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As especificidades na produção dos processos crimes e relatórios oficiais.

2. Tipologias criminais e as fontes oficiais.

2.1. As especificidades na produção dos processos crimes e relatórios oficiais.

Buscamos compreender através da análise documental selecionada para esta pesquisa, quais eram as configurações sociais, em especial a política e a jurídica, quando da produção das fontes - os processos crimes e relatórios oficiais – nestas micro-sociedades cujo peso das hierarquizações administrativas dependiam da força política e jurídica, daqueles grupos mais próximos ao poder central. Observando que os laços políticos e jurídicos estabelecidos ao longo da ocupação e desenvolvimento de Mato Grosso, entre poderes central e local, colaboraram à consecução do projeto de imagem de nação civilizada e progressista, o qual se consolidou com o pleno exercício do poder que:

Unia de um lado todos os súditos ao Imperador, desde o mais pobre dos cidadãos da mais distante freguesia do ‘Sertão’ até o senador do Império ou os conselheiros do Estado; e ligava, de outro, cada um dos homens livres tanto aos que se encontravam acima quanto aos que se encontravam abaixo na escala hierárquica, por meio de uma cadeia de lealdades e fidelidades, gerada por um processo cumulativo de favores e encargos recíprocos, [...]. (MATTOS, 2004, p. 164)

No conjunto dessas relações fundamentais estabelecidas entre proprietários de terras, comerciantes, homens livres pobres e burocracia, o aparato jurídico encarnava o avanço do poder público na esfera judicial, em detrimento do poder político dos grandes latifundiários. Por conseguinte, com a presença mais constante da justiça nas comarcas através de juízes, promotores e Tribunal do Júri ampliaram-se os usos sociais da justiça. Assim, a dinâmica produzida no cotidiano jurisdicional contribuiu ao fortalecimento das práticas de regulação das relações funcionais entre indivíduos e sociedade; indivíduos e Estado; e Estado e sociedade.

A busca pelo equilíbrio social através da regulação dos comportamentos operava em dois sentidos: por um lado à sociedade cobrava posturas e atitudes dos indivíduos condizentes com os padrões de ordem e civilização almejadas, expectativas contributivas ao fortalecimento das bases do poder das instituições administrativas e jurídicas; por outro lado ao delegar cotas de poder aos grupos privilegiados, o Estado ampliava os antagonismos entre os indivíduos e os grupos sócio-políticos, o que por sua vez levou em diferentes momentos e circunstâncias a reações de alheação ou anarquia por parte daqueles que se opunham a elite política no exercício do poder. (PALERMO, 1992, p. 92)

Dessa ambigüidade resultou que a relação funcional que se estabeleceu nas esferas do poder também serviu para corroborar os estreitos vínculos do poder judiciário, enquanto poder público e instituição do Estado, com a elite local. Vínculos de favorecimento e leniência presentes nos depoimentos, interrogatórios, exame de corpo de delito e sentenças, comprometiam a autonomia da instituição jurídica sobre o poder de julgar e decidir o andamento das punições e absolvições, conforme demonstraremos nos capítulos seguintes.

De outro lado quanto mais o Estado aumentava as divisões e classificações sociais mais se estreitavam às relações de interdependência, integrando indivíduos, sociedade e Estado. Dessa forma, cada indivíduo era parte essencial nas responsabilidades pela manutenção do controle da violência física através de seu próprio comportamento social. Assim, a interdependência social entre indivíduos e grupos fez com que prevalecesse uma

organização centrada no ajustamento dos comportamentos pautados por códigos morais e legais condizentes com a realidade sócio-cultural dos mato-grossenses e os interesses de um poder regido pelas determinações dos grupos da elite local e estadistas do Império.

O mais comum na visão dos homens que governavam a Província era imputar as causas das desordens sociais à falta de moralidade daqueles que estavam na base da pirâmide social: escravos, alforriados e livres pobres. Ainda que, as distinções entre escravos e livres fossem explícitas, as elites englobavam-nos numa mesma categoria quando se tratava de manter o controle sobre os comportamentos. Portanto, era natural recorrer ao sentido ideológico fundado no humanitarismo para impor a visão de mundo que se queria reconhecido como a mais adequada à estruturação da sociedade. Como fica claro nesta fala:

Moralizar mas não corromper o delinqüente, eis um grande problema social, por que senhores, a sociedade não se vinga, pune - e a punição não ultrapassa os limites traçados pela própria dignidade humana, pelas leis de todos os Estados – e pelos generosos estímulos do coração.2

Observa-se que a intenção do autor do discurso era estabelecer nexos entre moralidade e corrupção; justiça e punição; e lei e ordem. Habituados a dar sentido paternalista e moralizador em seus discursos, os homens da elite local não perdiam as oportunidades para através dos atos da fala chamar à atenção sobre o que consideravam um grande mal a sociedade: o comportamento das “classes baixas” ou “classes perigosas”.

Entretanto, quando nos referimos à questão do paternalismo é preciso ressaltar que “o

paternalismo é um termo descritivo e frouxo. [...] Tende a apresentar um modelo da ordem social vista de cima Tem implicações de calor humano e relações próximas que subentendem noções de valor. Confunde o real e o ideal.” (THOMPSON, 32)

Nesse sentido, a sociedade idealizada se confundia com a “realidade” vivida por aqueles que conduziam as negociações na justiça e no intricado jogo político em Mato Grosso. A moralização e a punição aos criminosos estavam associadas a “razão de Estado”, aos valores morais e paternalistas, muito próprios aos homens daquela época. O que se verificou é que crime e criminalidade não eram percebidos como um desajuste 2 Relatório apresentado pelo Presidente da Província de Mato Grosso o Sr. Tenente Coronel Francisco José

Cardoso Junior, à Assembléia Provincial no dia 20 de agosto de 1871. Cuyabá: Typ. Souza Neves & Comp. a [n.d], 422 AN p. 13. Center for Reserch Libraries Brazilian Government Document Digitization Project. Provincial Presidential Reports (1830-1930) – Mato Grosso. Fundação Andrew W. Mellon. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/422/000013.html. Acesso em: 10 de novembro de 2007.

socioeconômico, cuja solução deveria ser buscada pelos poderes públicos e a sociedade. As noções e preocupações do senso comum referendavam a lógica política no sentido de dar legitimidade às práticas arbitrárias no campo da justiça e, conseqüentemente, ao poder de mando dos homens da elite, em Mato Grosso.