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Justiça, economia e política em terras mato-grossenses.

1. Aspectos históricos e geográficos de Mato Grosso.

1.1. Justiça, economia e política em terras mato-grossenses.

O fim da Guerra com o Paraguai encerrou o mais longo período de atrocidades e mortes já vivenciado na América Latina. Em Mato Grosso, o ano 1870, marcou a reorganização das estruturas jurídicas, políticas e econômicas, pois naquele momento tratava-

se de reconduzir a vida ao seu curso normal, ação que demandava a ocupação do espaço geográfico, a regulação das atividades jurídica e da burocracia administrativa e a retomada do crescimento econômico. Priorizando-se estas três dimensões na reconstrução da sociedade, o governo imperial e a elite local implementaram medidas econômicas direcionadas a aumentar as importações e as exportações da produção local, via estuário platino, o que contou com os investimentos de capitais privado e internacional, sobretudo, o capital inglês. (CORRÊA, L., 1999, p.146) Os recursos disponibilizados pelas agências e agentes ingleses aqueceram o movimento comercial na dimensão interna e externa, favorecendo o desenvolvimento econômico de Mato Grosso, nas décadas do pós Guerra com o Paraguai, em especial, nos municípios localizados ao sul, onde a destruição patrocinada pelos combates foi mais intensa e destrutiva do que ao norte da Província.

Além do comércio importador, os produtos agrícolas, criatórios e extrativos, começavam a se destacar na balança comercial, revelando mudanças nas atividades de exploração econômica na Província. A expansão da economia atraiu os imigrantes e migrantes interessados em investir no comércio, na agricultura e na pecuária. Começava assim a se definir a ocupação do espaço sócio-geográfico em Mato Grosso, ainda que com precária assistência do Governo imperial e acentuado predomínio político dos grandes proprietários de terras e posseiros que “lutavam entre si e contra a entrada de migrantes ávidos pelas ‘terras sem dono’ no Sul mato-grossense.” (CORRÊA, L., 1999, p.165)

A criação de animais em grandes e pequenas propriedades foi desde o esgotamento da mineração a principal atividade em Mato Grosso. Contudo, a falta de estradas e transportes terrestres ligando Mato Grosso aos centros consumidores, notadamente São Paulo e Rio de Janeiro no plano interno e países platinos no externo, dificultava a expansão dos negócios. Dado a esta configuração a comercialização do gado “em pé” tornava-se oneroso e pouco rentável. Visando então atender o mercado consumidor, sobretudo, ampliar a concorrência com o mercado platino os investidores instalaram em Mato Grosso as indústrias de charque e os curtumes.

Essas incipientes indústrias transformavam a matéria prima em produtos comercializáveis: os couros vacuns eram secos e salgados, as carnes aproveitadas para fazer extratos, caldos e charques, e ainda se exportavam as crinas, chifres, ossos, sebos, etc., enfim, produtos industrializados gerando rendas e oportunidades de empregos. A maior parte desta produção era enviada para o Rio de Janeiro, Montevidéu e Bueno Aires, locais, cujo consumo desses produtos se verificava em escalas sempre crescente devido a maior intensidade no processo de urbanização e industrialização patrocinado pelo investimento de capitais

nacionais e estrangeiros. (CORRÊA, L., 1999, p. 155-159) Este processo indica a importância que vinha adquirindo as atividades financeiras ligando os “sertões” à dinâmica capitalista do sudeste brasileiro. Complementando, também, o quadro das exportações, possibilitado pela internacionalização do rio Paraguai, os proprietários rurais investiram nas plantações de cana- de-açúcar, arroz, mandioca, erva mate, feijão, fumo, ipecacuanha e no final do século XIX na exploração da borracha. (AYALA; SIMON, 1914, p.66-68)

A historiografia regional aponta que em Mato Grosso a dinâmica gerada pelo movimento comercial da produção foi um dos fatores contributivo ao aumento da arrecadação dos impostos, os quais eram destinados as melhorias nas instalações do Porto de Corumbá, no aperfeiçoamento da instrução formal e na construção de hospitais e cadeias públicas. Apesar do aumento dos impostos com as importações/exportações, continuou insatisfatória a situação nos municípios mais afastados de Cuiabá e de Corumbá. Estes por serem os centros mais populosos da Província recebiam mais ajuda financeira e atenção política dos governantes. Assim, os poucos recursos disponíveis para investimentos nas instituições públicas, grosso modo, não supriam as necessidades da máquina administrativa estatal no controle da ordem e aplicação das leis.

Essa carência financeira deixava espaço para o exercício de dominação do poder político associado ao capital da iniciativa privada que buscou na magistratura assegurar seu poder de mando influenciando na ocupação dos cargos político-administrativos. Dessa forma a elite política fortalecia suas redes clientelares e impunha aos grupos menos privilegiados na hierarquia social, relações pautadas por interesses individuais influenciadas pelos preceitos econômicos da doutrina liberal1, difundida e assimilada por bacharéis e militares. De acordo com José Murilo de Carvalho (2006, p101) havia uma distinção comportamental entre os magistrados e os bacharéis enquanto categorias com “capacidade e orientação política”. Os primeiros foram formados nos cursos de Coimbra e os segundos no Brasil2, assim enquanto empregado público

1 Na virada do século XIX para o XX o sistema jurídico foi marcado pelos princípios liberais que conferiam

legitimidade aos discursos e comportamentos de bacharéis engajados na construção da ordem burguesa. Segundo Antonio Carlos Wolkmer o liberalismo “em diferentes matizes, era a grande bandeira ideológica ensinada e defendida nas academias jurídicas. No bojo das instituições, amarrava-se, com muita lógica, o ideário de uma camada profissional comprometido com o projeto burguês-individualista, projeto assentado na liberdade, na segurança e na propriedade.” Ver WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.101.

2 A formação jurídica constituiu-se como núcleo homogêneo de conhecimento e habilidades patrocinados pela

educação superior que eram controladas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil. A homogeneização da elite era incutida nos estudantes pelo sentido de unificação ideológica. Ver: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 65.

“[...] o magistrado é encarregado de aplicar a lei e defender os interesses da ordem. O advogado é um instrumento de interesses individuais ou de grupos, e como tal pode tornar-se porta-voz de oposição tanto quanto do poder público.”

Convém, portanto, mencionar que a conduta dos bacharéis e dos políticos em Mato Grosso serviu aos interesses econômicos dos proprietários rurais que dominavam os instrumentos de controle e os cargos na burocracia administrativa. Embora, a estrutura coronelista não fosse totalmente fechada à ascensão política dos indivíduos, na prática cotidiana aqueles que ocupavam os cargos nos escalões mais altos no governo, local e central, exerciam com predomínio a autoridade e as lideranças na resolução dos conflitos policiais, jurídicos e políticos. Assim, “nas regiões de fazendas de gado e das zonas de sitiantes a estrutura era mais fluída” (QUEIROZ, 1976, p.170), o que diversificava as escalas de ascensão para se atingir a liderança dentro do grupo de trabalho, parentela e lazer.3

Mas, retornando a questão econômica da Província verificamos pelas análises bibliográficas e documentos oficiais que os manufaturados estrangeiros apareciam como sendo os principais produtos comercializados nas cidades mato-grossenses, principalmente, aqueles vindos da Inglaterra, Uruguai, Argentina, França, Alemanha e Bélgica. Mercadorias que abasteciam o grande e o pequeno comerciante e, também o caixeiro viajante que percorria de batelão4 ou no lombo dos burros as sedes das fazendas e as vilas mais distantes, estabelecendo vínculos comerciais e trocas culturais.

Dessa forma, Mato Grosso inseria-se ao mercado capitalista nacional e internacional através das contínuas relações sócio-econômicas com a Corte e as regiões platinas. (CORRÊA, L., 1999, p. 142). A intensa movimentação comercial atraiu imigrantes de várias partes do mundo que associados ao influxo de capitais estrangeiros e privados contribuíram ao avanço das forças produtivas, nas últimas décadas do século XIX. Além disso, a presença de

3 Para a historiadora Maria Isaura Pereira de Queiroz mesmo após a instalação do regime republicano a política

nacional continuou sem mudanças bruscas que viesse a incomodar o sossego dos proprietários rurais. Segundo a autora as práticas políticas herdadas do período colonial lastreadas pela monocultura e grandes latifúndios reforçavam o “continuísmo, adesismo, governismo e outros tantos termos para um mesmo fenômeno, o dá conservação, por um determinado grupo, do poder.” Ver QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976, p.135.

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O termo batelão varia de acordo com a região. O mais comum significa uma “barcaça de madeira ou ferro, geralmente rebocada, usada para transporte de carga pesada.” No regionalismo amazônico o termo é empregado como embarcação movida a remo ou a reboque usado no comércio fluvial. Enquanto que para Mato Grosso o Dicionário Houaiss apresentou-o como sendo uma pequena canoa. O mesmo dicionário explicitou que batel + ao – talvez por influência do italianao batellone signifique “barco a remo de grande dimensão”. O fato é que os mato-grossenses o utilizavam para transportar mercadorias e pessoas. Para os significados etimológicos ver: HOUAISS, Antonio – Houais dicionário eletrônico da língua portuguesa. Coordenação José Jardim de Barros Junior. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 1 CD-ROOM.

militares na ocupação dos fortes, visando resguardar as fronteiras administrativas, alterou o ritmo das relações políticas, jurídicas e culturais, já que estes entravam em contato direto com os grupos alojados no poder público e com a sociedade local. (CORREA FILHO, 1949, p.47). Essa interação sócio-econômica criou vínculos de dependência política nas estruturas do poder judiciário, na burocracia administrativa e na política local. Assim, pode-se admitir que em Mato Grosso, a presença de militares associado aos poderes locais agiu

“[...] direta ou indiretamente influenciando em tudo quanto se revelava na vida pública e privada do cidadão; nas escolhas dos públicos empregados, nas eleições, nos festejos, nos bailes, nas disputas, nos delitos, nos crimes, etc., via-se a mão protetora ou perseguidora do comandante do regimento com os aplausos de uma parte do povo que gozava de sua simpatia.” (PALERMO, 1992, p.24-25)

A convergência destes fatores estimulava as tensões sociais acentuando as diferenças entre a elite local, detentora de terras e instrumentos de trabalho; o aparato jurídico buscando por sua autonomia; o aparato fiscal e tributário, objetivando o aumento na arrecadação dos impostos; e não menos importante àqueles que compunham o grosso da sociedade, os grupos da camada média e dos pobres livres que lutavam, respectivamente por maior poder de participação na política e pela sobrevivência. Homens e mulheres lutando por sua inserção nos espaços sociais5 buscavam através das ações rotineiras assimilarem e incorporar às práticas sociais noções de justiça como forma de resistência à dominação política, jurídica e econômica de um grupo privilegiado na estratificação social: os proprietários de terras e ricos comerciantes.

Nesse sentido, observamos a existência de uma sociabilidade marcada por conflitos políticos, violência e crimes envolvendo homens e mulheres, crianças, jovens e velhos, escravos e índios, pobres e ricos, onde a violência, as exclusões e desigualdades, acentuavam a estratificação social, expondo os vínculos de dependência forjados pela convivência cotidiana e interesses pessoais. Relações marcadas pelas interferências dos “mandões” locais 5 Segundo Pierre Bourdieu o espaço social pode ser entendido como “um espaço multidimensional, conjunto

aberto de campos relativamente autônomos, quer dizer, subordinado quanto ao seu funcionamento e as suas transformações, de modo mais ou menos firme e mais ou menos direto ao campo de produção econômica: no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas (sem por isso se constituírem necessariamente em grupos antagonistas)”. Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6a ed. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.153.

e que, não obstante acabavam gerando interpretações muitas vezes equivocadas sobre quem detinha a autoridade legal: a magistratura, os chefes de polícia ou a burocracia administrativa, mormente quando estas autoridades decidiam legalmente a favor de um ou de outro indivíduo ou grupo vinculado ao poder dos coronéis.

Os confrontos travados no campo jurídico entre magistratura e poder local, sobretudo, pela manutenção do monopólio legítimo da violência física, viabilizou a invasão do poder privado através da política local sobre as agências administrativas em ações da vida pública, nos períodos de eleições, cadastramento dos eleitores, votações e nas convocações para o Tribunal do Júri. Problemas que atingiam diretamente os homens livres pobres, visto que estes lutavam por acesso ao direito de reivindicar a proteção da lei na defesa da liberdade e da vida, o direito ao voto e maior participação nas decisões políticas. Reivindicações vinculadas ao exercício da cidadania política e social, privilégio daqueles que sabiam ler e escrever, os quais preenchiam as exigências financeiras para ser um eleitor.

Compreende-se desse modo porque ao se sentirem ameaçados pelos instrumentos de opressão utilizados pelos proprietários de terras como os severos castigos aos escravos; o emprego de instrumentos coercitivos e coibidores de manifestações violentas; o uso de funcionários públicos para expulsar os índios de suas terras e os pequenos lavradores de suas roças e casas e as intervenções nos resultados dos processos judiciais, os grupos das camadas inferiores rompiam os limites das sociabilidades recorreram à violência contra seus detratores. Percebe-se, também que além da violência estar associada a estes fatores, houve situações em que o réu ou a vítima deu origem ao conflito.

Embora, alguns agentes da administração local como juízes, promotores, delegados e subdelegados de polícia, escrivães, inspetores de quarteirões e parcela daqueles que compunham as camadas medianas tenham sido cooptados pelos poderosos locais, outros resistiram aos jogos manipulativos desse poder, isto porque viam na justiça a única forma de legitimar o espaço social conquistado a duras penas, ainda que, na defesa de suas prerrogativas tivessem que enfrentar no campo jurídico o poderio econômico e político do poder local que procurava dar legitimidade as suas ações repressivas quando na posse dos instrumentos legais de coerção e controle social.6

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Esta situação foi constatada por Mara Sylvia de Carvalho Franco em seu estudo sobre o universo dos homens livres e pobres no Vale do Paraíba que compreende parte do estado Rio de Janeiro e de São de Paulo,sobretudo a região de Guaratinguetá. Segundo a historiadora tanto a escassez de funcionários públicos, a pouca racionalização nos procedimentos administrativos como a “fidelidade aos valores dos grupos próximos retardaram a separação entre autoridade oficial e influencia pessoal.” Sobre a questão ver FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4a ed. São Paulo: Unesp, 1997, p.166.

Sobre a questão da legitimidade das ações do poder público e privado na imposição da ordem, Caio Prado Junior (1979, p.334) constatou que:

A segurança pública era precária. Já vimos os recursos e adaptações a que a administração teve de recorrer para suprir sua incapacidade neste terreno da ordem legal, delegando poderes que darão nestes quistos de mandonismo que se perpetuarão pelo Império adentro, se não a Republica; tornando tão difícil em muitos casos a ação legal e política da autoridade. Mas mesmo com esta adaptação forçada, não se conseguiu fazer predominar a ordem; a insegurança foi sempre à regra, não só nos sertões despoliciados que constituem a maior parte da colônia, mas nos próprios grandes e maiores centros, à sombra das principais autoridades.

Questões que estiveram relacionadas com as expectativas socioeconômicas dos políticos e da população local pela efetiva ocupação e incorporação de Mato Grosso a vida jurídica, política, econômica e cultural do Império. O projeto de construção da imagem de nação civilizada, colocado em andamento pelo poder Imperial e elite brasileira, fundava-se numa ideologia comum que unificava os grupos privilegiados na hierarquia social. E possuía como modelo inspirador as idéias e práticas democráticas estabelecidas nos Estados Unidos da América e na França, as quais influenciavam também os políticos e a população mato- grossenses, afinal a imagem de progresso e “civilização” afastava a noção de barbárie geralmente vinculada aos sertões brasileiros. (FREITAS, 2002, p.185)

Nesse período, a influência da doutrina liberal assimilada como uma nova concepção de mundo impregnava as idéias e os princípios de cunho individualistas “traduzíveis em regras e instituições e vinculadas à condução e a regulamentação da vida pessoal em sociedade”. (BOBBIO, 1986, p.116). Adequando-a aos interesses dos grupos consolidados economicamente na região de Mato Grosso, as forças políticas estabeleceram mecanismos à orientação e reformulação da ordem social, política e econômica, visando à centralização do poder político e administrativo do Estado imperial. Nesse sentido o mais coerente foi impor as camadas inferiores da sociedade mato-grossense, vista como desordeiras, conflituosas, inoperantes e pouco produtivas, (SILVA, 1939, p. 171-173) o sentido de ordem e civilização segundo a visão de mundo elaborada pela elite político-administrativa, cujos representantes mais antigos pertenciam aos quadros da magistratura togada.

Convém ressaltar que na metade do século XIX as lutas pelas oportunidades e vantagens enunciadas pelas novas relações sócio-econômicas estabelecidas pela divisão social

de trabalho e trabalho assalariado, proporcionadas, desde o princípio pela Revolução Industrial, iniciada em Inglaterra7, arregimentou muitas cabeças pensantes na defesa e urgência na modernização da nação brasileira. Os grupos formados por bacharéis, poetas, escritores, etc, advogavam a favor dos ideais sugeridos pela Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade, sem que fosse necessário prescindir da mão-de-obra escrava. Acreditavam que esses princípios seriam suficientes para modificar as estruturas de poder a partir da renovação das ideologias, das tecnologias e do sistema monárquico vigente. Mas, a contrapartida ideológica postulada pelo programa político vigente no período não deixava brechas a extirpação do sistema escravista, retardando o desenvolvimento moderno da nação.

No caso das influências liberais em território brasileiro, no que concerne aos conteúdos ideológicos e éticos, a doutrina liberal, aqui, teve suas especificidades, marcando, em especial na elaboração da jurisprudência e da legislação, o que foi um diferencial se comparado ao liberalismo europeu, por exemplo.

Na Europa o conteúdo político-jurídico do liberalismo, enquanto doutrina política libertadora, buscava instaurar a divisão dos poderes, as representações políticas, a descentralização administrativa, a soberania popular, os direitos e garantias individuais, a supremacia constitucional e o Estado de Direito. Elementos que rompiam de forma decisiva com os traços remanescentes do Antigo Regime. Era, portanto um liberalismo ideologicamente revolucionário que visava, sobretudo, extirpar os privilégios da nobreza e ampliar os direitos democráticos dos cidadãos.8

No Brasil adaptou-se o que convinha aos grupos no poder, sendo que, os aspectos mais democráticos e liberais da doutrina nem sempre estiveram presentes nas ações tanto de liberais como dos conservadores. Caracterizado pela ambigüidade o liberalismo expressava a manutenção do poder nas mãos da elite política que procurava adequar as instituições segundo seus interesses e privilégios. Não sem razão Fernando Antonio Lourenço (2001, p.72) o denominou de “um liberalismo de dois gumes”, pois segundo o autor:

7 O processo de transformações que teve início na Inglaterra se expandiu para outras sociedades ocidentais e não-

ocidentais. Foi amplamente analisado por Eric Hobsbawm em A era das Revoluções. Segundo o autor as influências da Revolução Francesa e Industrial considerada como “A grande revolução de 1789-1848 foi o triunfo não da “indústria” como tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade “burguesa” liberal; não da “economia moderna” ou do “Estado moderno”, mas das economias e Estados em uma determinada região geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos da América do Norte), cujo centro eram os Estados rivais e vizinhos da Grã-Bretanha e França. Ver HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 9a ed. Trad. Maria Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 17.

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Para um aprofundamento das influencias da doutrina liberal na jurisprudência brasileira, no século XIX, e do liberalismo na Europa, consultar o trabalho de WOLKMER, op., cit.

Na história da formação social brasileira, alguns espíritos ilustrados acolheram prontamente, e com vivo entusiasmo, as idéias liberais e a crença nas vantagens da modernização, da racionalização e do progresso técnico