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Total 48 28 187 03 14 32 312 Fonte: Processos Arquivados no MTJMS

4. Crime contra a propriedade: “se é furto não é roubo”.

4.2. A arte de furtar e roubar.

Em 1884 o delegado de polícia abriu inquérito policial para verificar o roubo de um crucifixo de ouro da Igreja da Candelária de Corumbá. Solicitou aos peritos que fizessem o exame de corpo de delito na Igreja. Constaram que o ato fora praticado com violência pelo autor do crime, configurando-se, portanto, roubo e não furto. Pelos depoimentos das testemunhas a polícia chegou ao nome do suposto criminoso: Sebastião.

Para roubar o crucifixo da Igreja, Sebastião se serviu dos andaimes que se encontravam do lado de fora, já que a mesma estava passando por reparos em sua estrutura física. Utilizando-se de escadas e outros artifícios Sebastião subiu no altar e retirou o crucifixo entregando-o a uma amiga chamada Cristina, pedindo que o guardasse por algum tempo. Estas informações encontram-se nos depoimentos das testemunhas e dos réus. O inquérito

foi, então, remetido ao juiz municipal e ao Promotor Público para que apresentasse o libelo acusatório. Contudo, o Promotor negou-se a apresentar a denúncia alegando que:

Não tem procedimento official da Justiça não só porque o crime se ou é furto e não roubo, em vista do Corpo de Delicto que nega ter havido violência ou arrombamento na Igreja da Candelária, como também porque os objetos subtraidos não pertenciam a Fazenda Pública nem ella sofreu damno algum.16

Ao analisar o exame de corpo de delito verificamos que o mesmo não correspondia aos argumentos do Promotor Público para desqualificar o ato denunciado, pois o crime, conforme o laudo pericial foi praticado com violência. No laudo dos peritos constam os quesitos propostos pelo Código de Processo Criminal de Primeira Instância (1832) com as seguintes questões e resultados obtidos:

1o se há vestígios de violência em alguma das portas, janellas ou

compartimentos da supra dita Igreja? Sim, houve vestígios de violência para o criminoso penetrar na Igreja, quer na porta, nas janelas e compartimentos; 2o quais sejão esses vestígios de violência? Prejudicado com as repostas do primeiro;

3o se por essa violência foi vencido ou podia vencer-se obstáculos que havia? Também prejudicado;

4o se havia obstáculos? Que havia obstáculos para o criminoso vencer; 5o se se empregou força, instrumento ou aparelho para vencel-os? Empregou força minúscula para vencel-os;

6o qual foi essa força, instrumento ou aparelho? Prejudicado com a resposta do quinto;

7o qual o valor do damno cauzado? Nem um valor dão ao damno cauzado por não existir por quanto o Criminozo para praticar o Crime nenhum damno fez na referida Igreja.

Podemos apontar duas questões que se destacam neste processo crime: a presença de cúmplices nos crimes de furtos e roubos; e a divergência entre as alegações do Promotor Público e o laudo pericial. Relacionada ao primeiro aspecto pode-se afirmar que a prática criminosa surgia das relações de proximidade estabelecidas entre amigos, parentes, companheiros de trabalho e lazer que se juntavam cotidianamente ou de forma esporádica.

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A exemplaridade do crime praticado por Sebastião tendo como cúmplice sua amiga Cristina comprova o interesse por este tipo de objeto e da forma como os delinqüentes procuravam despistar a polícia entregando à coisa furtada ou roubada a outra pessoa, que poderia nem ter conhecimento de ser a prova de um crime. Outra questão que permeia a decisão do Promotor Publico se refere a diferenciação entre propriedade da Igreja e propriedade do Estado. A justiça deveria envidar esforços a recuperação dos bens do Estado e dos particulares e providenciar a prisão e o julgamento dos criminosos, nisso consistia a responsabilidade do poder público. As interferências da Igreja em questões políticas do Império levaram, em muitas circunstancias, a conflitos e rebeliões (CARVALHO, 2006, p. 186). Apesar das divergências de poder entre a Igreja e o Estado, o fato é que a Igreja funcionava como um canal de acesso até a população. Portanto,

Durante o Império o governo insistiu em não abrir mão do controle da Igreja, pois além de ser ela um recurso administrativo barato (os párocos recebiam na década de 1870 um salário equivalente ao de proletariado burocrático), possuía grande poder sobre a população, de que indiretamente o governo se beneficiava. (CARVALHO, 2006, p. 186).

O caso abaixo permitiu identificar outro tipo de ardil empregado pelos criminosos nos crimes de furtos e roubos. O Major Flavio decidiu levar seu camarada Joaquim na viagem que faria até a Colônia Militar de Itapura:

No caminho de volta à vila de Paranaíba Joaquim subtraiu além de duzentos mil réis do mesmo Major Flavio ainda mais um conto de réis pertencente à Pessoa de quem é o referido Major testamenteiro e para poder apresentar-se com o dinheiro nesta Viloa fez uma carta em nome de uma mulher que diz ser sua cazeira, residente no Barretos. Como que ela lhe remetesse o dinheiro para as suas despesas de viagem, tem essa mulher ficado em plena ignorância dessa carta que foi reconhecida como falsa pelo exame que nela procedeu-se pelo Delegado de Polícia cujo exame junto se oferece a V.Sa. como documento, bem como outra carta em que Joaquim confessou seo crime.17

As manobras de Joaquim para furtar o dinheiro, acabaram levando-o ao Tribunal do Júri Popular. Sendo denunciado no artigo 167 do CC no máximo das penas e com apelação do 17

Promotor Público as circunstancias agravantes do art. 16 §§ 4o; 9; e 10; Joaquim não teria muitas chances para desfazer a imagem do vigarista oportunista.

Este crime permite algumas constatações: em primeiro lugar, percebe-se que a polícia empregou método específico à comprovação da fraude nas assinaturas das cartas apresentadas por Joaquim como prova de inocência. O exame caligráfico era uma das técnicas mais conhecidas e utilizadas pela Justiça nos casos de documentos forjados. Lesar outra pessoa empregando este tipo de estratégia parecia aos olhos da população e da justiça como uma conduta imoral e inqualificável. O criminoso demonstrava ter agido com premeditação e capacidade intelectual, o que depunha contra qualquer argumentação plausível em sua defesa. Em outros termos, dificilmente o réu conseguia mudar uma opinião formada a priori devido às características da ação praticada.

Em segundo lugar, cada uma das testemunhas informou que segundo o réu o dinheiro fora “ganho no jogo”; para outras que o recebera de “sua caseira”; e ainda que tivesse recebido uma “dívida antiga”. As contradições que aparecem nos depoimentos sobre a origem do dinheiro, levaram o juiz a enviar o caso ao Tribunal do Júri para que se procedesse a um julgamento popular. O réu se encaixava plenamente na figura do vigarista e, como tal deveria ser repelido da convivência com as pessoas de bem, conforme os costumes da época.

Em terceiro lugar, temos a questão do Tribunal do Júri18 encarregado de julgar um crime de furto, coisa não muito comum nos tribunais da época. Previsto na legislação brasileira desde 1822, o Tribunal do Júri tinha como incumbência, no inicio de sua existência, tratar dos delitos da imprensa. Com a homologação do Código Criminal, de 1830, e o Código de Processo Criminal, de 1832, a instituição do Júri Popular passou a ter outras atribuições na Justiça. Motivo de polêmica nas últimas décadas do século XIX, o Tribunal do Júri, foi regulamentado pela lei de 1871 e chegou à República.

Estudos mais recentes realizados por historiadores, sociólogos, antropólogos, entre outros, tem mostrado que o Tribunal do Júri Popular deve ser visto como uma importante peça nas engrenagens do sistema judiciário no Brasil. A historiadora Elizabeth Cancelli a respeito do assunto ponderou que:

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De acordo com Boris Fausto no período imperial “a lei n. 562, de 2 de julho de 1850 (e o Regulamento n. 707, de 9 de outubro), subtraiu da competência do Tribunal do Júri o julgamento dos crimes de moeda falsa, roubo, homicídio nos municípios da fronteira do Império, resistência e tirada de presos, e bancarrota. Esta competência foi restabelecida pela Lei n. 2033, de 20 de setembro de 1871. A Constituição republicana de 1891 manteve a instituição, que passou a ser regulada pelas leis do Estado, pois interpretativamente entendeu-se que estes tinham competência constitucional para legislar sobre normas de processo.” Ver: FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 226.

Depois da promulgação da Constituição, e em conseqüência do laconismo constitucional, argumentava-se sobre a propriedade de manter júri apenas no foro federal ou nos foros estaduais. [...] O próprio Supremo Tribunal, em acórdão de 7 de outubro de 1899, decidiu sobre as características do Tribunal do Júri. A composição dos jurados deveria ser feita entre cidadãos qualificados periodicamente por autoridades designadas pela lei, tirados de todas as classes sociais, tendo as qualidades legais previamente estabelecidas para as funções e inadmissão da respectiva lista. (2001, p. 239)

O Juri Popular pode ser visto como uma forma democrática nos julgamentos dos criminosos e não criminosos. A importância do Júri Popular foi amplamente discutida no final do século XIX, até mesmo, nas sociedades consideradas mais civilizadas.

No caso de Joaquim, o Júri Popular concluiu que a carta era uma conseqüência do crime de furto, portanto decidiu-se que o réu fosse “incurso no máximo das penas do art. 167 do Código Criminal, condenado a 4 anos de prisão com trabalho e multa de cinco por cento do dano causado e mais as custas pelo réu em que o condeno”.

Observa-se nesta sentença que os crimes que denotavam algum tipo de perícia pessoal deveriam ser punidos com rigor para que servissem de exemplo a outros criminosos. A violência contra a pessoa ou a propriedade ganhou novas conotações conforme as cidades se tornavam mais urbanizadas e complexas, o que pode ser visualizado pelo tipo de objetos furtados ou roubados (Cf. Tabela 9). Na distribuição dos objetos subtraídos pelos supostos réus verificou-se que os mesmo se concentravam em seis séries conforme explicita a tabela abaixo:

Tabela 9 – Objetos furtados ou roubados Objetos Número de casos Gado/cavalo 06 Jóias 01 Dinheiro 07 Roupas/objetos pessoais 03 Mantimentos 02 Derivados do gado 02 Total 21

A diferença numérica entre os furtos/roubos de gado (06) e dinheiro (07) confirma o que já vimos colocando, ou seja, estes bens apresentavam a vantagem de serem repassados aos receptadores antes que a polícia fosse acionada; além da valorização que vinham adquirindo nas sociedades modernas Em relação aos furtos de animais, salientamos que os fazendeiros e lavradores eram os mais vitimizados como também era comum que antigos empregados fizessem uso desta prática criminosa até porque conheciam as marcas de ferro de cada proprietário e como fazer para subtrair os animais nos campos.

Não era incomum o envolvimento de outros empregados dos fazendeiros nos crimes de furtos. O fato é que este tipo de crime raramente era praticado por uma única pessoa. Normalmente de dentro da fazenda outros empregados davam apoio, repassando informações valiosas como, por exemplo, onde estava o patrão, quem estava na sede, quantos homens vigiavam a propriedade e assim por diante.

Após a execução do furto e antes que fossem pegos pela polícia ou pelo proprietário, os envolvidos partilhavam o lucro obtido com o crime. Como as fronteiras jurídicas não eram vigiadas a prática costumeira era transportar o gado para a região do Paraguai ou da Bolívia e vende-lo aos receptadores. (CORRÊA, L. 1999, p. 153). Aliás, como já foi enfatizada anteriormente, esta prática era bastante usual ao sul de Mato Grosso.

No dia 7 de agosto de 1887 D. Maria das Dores, viúva do tenente coronel Simplício, proprietária de uma fazenda, distante 50 léguas da vila de Miranda teve 1.000 reses furtada por Marculino e José. Parte do gado foi carneada e vendida à população, deixando um rastro de testemunhas, o que permitiu a polícia chegar até os culpados. Após os trâmites da investigação policial e ouvida as testemunhas o Juiz remeteu o processo ao Tribunal do Júri Popular que condenou Marculino e José no grau máximo do art. 257. Mas, o mesmo Tribunal absolveu os outros seis envolvidos no crime, alegando não ter sido provada a culpa dos denunciados.19

Convém ressaltar que durante a Guerra com o Paraguai houve um decréscimo nos estoques dos rebanhos bovinos tanto no sul de Mato Grosso quanto no Paraguai. Para desenvolver economicamente a Província, nas décadas após o fim do conflito, foi preciso repor os rebanhos, o que “movimentou um fluxo interno e externo de comércio boiadeiro, lícito ou ilícito.” (CORRÊA, L. 1999, p. 178).

A essa movimentação comercial do gado “em pé”, seguiu-se o comércio clandestino, praticado pelos proprietários e também por aqueles que furtavam cabeças de gado em terras

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mato-grossenses e vendia-os nos países vizinhos. Contudo, não se pode esquecer que este foi um período histórico marcado por práticas singulares que visavam a manutenção do pacto de interesses intra-elite:

A trilha dos descaminhos pela fronteira paraguaia foi aberta, portanto, num determinado e especial momento histórico do pós-guerra e não mais se fechou, enquanto atendeu aos interesses dos pecuaristas e grandes proprietários do Sul do Estado, assegurando a manutenção de um pacto político responsável pelo acomodamento dos grupos oligárquicos (do Norte e do Sul) em Mato Grosso. (CORRÊA, 1999, p. 178)

Mas, retomando os indicadores da Tabela 9 temos, ainda, os casos de furtos e roubos de valores em dinheiro com acentuada vantagem se comparada à subtração de jóias, roupas/objetos pessoais e mantimentos.

É comum argumentar, para explicar esta problemática que a exigüidade de recursos financeiros de que dispunham os livres pobres justificava o envolvimento destes com os crimes de furtos e roubos. No entanto, a análise dos processos crimes permite inferir que os setes (07) furtos ou roubos de dinheiro foram praticados por aqueles que gozavam da confiança da vítima e não por necessidades de sobrevivência. Nesse sentido, o crime era visto como uma atitude premeditada. Em Miranda o comerciante Ângelo teve sua casa de negócios roubada pelo gerente Máximo que fugiu levando consigo todo o dinheiro20; o mesmo ocorreu com Rita na cidade de Corumbá, cujo criminoso levou-lhe a quantia de noventa e cinco mil réis.21

Desta forma, verifica-se que pessoas contratadas para desempenhar algum tipo de ocupação no comércio ou nas residências acabavam subtraindo quantias em dinheiro ou algum objeto de maior valor. Aparentemente a confiança entre as pessoas se estabelecia a partir do sentido de honestidade, moralidade e virtudes do homem de “bem” segundo as concepções e necessidades circunstanciais de uma elite economicamente privilegiada. A ruptura deste padrão seria implementada pelas novas formas de sociabilidades patrocinadas pela urbanização e industrialização do país.

Para o final do século XIX os furtos ou roubos já não podiam mais ser classificados como banais, pois o valor dos bens influenciava nas escolhas dos criminosos. Não era mais uma questão de sobrevivência ou casos fortuitos, ao contrário, com a mudança econômica 20

MTJMS, cx. 166, proc. 11 – 1878 – Comarca de Miranda – Roubo.

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introduzida pelo fluxo de capitais através das importações e exportações, a expansão da cafeicultura e a crescente urbanização, o mercado de produtos subtraídos tendeu a acompanhar a valorização dos bens consumidos e do dinheiro que circulava através do comércio e dos pagamentos rotineiros.