• Nenhum resultado encontrado

TRÊS DIÁRIOS: DES-ESCREVENDO NA COR

CAPÍTULO III ALÉM DO ASPECTO GRÁFICO

3.1 TRÊS DIÁRIOS: DES-ESCREVENDO NA COR

Diários são documentos pessoais ligados à intimidade de quem os produz. Na maioria das vezes são destinados a retratar experiências cotidianas, sonhos e desejos, mas também frustrações, medos e angústias. O leitor dos textos escritos em um diário geralmente é apenas o próprio autor - em raros casos esses textos são compartilhados com um amigo próximo. Assim sendo, o diário é um suporte que recebe registros que não serão compartilhados nem veiculados e expressos em outros meios de comunicação e de arte.

Durante o período de 2001 a 2006, desenvolvi sete diários. Eram cadernos de folhas pautadas, comprados prontos em papelarias, normalmente não maiores que 15x21cm. O conteúdo dos textos de meus diários envolvia relatos de experiências cotidianas, anotações sobre reflexões e divagações a respeito do estar no mundo e vivenciá-lo. Nessa época escrevia constantemente, pois objetivava registrar o máximo possível em uma tentativa de vencer o tempo, permanecendo no texto a pessoa que eu era, por mais que na realidade eu me transformasse.

Em 2008 deixei de escrever em diários e gradativamente a existência deles tornou-se um incômodo, pois me sentia presa ao passado por conservar esses relatos. Somente em 2010 esses objetos foram retomados com a intenção de transformar o registro dessas memórias, tornando os textos ilegíveis. Foi uma escolha feita com cautela, pois dentre as opções viáveis de destruição e de descarte dos diários optei por apropriar-me desses objetos para transformá-los em suportes e materiais de trabalhos de arte.

Decidi tornar o conteúdo dos diários ilegível dissolvendo-o. Inicialmente, experimentei em um volume uma mistura de álcool e água; esse diário foi mergulhado na mistura dentro de um grosso saco plástico. A tinta desbotou visivelmente, no entanto foi necessário utilizar muito álcool para conseguir esse efeito e as folhas encharcadas foram extremamente danificadas. Em uma segunda experiência tentei aplicar água sanitária sobre o texto. O resultado não foi satisfatório, a tinta não foi diluída, quase não chegou a desbotar, e ao mesmo tempo as folhas ficaram muito ressecadas e quebradiças. Por fim, recorri ao tíner, um solvente forte, capaz de diluir tinta para paredes e danificar recipientes plásticos. Finalmente consegui diluir o texto de meus diários. Devido à evaporação rápida do solvente, foi necessário derramar tíner diversas vezes em folhas selecionadas aleatoriamente nos volumes.

Des-escrevendo (figuras 35, p. 72 e 36, p. 73) foi o nome dado ao conjunto de três trabalhos desenvolvidos com os diários. Seus textos foram tornados ilegíveis a partir da aplicação de tíner, que os transformou em manchas, sugerindo alguns questionamentos: Por que dissolver em vez de rasurar, encobrir, queimar ou destruir de outra maneira? O que significa proceder transformando esses registros íntimos? Qual foi o critério de seleção dos três diários dentre os oito existentes?

A ação de tentar apagar os textos resultou na diluição da escrita. Ora formou áreas de manchas de cor, ora resquícios de frases e palavras. Esse movimento de diluição do texto guiou o desenvolvimento de todos os trabalhos daquele momento e aproximou a escrita da imagem. Nos diários, essas relações de proximidade entre dois campos de expressão foram exploradas considerando que a escrita diluída deu origem a imagens de cor azul. Diante desse azul percebi que Des-escrevendo foi o primeiro trabalho que produzi no qual a informação cromática é significante, de forma que surgiu a necessidade de investigar a presença da cor nos diários.

Dando desenvolvimento a essa investigação selecionei da série apenas os diários escritos com caneta esferográfica azul e preta, pois este é o material comumente utilizado para escrever à mão e estas são as cores mais escolhidas para esse fim.

A mancha de azul aliada à diluição da escrita e da palavra trouxe-me alguns questionamentos que serão abordados a seguir: que efeito plástico é esse da cor sobre os diários e principalmente, que cor é esse azul capaz de evocar sentimentos de prazer e de não prazer no leitor e mesmo em mim? E que sentidos simbólicos a cor azul apresenta?

A diluição da tinta presente nas páginas de Des- escrevendo foi heterogênea, há pontos nas folhas onde a cor está mais clara, pelo acréscimo do branco do papel, e pontos onde está mais escura, pois a tinta se concentrou ali. Ainda é possível encontrar resquícios de palavras em pontos que

não receberam tíner o suficiente e há páginas onde o texto foi gravado no papel devido à pressão da caneta. Em decorrência desse efeito estético considero que o trabalho remete à relação humana com a passagem do tempo e com a memória, pois conforme o tempo passa nossas lembranças perdem a clareza da mesma forma que esses textos diluídos.

Considero também que a escrita é um registro apurado de precisão, capaz de possibilitar a superação de barreiras geográficas e temporais, acessando relatos e ideias de autores falecidos ou que moram em lugares distantes, da mesma maneira que acessamos textos de autores contemporâneos e conterrâneos.

Metaforicamente, a escrita é uma forma de conservar o tempo. Portanto dissolvê-la é uma maneira de abdicar do passado, desembaraçando-se da necessidade de tentar preservá-lo.

Apenas falsificando e substituindo o documento original é possível mudá-lo. Temos na ficção um

exemplo dessa falsificação de registro - em 1984, de George Orwell, o protagonista do romance trabalha reescrevendo trechos de documentos como jornais e livros. Apesar de 1984 felizmente ser uma ficção, a alteração de registros ocorreu diversas vezes na realidade. Essa prática existe desde o passado remoto e não deixou de ocorrer no passado recente:

“Votada pelo Senado, a damnario memoriae consistia em condenar alguém, post mortem, ao silêncio, ao esquecimento. Tratava-se de eliminar seu nome dos registros públicos, ou então banir as estátuas que o representavam (...). Aliás, fazia-se a mesma coisa sob o stalinismo quando se eliminava das fotos do (sic) ex-dirigente exilado ou assassinado. Foi o caso de Trótski”. (ECO in CARRIERÉ; ECO, 2010: p.192).

Contudo, apesar de a escrita estar envolta em uma aura de verdade e perenidade, o registro não é perpétuo. Com o tempo ele se degrada naturalmente, e quando lido em outro contexto, mesmo que pelo próprio autor, seu sentido se altera. Isso não significa que o registro seja inútil, contudo ele não deve ser confundido com a realidade - o registro não a alcança.

Devido ao significado de escrever e preservar o registro escrito é interessante considerar que a ação de diluir é uma parte essencial do trabalho, tão importante quanto o resultado em si mesmo. Para reforçar a remissão ao texto selecionei para a série final apenas os diários que foram escritos com caneta esferográfica de tinta azul e preta. A seleção desse material se deve ao fato de que é o mais utilizado na escrita à mão, e sendo assim essa opção ajuda a manter a referência ao texto, preservando nesse trabalho a abordagem do elemento gráfico da escrita que, diferente de todos os outros trabalhos, é focada em Des-escrevendo na ausência desse aspecto, no vestígio dessa escrita diluída.

A técnica utilizada para a diluição consistiu em colocar um caderno de cada vez, aberto no meio, sobre uma bandeja retangular de aproximadamente 40 x 30 x 3 cm e aplicar o tíner sobre as páginas, abrindo em outros pontos aleatórios para a segunda e terceira aplicações, de forma a todo o texto ser diluído.

Assim sendo, a diluição da tinta foi heterogênea: as folhas que receberam o tíner diretamente apresentam tons menos saturados e mais claros de azul do que as folhas que receberam o solvente absorvido pelos papéis até atingi-las. Estas últimas apresentam tons mais saturados de azul por terem sido menos agredidas pela ação do tíner e por terem recebido o pigmento resultante da tinta que escorreu das folhas que as sobrepunham. Não foi apenas a concentração

de tíner recebido pela folha que influenciou na tonalidade de azul de cada mancha, mas também a quantidade de tinta aplicada sobre o papel no momento da escrita.

Posteriormente aprimorei os resultados obtidos por essa técnica e, por meio dessa exploração, se deu a produção do livro de artista Blue of my oblivion (figura 37, p. 75). Esse trabalho consiste em um caderno contendo 26 folhas almaço costuradas centralmente em uma capa feita de papel para aquarela. Sua capa é branca, com uma grande mancha azul escura centralizada na metade superior. Nas treze primeiras folhas os versos de autoria de Fiona Apple, cantados na música Sullen Girl, “But it’s calm under the waves/ In the blue of my oblivion” aparecem escritos em diferentes composições, variando em posição, cor (azul, preto ou ambos) e saturação do traço (a frase pode não ser sobreposta, ser sobreposta uma vez, duas vezes, ou três vezes).

Além disso, as diferentes configurações e combinações dos versos receberam diferentes quantidades de tíner: pouca, média, ou muita. Resultando assim em diversos graus de diluição do texto e saturação da cor, as partes que receberam menos tíner foram menos diluídas e apresentam maior saturação de cor; já aquelas que receberam mais tíner são menos saturadas e menos legíveis em relação às primeiras, possibilitando dessa forma observar as possibilidades visuais geradas pela diluição.

Essa nova experiência com a técnica de diluir a tinta das canetas esferográficas proporcionou um entendimento acerca da formação das manchas de tinta e de detalhes técnicos gerais. Constatei que o controle da quantidade de texto (que está vinculada à quantidade de tinta sobre o papel) e da quantidade de tíner produz resultados bastante variados.

Os efeitos produzidos pela variação nas quantidades dos materiais utilizados podem ser explorados em relação a linhas não diluídas presentes no papel almaço, ou combinados, criando gradações. A técnica pode ser utilizada para criar efeitos de esvanecimento ou surgimento gradual com apenas um papel, contendo palavras ou imagens, posicionado sobre outros papéis no momento da aplicação do solvente, pois as folhas que recebem indiretamente o tíner o absorvem e também apresentam manchas.

A absorção do material foi muito importante na composição de Des-escrevendo, pois as folhas que constituem os diários não receberam o tíner uma a uma, mas em conjunto. Dessa forma houve folhas que receberam o solvente indiretamente e esse material se acumulou, carregando resquícios da tinta nas folhas que as sobrepunham.

Tanto em Des-escrevendo quanto em Blue of my oblivion, a cor azul foi escolhida por sua qualidade de remeter à escrita à mão. Contudo, para uma análise detalhada do trabalho é preciso ir além da primeira razão que motivou essa escolha e entender o azul como elemento de construção do trabalho finalizado.

Documentos relacionados