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5. A CONFIGURAÇÃO DA PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL TECNOLÓGICO NO CURRÍCULO E NOS ATOS DE CURRÍCULO

5.6 ARTICULAÇÃO DOS CONTEÚDOS FORMAIS COM OS PROBLEMAS LOCAIS

No grupo focal, assim como nas entrevistas individuais, ficou evidente a dificuldade em construir um currículo ou inserir questões da realidade local nos referenciais curriculares da rede. Conforme GF-1, o Sistema Aprende Brasil foi contratado enquanto pacote, composto por uma perspectiva curricular, conteúdo programático, material didático, formação de docentes, sistema de avaliação, dentre outros, que demandam tempo para apropriação, execução e avaliação, obstaculizando com isso o tempo para o planejamento criativo, inibindo a capacidade de pensar outras possibilidades pedagógicas.

GF-2 salientou que o município, ao adquirir um sistema de ensino, por vezes emperra o processo de construção de uma proposta curricular específica. Em sua visão o uso de um sistema pedagógico que não reflete as necessidades locais esvazia o significado do trabalho docente, transformando-o em rotinas automáticas, destituídas de uma identidade ético-profissional. Para ela, quando

[...] você compra um sistema, ele já tem sua visão pedagógica e de conteúdos, já traz uma proposta de Portal, então para construirmos algo, fora disso, seria um trabalho a mais para o professor. Nossa maior dificuldade seria justamente em como ajustar, adequar aquilo que temos à realidade. Existe um investimento financeiro que não é pouco, um investimento também na questão do tempo para a formação do professor, e no final, o professor precisa dá um retorno (GF-2).

Durante as entrevistas foi possível observar que muitos(as) docentes acabam por justificar a dificuldade de pensar propostas de trabalho alternativas ao instituído, por falta de tempo. Para eles(as) a rotina pedagógica regulada institucionalmente pelo sistema estruturado e livros didáticos, assim como pelos projetos forjados em instâncias externas à escola, sobrepõe-se à reflexão acerca do planejamento em função das necessidades da educação local. Por isso, declararam que, em muitos casos, a prática pedagógica não é refletida, revelando, com seus discursos, uma indignação resignada, assim como um sentimento de desvalorização profissional.

Desta maneira, conforme Albino (2011, p.125), “[...] esses sujeitos, são impedidos de refletir sobre um projeto de educação e impelidos a se tornarem ‘escravos da urgência’ que os conduz à perda de sentido no fazer cotidiano”, encaminhando-os ao que Tedesco (2004, p. 42) denomina de “sacralização da urgência”.

Essas falas evidenciam também, a tendência à desprofissionalização da atividade docente, que parece ter-se acentuado nos últimos quinze anos, principalmente, em função da falta de confiança depositada não apenas no trabalho do professor, mas na própria função da escola. Por conseguinte, como afirmam Tardif, Lessard e Lahaye (1991, p. 226),

[...] os saberes transmitidos pela escola não parecem mais corresponder, senão de forma muito inadequada, aos saberes socialmente úteis (...). A escolarização, enquanto estratégia global que permite o acesso a funções sociais cobiçadas, não seriam mais suficientes.

Nesse sentido, Contreras (2012), considera que esse processo de proletarização docente, marcado pela deterioração das condições de trabalho e pela perda do reconhecimento social dessa profissão, desconsidera pouco a pouco, uma série de qualidades que levam à perda do controle e da capacidade de decidir sobre o seu próprio trabalho. Esse processo inclui a prescrição do currículo a ser adotado nas escolas, da avaliação dos(as) educandos(as) e a definição de objetivos preestabelecidos, que visam operar aprendizagens definidas de antemão.

Complementando afirma que são concebidos:

[...] projetos curriculares nos quais se estipula perfeitamente tudo o que deve fazer o professor passo a passo ou, em sua carência, os textos e manuais didáticos que enumeram o repertório de atividades que professores e alunos devem fazer etc. Tudo isso reflete o espírito de racionalização tecnológica do ensino, na qual o docente vê sua função reduzida ao cumprimento de prescrições externamente determinadas, perdendo de vista o conjunto e o controle sobre sua tarefa. (CONTRERAS, 2012, p. 40-41).

Processo esse que se contrapõem radicalmente ao que defendia Giroux (1997), quando este apontava a pedagogia radical como necessária para a atuação dos(as) docentes como intelectuais, ativamente envolvidos(as) na produção de materiais curriculares apropriados aos contextos culturais e sociais onde desenvolvem suas atividades pedagógicas.

Ao indagar, no grupo focal, sobre a forma como os (as) docentes da rede veem o Sistema Aprende Brasil, fez-se um longo silêncio. Em meio a olhares inquietos, GF-2, ironizando, informou que a pergunta retirou o “cascão da ferida que estava quase cicatrizando”. Alguns comentários simultâneos ocorreram naquele momento, especificamente os de GF-1 e GF-3 corroborando com as palavras de GF- 2.

Conforme GF-1, um sistema de ensino é produzido para atender uma realidade, entretanto, quando utilizado em outro lugar, ele precisa ser adaptado e ajustado às necessidades locais. Sua maior preocupação está vinculada à flexibilidade para esta adaptação, e justifica que, apesar de tudo, “o sistema que nos atende não foge à BNCC, ele não foge à exigência legal da educação no nosso país, mas ele precisa estar mais próximo possível da realidade local” (GF-1).

Nesse discurso, fica perceptível certa preocupação em amenizar a denúncia sobre uma política pública de aquisição de um projeto de educação que não atendia as necessidades do município. Eu já havia ouvido nas entrevistas com os(as) educadores(as) diversas críticas sobre o sistema Positivo. Inclusive, a informação de GE-1 de que, naquele ano (2017), o Sistema Positivo só estava sendo utilizado na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I, pois “no Fundamental II ele não era bem aproveitado”.

Como educadora da rede desde 2003, CP-5 historiou o processo de implantação dos sistemas de ensino em Madre de Deus, destacando que logo no ano seguinte a sua contratação teve início o uso do Sistema Positivo que, à época, apresentava muitos problemas gráficos, entretanto melhorados com o tempo. Também informou que, posteriormente, adotou-se o COC, retornou-se ao Positivo e depois, por pesquisa, avaliou-se a adoção do Aprende Brasil, também do Positivo, mas produzido e destinado às escolas das redes públicas.

Enquanto atriz curriculante, CP-5 apresentou atos de currículo que indicavam à época como deveria ter sido a implantação do sistema na rede.

Na verdade, o que deveria ter sido feito com o SP, era uma introdução paulatina. Primeiro você trabalharia com a Ed. Infantil, na medida em que esses meninos fossem avançando você iria introduzindo no primeiro, depois no segundo, no terceiro, no quatro, até chegar ao último nível do Ensino Fundamental II. Mas na verdade não foi feito assim, o Sistema foi implantado na rede de uma só vez, sem uma preparação. (CP-5).

Para CP-5, o que mais incomodava os professores era a ordem cronológica, pois, “os conteúdos que eles defendiam, que tinham que ser trabalhados no início do ano, por exemplo, para o pessoal do sudeste, vinha no final”, consequentemente, em sua visão esta falta de sequência levou a inúmeros questionamentos. Ela

informou, ainda, que o sistema Positivo foi adotado sem que houvesse uma discussão, uma consulta que o legitimasse.

Além do que, haviam algumas situações de equívocos de erros de impressão, alguns detalhes que passavam, algumas incoerências em relação ao conteúdo, e aí depois de muitos embates e questionamentos, o município resolveu suspender o material no EF II, no final de 2016 e ficar apenas com o PNLD. (CP-5).

Em relação à qualidade do material didático e corroborando com CP-5, alguns comentários durante o grupo focal sinalizaram a rejeição coletiva ao Sistema Aprende Brasil.

GF-2, por exemplo, disse que “[...] a proposta feita para a escola pública é muito superficial, muito reduzida”. A distinção aparece quando, “[...] você tem o modelo que é para a escola particular e o modelo que é para a escola pública”. Ratificando, GF-1 comentou: “Eles subestimam a capacidade desse aluno, então você não está formando para. Você está querendo atender e manter”. Continuando, GF-2 desabafou:

Isso me deixa muito angustiada, porque quem mais precisa é o meu menino que está ali com dificuldade cultural, social, política, que tem uma família que o pai não lê, que a mãe não lê e que precisa de um material robusto para dá a ele essa questão da função social da escola. Tirar de onde ele está já que [...] a escola é vista como um instrumento de ascensão social. Não tem como não pararmos para não pensar nisso. E esse material eu vejo [...] está nivelando esse aluno por baixo. Eu não gosto desse livro, eu não gosto desse nivelamento. Então se você vai adotar esse material, vai gastar dinheiro público, então que seja o melhor material para esse público que você quer atender (GF-2).

Além de CP-5, GF-2 e GF-1, também DO-1, DO-2, DO-5 e outros entrevistados criticaram o sistema. DO-1 disse não gostar e achar o sistema fraco, que ele subestima os alunos e poderia ser melhor. Em suas palavras até “[...] a forma de fazer as perguntas era esdrúxula. [...] Era pouco conteúdo para o que se tinha na verdade para enriquecer o aluno”. DO-2, por sua vez, comemorou a saída do Aprende Brasil e deixou clara sua insatisfação, justificando a existência de “[...] muito erro. Era um material muito pobre em termos de conhecimento”. De igual modo DO-5 considerou o material muito pobre, comentou ser necessário: “[..] o professor ter maior domínio conceitual para aproveitá-lo”. Para ele,

[...] não é o módulo que vai fazer você trabalhar. É o olhar que eu tenho do meu projeto educativo, do currículo que eu quero desenvolver e o sistema vai ser uma ferramenta, mas infelizmente o que nós pensamos é que o

livrinho é que vai fazer tudo[...] todas essas coisas são ferramentas, o olhar do educador é que tem que estar crítico, atuante, permeando para ver como ele vai poder usar para atingir seu objetivo (DO-5).

As narrativas apresentam críticas, denúncias e reações que evidenciam formas de resistência aos sistemas estruturados de ensino privados adotados na rede, em especial ao último, o Aprende Brasil, da Editora Positivo. Ademais, DO-5 apresenta um posicionamento que desloca o (a) docente do papel de reprodutor(a) dos conteúdos instituídos, para autor(a) do seu plano de ensino, superando o determinismo considerado pelos(as) demais.

A insatisfação explicitada permite identificar, através das narrativas de resistência, legítimos atos de currículo, na medida em que manifestam suas indignações, insatisfações, colocando suas alteridades enquanto diferença diante do currículo instituído pelos sistemas privados. Nesse sentido, Macedo (2011, p.86) concebe a resistência “[...] como força de criação, como prova cabal de que os atores do currículo e da formação não são ‘idiotas culturais’, conforme entendera Garfinkel (1976)”.

A reexistência, neste caso, está demonstrada pelos espaços criados pelos(as) educadores (as) de Madre de Deus, junto à SEDUC, para serem ouvidos(as) e considerados(as) em suas insatisfações e demandas, alterando o contexto e os processos afim de não serem vistos como objetos, mas como sujeitos de ação- reflexão-ação, capazes de produzir atos de criação e transformação de possibilidades emancipacionistas, tratando-se, portanto, de uma luta do instituinte com o instituído. E, nesse sentido, Paim(2013, p.151) define a reexistência como:

[...] um processo em que o(s) sujeito(s) luta (am) pela não subordinação com vistas à construção de novas formas de existências em face de uma dada situação ou contexto vivido. É uma forma de dizer não a toda e qualquer forma de dominação e, ao mesmo tempo, dizer sim para uma existência até então ignorada ou desconsiderada por aquele(s) que, de alguma maneira encontra(m)-se numa posição hierarquicamente superior em termos de poder ou hegemonia dominante.

Os atos de reexistência destes(as) educadores(as), revelam a resistência em serem transformados em produtos fabricados em série, para compor “estatísticas de produção tal qual trabalham a lógica do acúmulo e da “qualidade” cultivadas pela mercoeducação” (MACEDO, 2010, p.56-57).

Diante das críticas e reiteradas reclamações dos(as) docentes no final de 2016, o Aprende Brasil foi abolido no Ensino Fundamental II, ficando em 2017, apenas na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I. Em 2018 foi definitivamente abolido em toda a rede, com a justificativa da indisponibilidade orçamentária.

5.7 A DEFINIÇÃO DE TEMAS “EXTRACURRICULARES” E A ABORDAGEM DO