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Questões metodológicas na análise das fontes.

2. Tipologias criminais e as fontes oficiais.

2.2. Questões metodológicas na análise das fontes.

A historiografia contemporânea que utilizou os processos criminais enquanto documentação empírica tem demonstrado que parcelas significativas dos administradores da justiça, no século XIX, tanto podiam apelar para intransigência em suas interpretações dos fatos ocorridos como serem complacentes nos julgamentos dos casos. Algumas considerações se depreendem dessas constatações, também encontradas em nossa pesquisa.

Primeiramente, constatamos que o peso da decisão judicial em processos criminais levou muitos magistrados a recorrerem à tática de postergar ao futuro uma sentença punitiva aos réus, sobretudo, para aqueles que tinham vínculos com proprietários de terras e escravos. Assim, pequenos furtos e roubos ou homicídios, não raro, receberam a mesma atenção dos juízes. Os procedimentos jurídicos se arrastavam por décadas até serem arquivados ou ficarem nos arquivos dos cartórios inconclusos.

O caso de José Jacinto, índio Terena, analisado no próximo capítulo, espancado e chicoteado a mando de um fazendeiro, nos serve de modelo de como a justiça titubeava de suas responsabilidades ao ter que decidir pela punição do réu. A imputação de uma sentença pelo juiz corresponderia à punição ao proprietário de terras, escravos e gado, pelo crime cometido. Entretanto, a opção foi protelar o julgamento final, desfavorecendo o direito do homem comum. Embora a vítima já tivesse passado pelo exame de corpo de delito, o juiz pediu como segunda prova à formação da culpa o exame de sanidade de Jacinto, tentativa para desqualificar a denúncia de ofensa física impetrada pela vítima.3

Como segundo aspecto observou-se que outras estratégias eram empregadas com o propósito de intensificar a dominação através do aparato jurídico que favorecesse o poder local em detrimento dos homens livres pobres. Referimo-nos a questão de atribuir as

3 Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, cx. 166, proc. 09 – 1880 - Comarca de Miranda –

responsabilidades pelos conflitos a essa categoria cujo peso do analfabetismo servia de pretexto ao estigma de possuírem pouca inteligência na resolução dos problemas cotidianos, os que os tornavam incapazes de fazerem suas escolhas pessoais, precisando sempre da tutela dos coronéis ou das autoridades.

As práticas criminosas, nessa perspectiva, estariam diretamente vinculadas às dimensões culturais e biossociológicas da camada inferior da sociedade em estudo. Concepções ideológicas presentes no pensamento do Chefe de Polícia:

Ainda não é satisfactoria, entre nós, o estado de segurança individual e de propriedade; as causas que mais actuão para isso são: - a falta de instrução, que não tem sido derramada ate as últimas camadas sociaes, a deficiência da força pública, da qual tratarei especialmente, a morosidade, ou antes, a incúria de juizes, que, sob fúteis pretextos, deixão de formar culpa aos criminosos, cujos processos jazem esquecidos na poeira dos cartórios, ademasiada condescendência do Jury em absolver réos, ainda os de maiores crimes, etc.4

O fato é que as tendências conflituosas se espraiavam por todas as camadas sociais, atingindo, principalmente, aqueles que possuíam menos poder de barganha quando chegavam as barras dos tribunais. Muitos dos homens daquele período acreditavam que o problema da criminalidade seria parcialmente resolvido se a população fosse dotada de mais instrução formal, isto é, educação escolar. E, o Estado estava disposto a investir seus parcos recursos financeiros na educação da população, sobretudo das crianças.

No entanto, as condições econômicas da Província de Mato Grosso tornavam esta missão quase uma nulidade, visto que os tais recursos eram diminutos e manter professores em locais onde prevalecia à violência e o ataque dos indígenas não era tarefa fácil aos administradores públicos.

Percebemos, pelos discursos oficiais, que a educação não deixava de ser mais um instrumento ao controle dos comportamentos e dos impulsos transgressivos que permeavam

4 Relatório com que o Sr. Coronel José Maria Alencastro, Presidente da Província de Mato Grosso, abriu a 1a

Sessão da 24a Legislatura da respectiva Assembléia apresentado no dia 15 de junho de 1882. Anexo I Relatório do Chefe de Polícia José Leite Galvão.Cuyabá: Typ. de JJR Calháo, 1882, p. A1. Center for Reserch Libraries Brazilian Government Document Digitization Project. Provincial Presidential Reports (1830-1930) – Mato Grosso. Fundação Andrew W. Mellon. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/422/0000A1.htm. Acesso em: 16 de janeiro de 2008.

as relações individuais e, conseqüentemente intergrupais, o que demonstra ter sido necessário a construção de uma lógica sócio-político para dar andamento ao projeto da ordem.

A visão de que o ensino escolar poderia moldar os comportamentos e condutas, afastando assim os populares dos perigos da delinqüência, era utilizado como argumento revelador do grau de inteligência e desenvolvimento de um povo, de acordo com a visão moralista do então Diretor Geral de Instrução de Cuiabá, em 1882:

Com grande dificuldade pode esta Diretoria colher alguns esclarecimentos sobre o ensino particular e doméstico fora dos centros populosos, visto as distancias das sedes das inspectorias parochiaes inhibirem os respectivos inspectores, cujas funções são gratuitas, de fazerem viagens dispendiosas às vezes com o fim único de nos fornecer os dados estatísticos precisos. As escolas públicas tiveram este anno maior freqüência que nos annos anteriores, mas poderia ter o duplo, se toda a população escolar concorresse a aproveitar o beneficio que o Estado lhe proporciona. Convém quanto antes remover a causa de um acontecimento tão notável, residindo ella nos próprios Paes, os quais, uns por desleixos, outros por falta de recursos deixam de dar a seus filhos o pão do espírito tão útil ao progresso dos estados, tão necessário a harmonia e equilíbrio social tão conveniente à felicidade dos mesmos. O preparo da mocidade para a realização das grandes esperanças do paíz é o pensar constante do nosso illustrado Monarcha, que em todas as Fallas do Throno não o deixa de exigir; é idéia fixa de muitos estadistas notáveis; é o pomo de ouro dos partidos militantes. Julgo necessário lançar-se mão dos meios enérgicos para que todos cumpram os seus deveres; e preciso por em execução os capítulos 7o , 8o e 9o do regulamento vigente, a fim de conseguir-se que o povo se instrua. Abrir escolas é fechar cadeias, disse um sábio pensador; o valor de uma Nação está na razão direta de volume de sua inteligência, declarou Frederico o Grande; a sciencia, escreveu Cossino Ridolfi, é a mãe dessas virtudes fortes, generosas, amáveis, que são a honra, e fazem o poder e a prosperidade dos povos. Em vista de opiniões tão autorisadas, por que ainda hesitar-se? Porque tentar persuadir aquelles que não querem crer? Na prática da vida, disse ainda um ilustre professor, um espírito totalmente inculto, se não é um instrumento inútil, é, às vezes, um agente infeliz dos mais funestos resultados. A história negra dos crimes é a beographia do ignorante.5

Esse tipo de formulação permitiu identificar os significados que norteavam as práticas cotidianas na condução dos processos criminais e que a partir das leituras e análise nuançavam um mundo onde as relações podiam suscitar alto grau de conivência com o poder 5 Relatório apresentado pelo Diretor Geral de Instrução de Cuiabá, no dia 5 de abril de 1882, dr. Dormevil José

dos Santos Malhado. Anexo I, S1-1. Cuyabá: Typ. de JJR Calháo, 1882, p. A1. Center for Reserch Libraries Brazilian Government Document Digitization Project. Provincial Presidential Reports (1830-1930) – Mato Grosso. Fundação Andrew W. Mellon. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/422/0000A1.html. Acesso em: 16 de janeiro de 2008.

de mando local ou também desvelar as lutas de oposições a esse poder. Conforme avançava nossa pesquisa documental, mais claro se revelava o mosaico social em Mato Grosso, para as últimas décadas do séc. XIX e início do XX. Nessa perspectiva, o procedimento de selecionar, classificar, quantificar e agregar os dados e as evidências permitiu apreender que os elementos da sociedade quando analisados em conjunto

“[...] formam uma soma maior do que as soma de suas partes: é um conjunto estruturado de relações, em que o Estado, a lei, a ideologia libertária, as ebulições e as ações diretas da multidão, todos desempenham papéis intrínsecos a esse sistema, e dentro de limites designados por esse sistema, que são ao mesmo tempo, os limites do que é politicamente ‘possível’.” (THOMPSON, 1991, p.77)

Esta opção subsidiada por autores como E. P. Thompson correspondeu a uma escolha metodológica orientada por pressupostos teóricos, cujos referenciais encontram-se na bibliografia relacionada à temática sobre criminalidade, crimes, justiça e relações de poder, as quais foram utilizadas em diferentes momentos neste estudo. Nesse sentido, acredito que o historiador tem o dever de explicitar como as fontes foram utilizadas – os processos criminais e relatórios provinciais – em suas interpretações.

As principais questões metodológicas adotadas e os procedimentos analíticos permitiram apresentar a correlação das injunções entre criminalidade e política; criminalidade e poder; criminalidade e grupos sociais, entre outros aspectos estes estão relacionados às tipologias dos delitos e as relações dos envolvidos em processos criminais com o aparelho da justiça, em Mato Grosso. De acordo com Boris Fausto (1984, p. 17) é possível apreender “a criminalidade em nível mais profundo, aquela que expressa há um tempo uma relação individual e uma relação social indicativa de padrões de comportamento, representações e valores sociais”.

As tentativas para se compreender uma questão tão problemática quanto à violência em sociedade nos levaram a desvendar um universo ainda pouco conhecido dos historiadores mato-grossenses. Contudo, não é pretensão assumir que este estudo é inédito em todos os seus passos, já que a historiografia regional, nacional e estrangeira foi imprescindível a esse conhecimento provisório e parcial.

Em 2004, fiz o meu primeiro contato com os processos criminais arquivados no Memorial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Naquele momento me detive apenas nos processo crimes do século XIX, da Comarca de Corumbá. Aqueles primeiros processos analisados me mostraram a complexidade das relações da justiça com os indivíduos e grupos sociais estabelecidos em Corumbá, uma das mais movimentadas Comarcas de Mato Grosso, nos anos de 1870 a 1889.

A partir dali buscamos estender o quadro analítico para outras dimensões sociais, políticas, jurídicas, econômicas e culturais, que permitissem explicar como a sociedade sul mato-grossense recebia e participava dos problemas que agitavam a vida dos brasileiros neste período, sobretudo, as questões relacionadas com a abolição dos escravos; o movimento reivindicatório do exército; e as lutas pela autonomia das províncias que só ocorreu com a implantação da República Federativa. Assim, foi preciso aprofundar as investigações horizontais e verticais para constar que no período pós Guerra do Paraguai, homens e mulheres mato-grossenses lutavam para reconstruir, do pouco que lhes restou, as famílias, os grupos de parentela e convivialidades e a inserção no mundo do trabalho.

Foi, portanto a partir dessas problemáticas suscitadas pelos documentos judiciais que busquei ampliar o campo da análise sobre a criminalidade e as relações de poder em Mato Grosso, que ora se apresenta neste estudo. Como parte constitutiva dos objetivos propostos, procurei compreender quais foram os recursos e as estratégias que a justiça utilizou na resolução dos conflitos pessoais e intergrupais, dando a oportunidade, em alguns casos, aos homens livres pobres o acesso à justiça, por conseguinte aos direito sociais, políticos e civis, ainda que em reduzida escala.

Após transcrever um total de oitenta (oitenta) processos crimes e fazer as primeiras análises, constatou-se que a “realidade” em cada Comarca, Corumbá, Miranda e Paranaíba apresentava semelhanças e diferenças nas práticas e procedimentos do judiciário. Portanto, é necessário não perder de vista que cada uma das Comarcas “constituía um imenso espaço onde, por além de suas singularidades, dominavam em geral as mesmas determinações sociais, política e ideológicas, fruto de uma organização econômico-social com tendências semelhantes” (LANGARO, 2005, p. 4), mas que também guardam especificidades fundadas pela ocupação territorial e integração da sociedade na dimensão global.

Nessa perspectiva, torna-se relevante apresentar a organização da estrutura jurisdicional estabelecida pelo Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832, o qual continuou a viger no regime republicano sendo apenas alterado em alguns pontos pela lei n. 2033, de 20 de setembro de 1871.

Figura 3 – Quadro da organização judiciária nas Províncias do Império. Comarca Juiz de direito (máximo 3, nomeado pelo Imperador)

Chefe de polícia (1 dos juízes nas cidades mais populosas) Termo Conselho de Jurados (alistamento)

Juiz municipal (nomeados pela Corte e presidente de província) Promotor Público (idem)

Escrivão de execuções Oficiais de justiça Distrito Juiz de paz (eleito)

Escrivão (nomeado pelas câmaras) Inspetores de quarteirão (idem) Oficiais de justiça (idem)

Fonte: Código de Processo Criminal de Primeira Instância do Império do Brasil.

IN: PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legislativas. São Paulo: Jalovi, 1983

Apesar de a legislação apresentar toda uma estrutura respaldada pelos antigos cânones legais os quais priorizavam a hierarquização das funções dentro do judiciário, constatou-se pela pesquisa que nem sempre isto foi possível. Em diversas Comarcas a falta de funcionários na burocracia jurídica comprometeu o andamento dos processos crimes e a distribuição da justiça. Assim, ao reler as obras de Caio Prado Junior, Ilmar Mattos e Ivan de Andrade Vellasco, constamos que de fato era comum que homens sem formação em Direito exercessem funções dentro do aparato jurídico como já haviam afirmado estes autores. Questões que estiveram presentes até as duas primeiras décadas do século XX, nas comarcas mato-grossenses.

Como parte constitutiva da problemática, buscamos delinear as regularidades e os desvios de padrões comportamentais tanto daqueles cidadãos comuns que aparecem nos processos crimes quanto dos outros elementos envolvidos com o aparelho judicial e político a partir dos dados quantitativos e qualitativos obtidos com as análises das tipologias criminais e das variáveis selecionadas: a profissão/ocupação, a condição dos envolvidos no processo como vítima, réu/ré ou testemunha, a procedência (local de origem), o sexo, a arma utilizada na prática criminosa e os resultados das sentenças. Nesse sentido, verificamos que nem sempre foi possível estabelecer limites claros entre as variáveis e as categorias selecionadas para este estudo, já que as fronteiras das experiências em sociedade são fluidas, dissimuladas e complexas.

A heterogeneidade da sociedade mato-grossense se revelava em cada processo analisado, demonstrando a complexidade das relações sociais estabelecidas à época. Categorias sociais que aparecem na produção das fontes em muitos casos carregadas de estereótipos e preconceitos, revelando que embora os filtros, deslocamentos temporais e deformações, fossem para encobrir as falhas da justiça, também serviram como mecanismos da lei envoltos em “guerrilhas burocráticos” para fortalecer o acesso a justiça no momento em que novos personagens políticos entram em cena questionando os poderes constituídos.