palavras como elemento visual mesmo quando elas são utilizadas tradicionalmente, com seu significado denotativo.

Exemplos dessas obras são: Cuadro Escrito (figura 15, p. 31), de 1964, trabalho no qual, a partir de um texto escrito à mão com tinta sobre papel, Ferrari explica ironicamente como seria o quadro que pintaria caso Deus lhe tivesse tocado e lhe proporcionando assim o dom da pintura;e o trabalho de Mira Schendel Sem título (Achilles), produzido na década de 1960. Nele está escrita uma citação do cardeal John Henry Newman que aparece em um livro de poemas religiosos: “Froud and myself at the time, we borrowed from M. Bunsen a Homer and Froud chose the words in wich Achilles on returning to the battle says: you shall know the difference now that I back again”, na qual o nome “Achilles” está em destaque (PÉREZ-ORAMAS, 2010, p.23 e 26).

Ao contrário do trabalho de Ferrari, no qual o texto é muito claro em sua ironia, a citação que Mira escreve em sua obra é aberta a diversas interpretações. A mensagem pode ser entendida

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relacionada às reflexões sobre religião e espiritualidade da artista, temas que aparecem na referida obra de Newman e pode também ser lida como uma declaração da artista sobre a forma que sua produção tomaria daquele momento em diante (PÉREZ-ORAMAS, 2010, p.24).

Nas obras em que a escrita é apenas sugerida, sem de fato concretizar-se em palavras com sentido denotativo, existem similaridades e diferenças nas produções dos dois artistas. Mira Schendel utiliza em seus Objetos Gráficos (figura 17, p. 33 e figura 18, p. 34) tanto letras feitas à mão quanto letras decalcadas, que são parte de fontes tipográficas padronizadas (NAVES, 2010, p.60 - 61).

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León Ferrari, ao invés, utiliza predominantemente a sugestão de letras escritas à mão, na qual podemos reconhecer as características particulares da caligrafia pessoal do artista mesmo quando os traços não formam letras específicas. É apenas posteriormente, na série Códigos, de 1979, que ele passa a utilizar algumas letras padronizadas isoladas, em conjunto com símbolos e desenhos e numa configuração completamente diferente da utilizada por Schendel. Em séries de León Ferrari como Escrituras deformadas e Cartas a un general (figura 16, p. 32) (a diagramação tradicional é empregada na composição do desenho, sugerindo um texto. Contudo, as palavras – escritas com traços que remetem a letras verdadeiras e lembram suas formas – são apenas “pseudo palavras”, ao passo que nos Objetos gráficos de Mira Schendel o texto não se concretiza, pois as letras são escritas sem ser combinadas em palavras.

Os Objetos gráficos foram produzidos durante os anos 1960 e 1970. Esses trabalhos, feitos com papel arroz, transferência de imagem e tinta acrílica, entre outros materiais, possuem letras que se repetem e acumulam, criando um efeito de organização que precede a leitura efetiva:

“Nos Objetos gráficos – realizados na segunda metade da década de 1960, grafismos e letras traçados ou Figura 18 – Sem título (Série Objetos gráficos) Mira Schendel. 1960

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decalcados no papel-arroz são prensados entre lâminas de acrílico e expostos soltos no espaço. A sobreposição dos elementos, intensificada pela transparência das obras, restituía-lhes uma espessura que a clareza das palavras havia posto de lado. Pela combinação de sobreposição e transparência o espaço vinha habitar as lâminas. E no seu interior galáxias e constelações recolocavam a tensão entre gesto e significação num âmbito ainda mais amplo, talvez até mesmo cósmico, transpondo para uma escala sobre-humana o jogo entre caos e sentido.” (NAVES, 2010, p.60 - 61)

A configuração dos Objetos Gráficos é variada, parte deles é composta de papel-arroz entre placas de acrílico, é grande (com aproximadamente 100 cm de altura e largura) e combina letras feitas à mão com decalques de letras padronizadas. Outros são menores e não são feitos com papel-arroz, sendo as letras aplicadas diretamente sobre pedaços grossos de acrílico.

Os trabalhos de León Ferrari Música e Livro de artista, 1962, possuem dimensões mais próximas às dos papéis que utilizamos cotidianamente, o primeiro mede 46 x 31, 9 cm e o segundo, que se trata de um livro sanfonado – quando aberto completamente – mede 20 x 102cm.

Em ambos os trabalhos as palavras são diluídas em seus próprios traços, resultando em desenhos abstratos que remetem à disposição tradicional em uma página de texto escrito em alfabeto latino (GIUNTA, 2006, p. 91).

O grafismo abstrato que Ferrari utiliza “diagramado” em diversos desenhos é utilizado sem essa organização em outros trabalhos, expandindo-se para toda a página ou tela, recebendo em alguns casos a interferência de cores e lembrando por vezes, em vez de textos, mapas. Contudo, mesmo perdendo a referência direta à escrita a partir da remissão à diagramação, esses trabalhos

Figura 19 - Sem título (Sermón de la sangre), León Ferrari, 1962.

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conservam relação com a escrita à mão por conta da fluidez do traçado.

Sin Título (Sermón de la sangra) (figura 19, p. 35), de 1962 é uma obra que não possui nenhuma letra em meio a suas linhas, no entanto foi baseada no poema Sermón de la sangra, de Rafael Alberti, possuindo em sua estrutura, além da fluidez dos grafismos, a proximidade com a escrita e com a literatura (PEREZ-ORMAS, 2010, p21).

Nas obras de ambos os artistas nas quais aparecem elementos textuais sem um texto efetivo, essa configuração cria uma composição ruidosa, com caracteres gráficos isolados, como se um texto tradicional fosse descolado das páginas nas quais se encontra organizado e suas letras, os elementos que o compõem, fossem colocados todos juntos numa única página.

Essa desorganização pode ser lida como uma desarticulação das palavras e seu sentido. Uma mensagem que gostaria de ser expressa, mas é impedida antes que possa se formar, resultando no silêncio. Podemos encontrar nessa sobreposição de elementos as próprias limitações da palavra escrita em comunicar, visto que ela não é uma ferramenta perfeita, não pode expressar exatamente aquilo que sentimos e pensamos. Entre pensamento e texto escrito existe uma adaptação, uma tradução, e nesse processo algo se perde, permanece presente nas entrelinhas, mas mudo.

Perez-Oramas comenta essa possibilidade de leitura:

“Nas obras de ambos os artistas, há um desejo de aquilo que a voz ou a palavra já não podem dizer. Com seus desenhos e colagens em braille, Ferrari levou o projeto intelectual Cuadro Escrito ao seu apogeu, produzindo uma imagem inexistente apenas com a linguagem, mas com uma linguagem tão muda quanto uma imagem. (...) Os Datiloscritos, imagens produzidas com a matéria da linguagem, são igualmente táteis, no sentido de que têm as superfícies marcadas pela impressão física das teclas que percutem a folha de papel, em uma inversão dos pontos em relevo do braille. Em ambos os casos, os signos são coisas, e as coisas – formas, figuras, suportes – são signos. Em ambos os casos, o mundo emudece – e nos emudece. Diante dos horrores e tragédias do mundo, diante de certa forma de angústia ou solidão, talvez não reste nada além do gesto de apontar.” (PÉREZ-ORAMAS, 2010, p.37)

As séries de obras às quais Perez-Oramas se refere consistem:

- nos Datiloscritos, de Mira Schendel, nos quais a artista produz composições em papel digitando em uma máquina de escrever. Nessa série Mira produz padrões e figuras com a

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sobreposição de letras e alternando letras e espaços;

- e nas obras em que Ferrari utilizou a escrita braille, na qual os sinais podem ser lidos a partir do toque dos dedos. Um exemplo é Unión libre, de 2004, composta por uma fotografia de Augusto Cesar Ferrari produzida durante a década de 1920 – que representa uma mulher nua – e o poema de André Breton traduzido para o espanhol, Unión libre, escrito em braille sobre a fotografia. Nessas obras com a escrita braille, o texto e a imagem geralmente transmitem uma mensagem de crítica aos valores morais e à igreja católica. Essa mesma mensagem de crítica é encontrada em outras obras do artista que utilizam apenas imagem, como nas colagens da série Relecturas de la Biblia.

Mira Schendel e León Ferrari experimentaram muito com as palavras e com os caracteres da escrita, encontrando diversas soluções estéticas e empregando-as em suas obras. Na produção de ambos a poética da escrita é muito importante, tanto quando ela é utilizada privilegiando o sentido denotativo quanto quando seu emprego privilegia os aspectos gráficos da escrita, explorando sua estética e possibilitando leituras desvinculadas do significado das palavras. Outro artista que emprega a escrita para construir sua poética em seus trabalhos de arte é o estadunidense Cy Twombly. Sua produção é composta especialmente por pinturas e desenhos de grandes dimensões, como as pinturas da série Quattro stagioni, produzidas no início da década de 1990, e com medidas variadas, em torno de 300 x 200 cm. O tamanho das obras permite a produção de gestos amplos, a partir dos quais o artista se expressa com todo o seu corpo: o movimento de Twombly pode ser da mão e do pulso tanto quanto do braço e do ombro – o que seria impossível em dimensões pequenas.

“(...) é necessário que a vida (a arte, o gesto, o trabalho) testemunhe sem desespero seu inelutável desaparecimento: ao entrelaçar-se (como esses a encadeados, resultado de um único e mesmo gesto da mão, repetido, traduzido) ao mostrar seu nascimento (o que foi, outrora, o sentido do esboço), as formas (pelo menos as de TW) já não cantam as maravilhas da criação, nem as mornas esterilidades da repetição; dir-se-ia que lhes cabe unir, em um único estado, aquilo que aparece e aquilo que desaparece; separar a exaltação da vida do medo da morte é banal; a utopia, cuja a linguagem pode ser a arte, mas a que resiste toda neurose humana, é produzir um único afeto: nem Eros, nem Tanato, mas Vida-Morte, com um único gesto, um único pensamento. A arte de TW aproxima-se mais dessa utopia, para mim, pelo menos, do que a arte violenta ou a arte fria; essa arte de TW, impossível de se classificar, porque une, com um traço inimitável, a

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inscrição e o apagar, a infância e a cultura, a deriva e a invenção.” (BARTHES, 1990, p150).

Twombly escreve em suas telas e desenhos trechos de obras literárias, referindo-se constantemente a obras clássicas como a Ilíada, que é tema da série de pinturas Fifty Days at Iliam (figura 20, p. 38), produzida em 1978. Sem título (Achilles), de Mira Schendel, de certa perspectiva, se aproxima de Twombly devido a sua referência a Homero. Contudo, enquanto em Sem título (Achilles) a artista utilizou um tratamento homogêneo da cor e da textura no fundo e nas palavras – escritas com o auxílio de moldes que lhe possibilitaram letras de forma numa fonte tipográfica padronizada –, nas pinturas de Cy a escrita é feita à mão, com garranchos quase ilegíveis, por vezes misturados a manchas coloridas e mesclando-se ao fundo.

Os títulos dos trabalhos, no caso da série Fifty Days at Iliam, ajudam o expectador da obra de Twombly a encontrar a relação com as passagens da obra de Homero. Segundo o próprio artista, “I never really separated painting and literature because I've always used reference”2.

Além de utilizar citações das obras literárias, Cy Twombly também produz pinturas e desenhos nos quais o elemento principal é um símbolo – como The rose, 2008, e Leaving paphos ringed with waves, 2009 – que em alguns casos é vinculado à literatura e em outros à experiência pessoal do artista. Ele comumente explora um mesmo símbolo como tema central, que está presente em toda a série.

2 “Eu nunca realmente separo pintura e literatura, pois sempre usei referência” (SEROTA, 2007)

Figura 20 - Fifty Days at Iliam: Heroes of the Achaeans, Cy Twombly, 1978.

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Da mesma maneira que as passagens da Ilíada de Homero são o elemento comum de Fifty Days at Iliam, em Leda and the Swan (figura 21, p. 39) a referência é o mito grego “Leda e o Cisne”, no qual Zeus transforma-se em um cisne para seduzir a humana Leda3 e, excetuando uma das obras, os trabalhos que compõem a série possuem manchas abstratas, de contornos orgânicos, que remetem à figura de um cisne. Nessa série a referência estende-se também à própria História da Arte, pois o mito de Leda e o Cisne foi um tema recorrente na pintura, sendo que um exemplo é a pintura intitulada como o mito grego produzida por Leonardo da Vinci no século XVI EC. As obras de Twombly possuem em sua estética as marcas do gesto que produziram seus elementos, são extremamente imediatas, produzidas de uma só vez, sem etapas anteriores como rascunhos, estudos ou projetos. Percebemos essa imediatez na elaboração das obras na medida em que elas não possuem um acabamento complexo, que requereria várias etapas posteriores e dessa forma cobririam esses gestos iniciais.

Segundo Roland Barthes, os garranchos e grafismos de Twombly se parecem com a escrita que um destro faz se utiliza sua mão esquerda. Barthes refere-se à esquerda como “gauche”, essa palavra francesa não apenas relaciona-se ao lado esquerdo, mas a tudo que é desajeitado, confuso e inábil. Segundo o autor esse gauche, o canhoto, é guiado pelo seu gesto, pela sua mão inábil, ignorando as asperezas da técnica e da razão (BARTHES, 1990, p148).

3 “(...) Zeus se transmutou em cisne para acercar-se de Leda, só o fez, diz o mito grego, depois que ela se metamorfoseou em gansa, para escapar-lhe (...) o ganso é um avatar do cisne na acepção lunar e feminina. Os amores de Zeus Cisne e Leda Gansa representam, então, a bipolarização do símbolo, (..) combinando deliberadamente as duas acepções, diurna e noturna, fizeram da ave um símbolo hermafrodita em que Leda e seu amante se fazem um" (CHEVALIER; GUEERBRANT, 2012, p.258).

Figura 21 – Leda and the Swan (Part IV), Cy Twombly, 1980

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