• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III ALÉM DO ASPECTO GRÁFICO

A COR AZUL: DESDOBRAMENTOS

3.2 PONTO DE CONFLUÊNCIA

Em 2014 produzi uma última série constituída pelos livros de artista Comentário sobre a vida (figura 38, p.82), Sobreposições de Laxness (figuras 39, p. 83 e 40 p. 84), e A letra A (figuras 39, p. 73 e 40 p. 74), na qual sinto que minha pesquisa atingiu um ponto de confluência, pois nela todas as formas de utilização da escrita empregadas nos trabalhos anteriores se reúnem, encontrando sua síntese.

Em Caderno, por exemplo, o foco é o aspecto gráfico da escrita, em Blue of my oblivion há a apropriação de texto. A fumaça é a forma de ver o vento e Se eu fosse escrever sobre as estrelas possuem textos escritos especialmente para sua produção e tratam da efemeridade da experiência e da memória transformada em registro impreciso. E em Des-escrevendo encontramos esse mesmo registro impreciso, incapaz de parar o tempo, destruído e recusado. Entretanto, nenhum desses trabalhos abarca todas essas soluções estéticas e conceituais simultaneamente.

Entretanto, nesses últimos livros tais abordagens se misturam, levando a uma visão mais ampla e completa. O resultado é a resposta à pergunta inicial: Como relacionar desenho e escrita na criação de uma poética própria?

Comentário sobre a vida mede 17 x 175 cm e os outros dois 15 x 150 cm. Todos foram feitos sobre papel-arroz com caneta esferográfica azul. O primeiro é constituído por um texto de minha autoria, escrito no momento da produção do trabalho, que recebeu a interferência do tíner e de tinta azul que o danificaram, atrapalhando a legibilidade. Sobreposições de Laxness também apresenta texto, mas são trechos selecionados do livro Gente Independente, do escritor islandês Harold Laxness, combinados de diversas formas e diluídos com tíner. Neste trabalho, porém, a legibilidade permanece pouco alterada. O último, A letra A, apresenta diversas composições redondas que se parecem com mandalas e são constituídas exclusivamente pela letra “A” escrita em diversos estilos.

Cada trabalho desse grupo possui uma configuração e uma abordagem diferente. Apesar de todos serem feitos com os mesmos materiais, papel-arroz, caneta esferográfica, tíner e tinta de caneta, eles diferem em conteúdo. Cada um tem seu foco na experiência de um aspecto da escrita – Comentário sobre a vida na experiência de escrever, Sobreposições de Laxness na experiência da

leitura e A letra A na experiência da percepção do aspecto gráfico da escrita destituído de significado denotativo ou conteúdo fonético.

O primeiro a ser produzido, Comentário sobre a vida, é um texto de minha autoria que escrevi especialmente para esse trabalho e que foi danificado de forma a torná-lo parcialmente ilegível logo após ter sido escrito, ou seja, é um texto que nunca foi lido. Em vez de ser um registro, esse texto é um resquício da experiência de sua própria escrita.

Em Comentário sobre a vida apliquei tíner no centro do livro sanfonado acreditando que isso danificaria o texto de todas as páginas; no entanto, ele apenas tornou o texto borrado e o papel- arroz transparente. Devido a esse resultado inesperado precisei recorrer a uma aplicação de tinta azul para canetas seguida de uma segunda aplicação de tíner. Esse procedimento danificou o centro do texto em todas as páginas e dificultou a leitura da parte restante.

Apesar do resultado da primeira aplicação de tíner não ter funcionado nesse trabalho, no qual o texto precisava ser tornado parcialmente ilegível, percebendo os borrões e a transparência que o solvente proporciona nos textos escritos sobre papel-arroz elaborei o projeto de Sobreposições de Laxness. Nesse segundo livreto, em que não era necessário que o texto se tornasse ilegível, explorei a sobreposição criada pela maior transparência do papel nas áreas atingidas pelo solvente e a mistura de diversas partes do texto a partir da tinta borrada.

O texto presente nesse trabalho é constituído por trechos do livro Gente independente, de Halldór Laxness, referentes a um dos personagens. Esses trechos foram primeiramente escritos na ordem em que aparecem no livro, e depois foram repetidos em outras ordens, criando outras relações além da cronológica, por exemplo: trechos nos quais o personagem passa por situações agradáveis e está feliz foram colocados em sequência. Por fim a aplicação de tíner sobre o papel resultou em uma fusão parcial de todo o texto – um trecho se mescla com o outro por meio da sobreposição e da transparência. A ideia de misturar os trechos do livro surgiu de reflexões sobre a experiência da leitura; apesar de inicialmente acompanharmos a leitura de uma narrativa a

partir de sua ordem cronológica, após o término desta algumas passagens mais marcantes e significativas para o leitor são lembradas com mais clareza e são relacionadas entre si mesmas e a experiências pessoais do leitor. Quando pensamos em uma narrativa escrita não nos lembramos dela cronologicamente, mas sim de forma geral, em sua totalidade, da qual destacamos certas passagens.

Por fim, A letra A é um trabalho no qual a letra “a”, é escrita à mão e, em cada página, a letra é repetida em uma caligrafia diferente diversas vezes, formando assim uma composição que tem como base o círculo. O desenho nunca se repete em duas páginas, tanto pela caligrafia da letra quanto pela composição. Nesse trabalho o tíner não foi utilizado, pois seu foco é a abordagem da percepção do aspecto gráfico da escrita e para isso foi necessário preservar os traços que formam as letras.

Não é apenas em A letra A, mas também nos outros dois livros da série, que o círculo aparece. Porém, enquanto no primeiro o círculo foi feito com o auxílio de um compasso, nos outros dois ele é resultante do próprio movimento dos líquidos (o tíner e a tinta azul) ao se espalharem pelo papel arroz.

O círculo é um novo elemento, presente apenas nessa série. Pode-se considerar que é um símbolo

da completude, pois não é possível saber onde começa e onde termina. Por ser representado com a cor azul, sua simbologia de totalidade se amplia pela relação com a representação da figura do próprio planeta Terra. Considerando o contexto dos trabalhos produzidos durante minha pesquisa, essa série de livros abarca todos os elementos e características abordados durante o processo.

Os três livros sanfonados são feitos com papel-arroz, caneta esferográfica e tíner, possuem pequenas dimensões, a presença da cor azul e abordam a escrita a partir das diferentes perspectivas. A letra A tem seu foco na primeira abordagem, o aspecto gráfico da escrita; já Sobreposições de Laxness tem seu conteúdo apropriado da literatura, utiliza as sobreposições tanto no nome quanto na configuração visual, refere-se à experiência da leitura e como ela se transforma quando se torna memória; e Comentário sobre a vida retoma a destruição do registro, resultando apenas no resquício da escrita de um texto, que por sua vez é um resquício do pensamento que o elaborou.

Documentos relacionados