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Crenças e valores sociais na construção do sentido de justiça.

1. Aspectos históricos e geográficos de Mato Grosso.

1.2. Crenças e valores sociais na construção do sentido de justiça.

No Brasil as leis homologadas no séc. XIX eram ambíguas, conservadoras e antidemocráticas. Tais características fortaleceram os quistos de mandonismo, clientelismo e coronelismo. Práticas estas utilizadas pelos homens nos cargos da burocracia e facilitadas pelo poder Monárquico, já que para governar este derrogava poder aos grupos privilegiados na hierarquia política e social, haja vista os interesses voltados à centralização político- administrativa do Império.

Esta dinâmica foi marcada pelas várias correntes teóricas e doutrinas que percorriam o mundo no final do século dezenove, influenciando os intelectuais, juristas e políticos brasileiros. Contudo, dois modelos político-jurídicos se destacavam pela ênfase com que influenciavam na elaboração da jurisprudência e nos procedimentos judiciais, nas condutas dos políticos do Império e nos debates travados nas Assembléias, Gabinetes e Parlamento: a democracia norte-americana e o positivismo do Terceiro Estado em França. 11

Embora a democracia norte-americana inspirasse os intelectuais, juristas e parcela da elite política, o modelo era liberal demais na visão tanto dos conservadores como dos liberais.

10 Segundo Antonio Gramsci, o liberalismo enquanto “ideologia da livre troca” é o instrumento por excelência de

um grupo dominante e dirigente. Entendendo-se que “na realidade factual sociedade civil e Estado se identificam, deve-se considerar que também o liberalismo é uma ‘regulamentação’ de caráter estatal, introduzida e mantida por caminhos legislativos e coercitivos: é um fato de vontade consciente dos próprios fins, e não a expressão espontânea, automática, do fato econômico. “Portanto, o liberalismo é um programa político, destinado a modificar, quando triunfa, os dirigentes de um Estado e o programa econômico do próprio Estado; isto é, a modificar a distribuição da renda nacional.” GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 32.

11 A importação de modelos institucionais, de idéias européias ou norte-americanas e as adaptações colocadas em

prática servem para perceber como se desenvolveu a correlação de forças políticas nas sociedades. No Brasil, o fenômeno de adaptação dos modelos realizou combinações que atendessem a manutenção do poder do Estado por uma elite agrária a ele associado. Ver a discussão sobre a incorporação dessas idéias e modelos e as adaptações a política brasileira objetivando a construção do sentido de nação, ordem, progresso e cidadania, em CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário na República do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Por outro lado, o legado democrático da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, contrapunham-se ao regime escravista, coisa que a elite agrária não abria mão, pois a expansão da cafeicultura em direção ao oeste paulista aumentou as exportações do café, além de abrir um leque de atividades relacionadas à cafeicultura paulistana. Nesse sentido, foi mais fácil aos senhores do nordeste açucareiro e aos cafeicultores do oeste paulista aceitar a substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra do trabalhador imigrante do que os endividados cafeicultores do Vale do Paraíba.12

No conjunto das transformações tanto a abolição e quanto o progressivo crescimento da cafeicultura pressionaram pelas mudanças. O antigo sistema econômico assentado na agricultura-escravista estava ultrapassado, era, portanto, necessário adequar o que lhes convinha dos princípios liberais e positivistas para dar andamento à industrialização e a urbanização interna da nação. Nesta circunstancia os políticos brasileiros se esgrimavam pela manutenção do poder13 e dos instrumentos de controle social através do judiciário, polícia e da burocracia administrativa, já que não fazia parte da concepção de nação civilizada, na qual Mato Grosso se inseria, extinguir a base da força político-econômica naquele momento: a Monarquia.

Mesmo as regiões mais afastadas da Capital do Império, aquelas onde as economias não se processavam no mesmo ritmo do centro-sul, as noções de progresso, ordem e civilização estiveram presentes e alinhavavam os interesses locais aos planos nacionais. É possível perceber pelos discursos ideológicos a imagem de nação elaborada pelos homens que ocupavam os cargos públicos em Mato Grosso:

S. Ex. o Sr. Conselheiro Ministro do Império, em aviso circular de 31 de Maio deste anno, serviu-se me comunicar que o Governo Imperial resolvera comparecer officialmente na exposição universal que deverá ser inaugurada

12

Sobre esta questão José Murilo de Carvalho afirmou que houve uma maior resistência por parte dos políticos e cafeicultores do sul do Brasil em aceitar as medidas relacionadas a abolição dos escravos do que os do norte do país que eram mais flexíveis sobre esta questão. Ver CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 223.

13 O historiador Ilmar Roholff de Matos em seu estudo Tempo Saquarema revelou as articulações e estratégias

mobilizadas pelos Saquaremas nas lutas pela manutenção do poder político e consolidação do Estado Imperial. A propósito o autor chama a atenção para as explicações centradas apenas na dimensão econômica que segundo ele “explicar a consolidação do Estado imperial como condição para a restauração dos monopólios que distinguiam a classe senhorial nos impõem, mais do que em qualquer outro momento, a consideração da ação política dos Saquaremas. O que significa também romper tanto com uma sequênciação quanto com as explicações excessivamente comprometidas com os processos econômicos”. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Tempo Saquarema. 5a ed. São Paulo: Hucitec, 2004, p.233.

em Viena de Áustria em maio de 1873, pelo que convinha que os importantes produtos de nossa lavoura e as de outras indústrias exercidas no país, em certo grau de desenvolvimento, concorressem ao grande júri de todos os povos.

Em vista de tal recomendação e bem assim de outra exigência feita em offício de 7 de junho passado, pela comissão superior, nomeada por decreto de 30 de abril para presidir os trabalhos da exposição nacional, onde terão de ser exibidos os produtos que se destinam à exposição universal, dirige-se às câmaras municipais da Província no sentido de serem por elas obtidas e enviadas para a Capital todos os objectos que merecerão figurar na indicada exposição. É de crer que aquelas corporações procurem satisfazer uma requisição que bastante interessa à província, tornando conhecido os elementos de que ela dispõe e que tão vantajosamente lhe asseguram o porvir.14

Na visão do Presidente da Província expor os produtos nacionais nessa dimensão era a oportunidade de mostrar ao mundo europeu o quanto à nação brasileira acompanhava o movimento inovador proporcionado pela Revolução Industrial que irradiava da Europa e EUA. Ainda mais que, a “ideologia do progresso constituiu uma baliza central das culturas européias e americanas, na segunda metade do século XIX, nesse momento que foi à época de ouro das exposições” (FREITAS, 2001, p.187) e os estadistas e políticos perceberam a oportunidade para difundir as potencialidades da nação brasileira e com isso implementar o desenvolvimento sócio-econômico das Províncias, inclusive Mato Grosso. Assim, expondo os produtos locais ao mundo capitalista, acreditavam os políticos nacionais, poderem despertar o interesse dos estrangeiros para a exploração das riquezas naturais. De outra forma, também se buscava demonstrar aos olhos dos países industrializados que o Brasil era um país civilizado e que, portanto, caminhava rumo ao progresso econômico e cultural.

Nada mais condizente com a visão daqueles homens que detinham o poder público, como o Presidente citado, do que dotar Mato Grosso de uma estrutura jurídico-administrativa e policial eficazes no combate a prática criminosa e a cobrança de impostos. Visto que a inserção cada vez mais acentuada de novos elementos no conjunto social reproduzia, em escala abrangente, a interdependência das condutas individuais em função da ampliação das atividades econômicas, as quais obrigavam as instituições públicas a estabelecerem uma organização burocrática que servisse ao controle dos comportamentos e na regulação das

14Relatório Apresentado à Assembléia Legislativa da Província de Mato Grosso, no dia 4 de outubro de 1872,

pelo presidente Exmo. Sr. Tenente Coronel Dr. Francisco José Cardoso Junior. Rio de Janeiro: Typ. Apostolo, 1873, p.133. Center for Reserch Libraries Brazilian Government Document Digitization Project. Provincial Presidential Reports (1830-1930) – Mato Grosso. Fundação Andrew W. Mellon Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/422/index.html. Acesso em: 15 de novembro de 2007.

forças antagônicas.15 Portanto, tornar cada indivíduo civilizado correspondeu a imprimir o sentido da ordem como hábito normal e universal, o que, por outro lado, significava mudanças nos antigos padrões de violência física. Para tanto, os homens e as mulheres deveriam assimilar uma nova visão de mundo social incorporando-a através do exercício rotineiro de ordem, progresso, justiça e direitos. Visão essa consubstanciada pelo padrão de sociedade civilizada cujo progresso individual subsumido figurava com proeminência sobre o coletivo.

Percebe-se na leitura dos documentos oficiais que a imposição de valores sociais e práticas de exclusão produziram divergências e conflitos violentos e que somados as rixas, disputas amorosas, bebedeiras, intrigas, cobranças de dívidas, ciúmes, descontrole emocional, levaram as pessoas a extrapolarem os limites do autocontrole e das sociabilidades. Os motivos alegados pelos partícipes nos conflitos eram tão diversificados quanto à heterogeneidade na composição das camadas sociais e nas funções que diligenciavam a justiça e a política local.

Uma complexa rede de poderes confundindo as funções e atribuições dos agentes responsáveis pelas instituições administrativas e judiciais. Assim, o entrelaçamento do privado com o público nas ações judiciais, políticas e administrativas reproduziam as tensões, sobretudo, se consideramos que “não só se ocupam dos negócios de ambos os setores as mesmas autoridades, como não há diferença substancial no seu modo de agir num e noutro terreno” (PRADO JUNIOR, 1979, p.313).

Tal confusão permitiu ao poder local redimensionar a cadeia hierárquica que modelava as ligações com o poder central através dos laços de parentesco, amizades e ideologia política partidária. (FAUSTO, 1984, p.21-22). Como a centralização do poder e unificação ideológica da elite política predominava nas situações de conflitos pode-se dizer que quando o poder estava vulnerável havia uma convergência do interesses local com o poder central em torná-lo mais equilibrado. Era de suma importância ao poder imperial e elite local estabelecer uma organização político-jurídica que facilitasse a condução do projeto de nação civilizada rumo ao progresso, pelo qual o próprio Imperador demonstrava grande empenho e interesse.

Nesse contexto, viabilizar a ação da justiça e da polícia através de recursos financeiros e legais implicou na criação de novas Comarcas em Mato Grosso logo após o fim da Guerra

15 Segundo Norbert Elias o crescimento do poder em sociedades com alta divisão de funções esta diretamente

associada à ampliação no número de funcionários ligados ao poder central, o que acaba por estabelecer maior dependência entre os grupos e um órgão capaz de coordenar e regular as relações de poder social. Assim, a civilização não é racional, irracional ou razoável, ela “é posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma de uma rede de relacionamentos, por mudanças especificas na maneira como as pessoas se vêem obrigadas a conviver”. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p.193-200.

com o Paraguai, o que demandou também na ampliação do quadro de funcionários burocráticos para atender a organização do judiciário nos municípios localizados na fronteira com o Paraguai e a Bolívia. (BARBOSA, 1993, p.35) Tanto para a burocracia mato-grossense quanto para o poder central era preciso prover a Província destes quesitos, sem os quais a eficácia da lei ficava comprometida e na ausência dos poderes legais a elite local se apropriava dos instrumentos de controle da ordem pública e dos negócios do Estado; o que, por sua vez, comprometia a unidade territorial e as fronteiras jurídicas, pois as disputas pelo poder local colocavam em cheque a hegemonia do poder Imperial, sobretudo, aqueles que eram uma exclusividade do Poder Moderador.

Garantir a posse das terras aos proprietários rurais era outra questão relacionada ao controle da ordem social e a efetivação do projeto da ordem pelo Estado, o qual se desenvolveu por meio da regulação das funções socioeconômicas controladas e orientadas pela polícia, pelo judiciário, pelas leis e pela vigilância continuada. Ações legitimando a interferência do poder estatal em espaços da vida privada, demonstrando que o objetivo primordial do Império, após a Guerra do Paraguai, era a integração territorial como base a centralização do poder.

Estas situações produziram tensões sociais e divergências na luta pelo poder entre os membros do judiciário, proprietários rurais, comerciantes e militares de alta patente, homens pobres livres e profissionais liberais, cujos pontos conflitivos se relacionavam à posse das terras, divisão social do trabalho, hierarquização societal e o poder de mando local. Problemas entrelaçados as percepções de mundo, justiça, Direito e práticas criminosas.

A criminalidade e o crime aparecem como uma questão explícita e diversificada, enredando os diferentes segmentos sociais nas lutas sócio-jurídicas, em Mato Grosso. Independentemente de ser um proprietário de terras, comerciante, homem livre pobre, funcionário público ou escravo, em algum momento, os homens e as mulheres, tiveram que prestar conta à justiça por seus atos de constrangimento físico ou moral, quer seja como réu/ré, vítima e testemunha ou mandantes dos crimes praticados.

As concepções de Direito como forma valorativas da conduta humana e das práticas sociais possuem o poder de estabelecer critérios legais e públicos firmados na “realidade” e nas representações criadas a partir dessa “realidade”, onde as crenças e os valores sociais mudam em função das necessidades materiais e das práticas cotidianas, ou seja, o direito “é a forma por excelência do discurso atuante, capaz pela própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele ‘faz’ o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este.” (BOURDIEU, 2003, p. 237)

Nessa perspectiva, observou-se que as práticas criminosas influíam diretamente na produção de bens de consumo, na manutenção dos privilégios políticos e nos interesses individuais e intergrupais, além de deixar evidente a precariedade da burocracia jurídica que lidava com a efetiva aplicação das normas legais objetivando a disciplinarização nas maneiras de ser e de agir dos criminosos e não criminosos. Questões que vão permear a continuidade do

processo civilizador16, em Mato Grosso, neste período, as quais estiveram associadas aos

conflitos com os indígenas; a extinção dos quilombos; a captura dos quilombolas; a repressão aos crimes contra a vida, a propriedade e aos costumes; e os crimes sob “encomenda”.

Problemas cuja solução dependeu de maior ou menor empenho das autoridades públicas e, também da assimilação pela população das prerrogativas que a lei conferia aos indivíduos que chegavam as barras dos tribunais.