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5. A CONFIGURAÇÃO DA PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL TECNOLÓGICO NO CURRÍCULO E NOS ATOS DE CURRÍCULO

5.1 CURRICULO E ATOS DE CURRICULO

Ao longo dos estudos sobre currículo, inúmeras foram (e continuam sendo) as concepções e aplicações a ele atribuídas. A distinção entre elas ocorre em função das finalidades educacionais almejadas e contextos sociais característicos. Assim, cada tradição curricular constrói um sentido específico sobre o ser do currículo, a partir de determinado discurso hegemônico. Dessa forma, o currículo é uma prática discursiva, uma prática de poder que atribui significações e sentidos.

A concepção de currículo aqui contemplada representa um campo que envolve conhecimento/saber, identidade e poder, sendo, portanto, um artefato cultural, construído de forma contínua e implicada, mediante relações de poder, que,

[...] constrói a realidade, nos governa, constrange nosso comportamento, projeta nossa identidade, tudo isso produzindo sentidos. Trata-se, portanto, de um discurso produzido na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais que, ao mesmo tempo, reitera sentidos postos por tais discursos e os recria [...] o currículo é um texto que tenta direcionar o “leitor”, mas que o faz apenas parcialmente. (LOPES; MACEDO, 2011, p. 41-42).

Autores críticos, como Michael Apple (2008; 2006), afirmam existir uma relação estrutural entre economia e educação, entre economia e cultura, ocorrendo, por isso, uma conexão entre a forma como a economia é organizada e os currículos definidos. Para Apple, o currículo não é um campo neutro, ingênuo, despretensioso de interesses. A seleção e organização dos conhecimentos nele resultam de processos que refletem interesses específicos das classes e grupos dominantes (APPLE, 2008).

Corroborando com Apple, Silva (1999, p. 147) concebe o currículo como “espaço de poder”, pois “reproduz – culturalmente – as estruturas sociais. [...] é um aparelho ideológico do Estado [...] é, em suma, um território político”.

Para os teóricos críticos e pós-críticos do currículo, ele não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder às quais está submetido, tendo em vista ser o conhecimento parte inerente do poder. “Todo conhecimento depende da significação e esta, por sua vez, depende de relações de poder” (SILVA, 1999, p. 149), razão pela qual não cabe indagar quais conhecimentos são importantes, mas quais são relevantes para tal ou qual sociedade, em tal ou qual contexto sócio-histórico.

Arroyo (2011) considera o currículo um “território em disputa” por determinantes sociais, políticos, econômicos e culturais representados pelo Estado,

pela sociedade e suas instituições, que definem sua validade e legitimidade mediante rupturas, conflitos e ambiguidades. Para o autor, o currículo é o núcleo e o espaço central mais estruturado da função social e política da escola, “[...] é o território mais cercado, mais normatizado. Mas também o mais politizado, inovado e ressignificado. [...] uma configuração política do poder” (Ibid., p. 13).

Arroyo (2011, p. 17-38) afirma ainda que as “grades curriculares” têm cumprido a dupla função de “[...] proteger os conhecimentos definidos como comuns, únicos, legítimos e não permitir a entrada de outros conhecimentos considerados ilegítimos, do senso comum”. Com isso, declara que “[...] em toda disputa por conhecimentos estão em jogo disputas por projetos de sociedade”.

Para Nilda Alves(2002) e seu grupo de pesquisa sobre os estudos nos/dos/com os cotidianos, o currículo é aquilo que é praticado pelos sujeitos nos espaçostempos em que se esteja pensando a formação. Contempla, portanto, os múltiplos contextos nos quais os sujeitos são constituídos como redes de subjetividades. Nessa concepção, os currículos formais, os conhecimentos científicos, as práticas hegemônicas estão na escola, como também as crenças e saberes trazidos pelos sujeitos. Contudo, em uma ou outra situação, alguns conhecimentos/saberes obterão maior ou menor espaço, maior ou menor poder, em função da mobilização dos sujeitos na tessitura de suas possibilidades.

Já Pereira (2010, p. 33), considera o currículo um espaço vivo, a expressão da vida, correspondendo à “[...] construção e reconstrução do conhecimento quando seus sujeitos de forma recíproca criam, recriam e incorporam novas aprendizagens às suas vidas”. Consequentemente, ele deve ser construído a partir de um processo “enactante”26

que parta das percepções, desejos, saberes e ações dos sujeitos que fazem e/ou vivem o cotidiano da escola como projeto político-pedagógico e social, trabalhando com a vida dos aprendentes e os sentidos que estes atribuem à própria vida a partir das interações que ocorrem dentro e fora do espaço escolar.

Macedo (2012b, 2013), por sua vez, define o currículo como consequência de demandas construídas socialmente, instituídas por ideologias interessadas em meio a processos (in)tensos de negociação, em que o poder simbólico se configura em pauta importante para essa compreensão. É, pois,

26 “Enactante”, termo utilizado por Hannoun (1998, p.138-139), derivado de “enação”, originado do termo

Um artefato socioeducacional que se configura nas ações de conceber/selecionar/produzir, organizar, institucionalizar, implementar/dinamizar saberes, conhecimentos, atividades, competências e valores visando uma “dada” formação, configurada por processos e construções constituídos na relação com conhecimento eleito como educativo (MACEDO, 2012b, p. 24-25).

O autor ressalta que o currículo não deve ser pensado enquanto uma condenação sociopedagógica ou socioeducacional, mas enquanto um dispositivo educacional poderoso, resultante da multicriação implicada de atores e atrizes sociais, numa experiência autonomista compartilhada, via seus pertencimentos e suas afirmações socialmente referenciadas, uma vez sermos sujeitos de subjetividade, capazes de construir conhecimento de forma intersubjetiva (MACEDO, 2013).

Por isso, o currículo também é considerado por ele como

“[...] o documento que legitima a própria existência escolar, mesmo sabendo-se que o currículo real transcende, e muito, o documento oficial, por ser um fenômeno construído eminentemente nos fluxos das interações cotidianas da escola” (MACEDO, 2010b, p.109).

Nesta perspectiva, os atos de currículo são fundamentais para a construção desse currículo por representarem a práxis de atores/autores sociais que, a partir de suas experiências, etnométodos e autorização expressam de alguma forma concepções e criações, protagonizando implementações curriculares. Isto significa que produzem atos de currículo a partir de seus interesses e posicionamentos éticos, políticos e culturais, indexalizados a seus contextos de vida e suas “bacias semânticas”, carregados de participatividade, que se expressam nas mediações intercríticas, constituindo heterogeneidades formativas ao mesmo tempo que constituem potentes analisadores das práxis curriculares (MACEDO, 2013), permitindo-nos compreender que os julgamentos e ações dos atores e atrizes sociais não podem ser tratados como insignificantes ou epifenômenos, pois eles não são “idiotas culturais” (GARFINKEL,1976).

Dessa forma, através da compreensão dos atos de currículo em um determinado contexto social, torna-se possível, junto com seus “curriculantes”, “inflexionar realidades para a direção de um conhecimento moral e politicamente indexalizado a valores e opções de possibilidades autorizantes e emancipatórias” (MACEDO, 2013, p. 71). Para Lopes (2008 apud MACEDO, 2010a, p. 35), ato de currículo é o “lugar da construção das hegemonias e re-existências, por processos

híbridos, por contextualizações, territorializações, desterritorializações e reterritorializações [...]”. Atos de currículo torna-se, portanto, um conceito-dispositivo, ao criar a “antítese da visão de currículo como uma condenação sociopedagógica, como artefato que produz tão somente prescrição, restrição e trilhos” (MACEDO, 2013, p. 17).

Este é um “conceito-chave, um gesto ético-político, um potente analisador da práxis curricular-formativa” (MACEDO, 2011, p. 48), descrito como “criações etnometódicas ‘que’ não necessitam de explicações especializadas nem de respostas oficiais de autoridades educacionais para se constituírem e se legitimarem como tais” (p. 67).

Através dos atos de currículo percebe-se a relevância da experiência dos atorese atrizes curriculantes na concepção, transformação e atualização do currículo, já que “[...] nos possibilitam compreender como os currículos mudam pelas realizações dos seus atores” (MACEDO, 2013, p. 56-57) e não só pelo conhecimento aludido dos curriculistas, gerando, assim, a possibilidade de criar currículos mais dialógicos, dialéticos, multirreferenciais que valorizem a experiência dos atores e atrizes curriculantes.

Logo, eles não ocorrem do nada, são atos situados, surgem de “pré- ocupações”, demandas concretas, situações reais. Sobral (2007, p.228), ao discorrer sobre o ato nas concepções de Bakhtin, afirma que ele ocorre numa “[...] situação concreta organizada em torno de práticas sociais e históricas que limitam as possibilidades de atos e formas de realização de atos [...]”.

Assim, pode-se afirmar que os atos de currículo envolvem desde criação das políticas oficiais de currículo até as ações socioeducacionais. Fazem parte, portanto, “[...] da práxis formativa, trazem o sentido de não encerrar a formação num fenômeno exterodeterminado pela mecânica curricular e suas palavras de ordem [...]”. Transformam em atores e atrizes curriculantes todos e todas aqueles(as) que, de alguma forma, encontram-se “[...] implicados nas ações e tessituras da formação, ou seja, planejadores, professores, gestores, alunos, funcionários, pais, família, comunidade, movimentos sociais etc.” (MACEDO, 2012b, p.145).

Para Paim (2013, p. 157), “os atos de currículo se dão a partir das ações cotidianas que colocam em devir o currículo. É no movimento, no acontecer, no

conjunto das (inter)ações que os atos de currículo são instituídos ou se instituem”. Nesta perspectiva, eles podem “[...] inflexionar realidades para a direção de um conhecimento moral e politicamente indexalizado a valores e opções de possibilidades autorizantes e emancipacionistas” (MACEDO, 2013, p. 71).

Assim sendo, a partir de uma análise contextualizada do currículo e dos atos de currículo presentes na rede pública municipal de ensino de Madre de Deus, foi possível identificar os sentidos e significados vivenciados, tensionados e “silenciados”, assim como os etnométodos utilizados pelos educadores na construção do currículo real das escolas da rede.

Para melhor contextualização e compreensão das narrativas dos (as) atores e atrizes sociais da pesquisa, cabe apresentar algumas informações relevantes sobre a rede pública municipal de ensino de Madre de Deus.