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CAPÍTULO II – DEFINIÇÕES DE CAMINHO: LIVRO DE ARTISTA

2.1 PRIMEIRAS EXPERIENCIAS

Enquanto pesquisava referências acerca do uso da escrita como elemento poético e buscava embasamento teórico, iniciei meus próprios projetos e experiências. Num primeiro momento, questionei-me como abordar a escrita visualmente, ressaltando seu aspecto gráfico. Assim, no ano de 2011, desenvolvi estudos e experiências com várias linguagens visuais: aquarela, gravura e desenho. O desenho, contudo, foi a linguagem principal desde o início, estando presente na estrutura mesmo dos trabalhos com aquarela e com gravura.

Há diversas razões para a escolha do desenho. Primeiramente, a importante observação que me conscientizou da similaridade entre o aspecto gráfico da escrita e a linguagem do desenho e me mobilizou a iniciar essa pesquisa: a individualidade do traço do desenho assemelha-se a individualidade da caligrafia pessoal.

Mas também o fato de que o desenho é uma linguagem que não necessita de intermediários, como por exemplo a fotografia, que precisa da máquina fotográfica. Ao desenhar com um lápis ou uma caneta sobre certa superfície, obtemos o resultado final de todas as intervenções realizadas imediatamente: a linha riscada sobre o papel não mudará, pode transformar-se apenas em relação aos outros elementos inseridos na mesma composição.

Além disso, o desenho é polivalente. Existem diversos materiais adequados à execução do desenho (como vários tipos de canetas e lápis), bem como uma grande variedade de tipos de papel – seu suporte tradicional – e ainda outros diversos suportes que podem receber intervenções a partir do desenho, como paredes, tecidos, madeiras e softwares de edição de imagem.

As ideias que decidi por em prática foram divididas em duas categorias: “desenhos escritos” e “caligrafia da escrita”. A primeira categoria abrange trabalhos feitos com desenhos nos quais as linhas formam simultaneamente desenho e palavra, enquanto à segunda pertencem desenhos que remetem à escrita, lembram escrita, mas não são. Alguns dos recursos que utilizei para produzir esses primeiros trabalhos foram:

– empregar no desenho as cores azul e preto, que são as mais utilizadas para escrever;

– desenhar com traços simples, concentrando-me nos contornos, adicionando poucos detalhes; – produzir desenhos com palavras e letras, nos quais as linhas formam simultaneamente o

contorno dos desenhos e as letras das palavras.

Nos estudos com aquarela dediquei-me a explorar as formas abstratas produzidas pelos padrões de pinceladas e manchas. Esses estudos geraram a série Escritas Imaginárias (figura 27, p. 59), na qual sobre os padrões abstratos coloridos eram desenhados “pseudo ideogramas” que sugerem um sistema de escrita ideográfico disposto verticalmente sem, contudo, denotarem um significado textual real. Esses caracteres, entretanto, não podem ser decifrados, lidos, como um sistema de escrita tradicional, pois são escritas imaginárias. São, na verdade, desenhos que remetem ao gesto da criança ainda não alfabetizada que brinca de escrever copiando a postura e os movimentos dos adultos e imagina o significado de seu texto simulado. Posteriormente abandonei a aquarela, mas as manchas e padrões abstratos abordados nessa série inicial relacionam-se com outros trabalhos produzidos posteriormente (como Des-escrevendo, Sobreposições de Laxness, Comentário sobre a vida e Pulsar da água).

Já as experiências com a gravura (figura 26, p. 58) ajudaram a conscientizar-me das características que valorizo no desenho. Por exemplo, a gravura necessita de um desenvolvimento em várias etapas para obter-se o resultado final. As incisões feitas sobre a placa de metal ou sobre o bloco de madeira são uma etapa que levará ao elemento efetivo, que será conhecido apenas no momento da impressão. Ao contrário, no desenho, o risco sobre o papel constitui a intervenção final.

Utilizei calcografia, xilografia, carimbos e cianotipia em minha produção. As imagens obtidas a partir desses diferentes processos de gravação e impressão foram desenvolvidas a partir de estudos feitos com desenho. Contudo, as diferenças entre essas linguagens são marcantes: além da gravura permitir a reprodução de várias imagens semelhantes, ela apresenta o elemento tátil em sua matriz. Ao contrário do desenho, que pode ser produzido rapidamente, a gravura possui um tempo lento para sua feitura, necessitando de provas para cada nova intervenção e, no caso da calcografia e da cianotipia, do espaço de um ateliê.

Experimentei empregar carimbos de caracteres do alfabeto latino, criando composições que buscavam ressaltar seu aspecto gráfico. Porém essas experiências não possuíam a individualidade da caligrafia pessoal, que tanto me interessou desde o início.

Atualmente, dispositivos digitais como tablets e smartphones têm se tornado cada vez mais comuns como suporte para a escrita. Essa mudança afeta a forma como escrevermos. Quando optamos por escrever em softwares digitais, naturalmente nos preocupamos menos com a grafia correta das palavras, pois os programas são capazes de reconhecer palavras grafadas de maneira incorreta e corrigi-las. Abreviações de palavras e novas expressões surgem em meio à comunicação escrita digital, tornando-a mais dinâmica e rápida, mas eventualmente ilegível àqueles indivíduos que não estão acostumadas a usá-la. Além disso, ao escrevemos digitalmente, digitamos no teclado do computador ou do celular, não escrevemos à mão e, enquanto a escrita à mão possui traços de nossa individualidade, a escrita digital limita-se às fontes tipográficas padronizadas, não existe “nossa letra” digital.

Em nossa sociedade, as práticas artísticas ocupam um lugar limitado:

“(...) o vocabulário da arte constitui, por assim dizer, a ‘língua materna’ dos seres humanos. Todas as crianças (em condições normais de vida) começam cantando, pintando, dançando – são suas primeiras representações simbólicas. (...) Do momento que a criança entra na escola, as coisas ficam mais ‘sérias’ e se acaba com esse tipo de ‘brincadeira’ (...). Se, porém, a despeito de tudo e de todos, algum adolescente ou adulto conseguir salvar seu potencial de sensibilidade, ele se vê diante da tarefa de praticamente ter que reaprender tudo de início, como se (...) as linguagens da sensibilidade fossem das coisas mais esotéricas para um ser humano ”. (OSTROWER, 2013, p.119).

A escrita à mão, no entanto, é uma ferramenta cotidiana, uma prática que impele as pessoas a exercitar pelo menos um pouco de sua expressão individual. Essa escrita pode ser caprichada, feita com cuidado, quando é escrito um cartão de aniversário para uma pessoa especial ou um bilhete carinhoso, pode ser feita às pressas, com garranchos, para anotar um endereço enquanto saímos atrasados. De qualquer forma ela é pessoal, registrando indiretamente até características do contexto no qual escrevemos.

A escrita à mão apresenta elementos que foram selecionados pelo indivíduo que a utiliza ao longo de sua vida: escrever com letra cursiva ou imitando manualmente as letras de forma; inclinar as letras para um lado ou fazê-las retas em relação às linhas do papel; produzir caracteres grandes ou pequenos, largos ou finos etc. E, mesmo que sua função seja prática, ela transparece certa expressividade.

trabalhos em detrimento da escrita padronizada, técnica. E escolhi o desenho, pois essa linguagem possuí maior similaridade com a escrita à mão devido à gestualidade requerida em sua produção.

Tais escolhas foram baseadas tanto nas experiências desenvolvidas com gravura e aquarela quando naquelas produzidas com o desenho. Também em 2011, simultaneamente à produção das primeiras experiências com gravura e da série Escritas Imaginárias, desenvolvi o trabalho Escrito nas nuvens.

Escrito nas nuvens consiste em um desenho de composição marcadamente horizontal que representa nuvens pesadas antes da chuva, formadas pela sobreposição da palavra “nuvem”. O desenho foi feito sobre pranchas de foamboard, divido em oito módulos que medem 24,7 x 80 cm, e foram utilizadas canetas hidrográficas em dois tons de cinza sobrepostos. Os módulos podem ser combinados em diferentes formas: os oito lado a lado formando uma única longa linha, duas linhas contendo quatro módulos, ou quatro linhas contendo dois módulos cada. Nesse trabalho utilizei a sobreposição de palavras para formar imagens figurativas. Escolhi propositalmente a figura da nuvem, que possuí formas indefinidas e mutáveis e que representam

existências efêmeras: a fluidez das nuvens remete à própria fluidez da escrita e à efemeridade da fala. Registrar a forma da nuvem é como anotar as palavras pronunciadas durante uma conversa, que de outra forma estariam fadadas a desvanecer, como a forma da fumaça e das nuvens.

Minha primeira experiência com o livro de artista foi o trabalho Caderno (figura 28, p. 60), que utiliza como suporte um caderno escolar com folhas almaço e capa dura, preta, sem inscrições, e mede 30,4 x 22,3 cm, tamanho próximo ao A4.

Esse trabalho parece à primeira vista com um caderno escolar comum. Suas páginas parecem conter anotações banais, textos e esquemas de extensão variada. No entanto, após uma observação mais cuidadosa, percebe- se que as anotações são na realidade “pseudo anotações”, pequenos desenhos figurativos que imitam algumas características da escrita e possuem o tamanho de letras, de forma a remeter a um texto escrito à mão. O desenho parece estar diagramado: espaços em branco sugerem recuos de parágrafo, por vezes uma linha é pulada, ou uma sequência recebe destaque por estar centralizada. Dessa maneira Caderno aborda o aspecto gráfico da escrita, confundindo desenho com escrita. Caderno foi também um dos primeiros trabalhos no qual utilizei a caneta nanquim. Originalmente produzi um estudo com esferográfica azul; o resultado, porém, apresenta pouca clareza, com linhas falhas e borrões. São imperfeições que, apesar de

Figura 27 - Uma das aquarelas da série

pequenas, afetam a qualidade do desenho. Além disso, desenhar essas figuras não maiores que o espaço entre as linhas impressas na página foi muito custoso utilizando a caneta esferográfica, sendo preciso fazer bastante pressão para desenhar as linhas, ao passo que com a caneta nanquim o gesto tornou-se mais fácil e consequentemente mais fluído.

Caderno ofereceu a oportunidade de abordar a proximidade entre escrita e desenho de várias formas coerentes em um mesmo contexto, por exemplo: foi possível utilizar as linhas das folhas de almaço para criar duas representações diferentes de perspectiva, a utilizada em composições como: os balões, a cidade, a fazenda e o rio, que representa paisagens, e a utilizada sugerindo estantes por meio das linhas, que foi empregada na representação de uma biblioteca, de um armário de copos e de um armário de instrumentos para experimentos químicos. Essas possibilidades de representação evidenciam a escrita como desenho considerando que a própria

formatação típica dos textos é utilizada para criar esses efeitos.

Em algumas composições as páginas foram utilizadas para criar sequência, como o grupo de desenhos sobre o mar: cada um ocupa páginas duplas, sendo que no primeiro estão representados navios sobre a superfície do mar, no segundo, terceiro e quarto é representado o fundo do mar. Cada desenho sugere um grau maior de profundidade a partir dos tipos de criaturas desenhadas. Em sua totalidade, Caderno não sugere uma narrativa ou uma sequência lógica, apenas a forma de desenhar, e os temas mudam perceptivelmente, de maneira gradativa, conforme a proposta se desenvolveu. Entretanto o trabalho mantém sua coesão pelos procedimentos técnicos utilizados, bem como por meio da ideia de construir desenhos com pequenas figuras organizadas numa composição que remete à escrita.

Apesar de Caderno ser um trabalho inicial, que aborda as diversas questões surgidas no decorrer de minha pesquisa apenas de forma indireta, implícita, ele foi um ponto de partida na medida em que foi o primeiro trabalho que relacionou as três linguagens que escolhi utilizar: escrita, desenho e livro de artista.

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