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5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 1 A Opção pedagógica da RIS-ESP/CE

5.1.3 Articulação teórico-prática

Outro aspecto estruturante da educação pelo trabalho e da EIP é a articulação teórico-prática. Uma formação que tem o trabalho como ponto de partida também não pode estar restrita a uma aprendizado de cunho empirista. É preciso que se desenvolva uma verdadeira práxis: ação-reflexão-ação (FREIRE, 1996). Essa noção de que a articulação teoria e prática é fundamental também está impressa nas diretrizes da Comissão Nacional de Residência Multiprofissional para a estruturação de qualquer programa de residência multiprofissional (BRASIL, 2012a). Por isso, prever as possibilidades de aprendizagem teórico-práticas que seriam ofertadas aos residentes na RIS-RESP/CE, segundo a coordenadora C1, foi um exercício iniciado na concepção do projeto de residência.

Pra conseguir fazer isso, a gente pensou, pegamos as regras gerais da comissão nacional de residência, que a gente precisava ter atividades práticas, teórico-práticas e teóricas. No meio desses três eixos, nós pensamos em atividades que pudessem contemplar o que a comissão nacional dizia, mas também a colaboração interprofissional dessa tecnologia que a gente disse. Então, nós pensamos, primeira coisa, na prática, em dispor os residentes em equipes e no teórico-prático, duas estratégias que a gente chama de roda de núcleo e roda de campo (C1).

As estratégias de educação na prática se dá pelas rodas - metodologia das rodas que vem da ideia do modelo de saúde Paideia - que todos os residentes duas vezes por semana, pelo menos, tem que discutir o seu próprio processo formativo seja enquanto equipe seja enquanto profissão, juntando com seu preceptor e mesmo a dimensão do olhar pra profissão se faz com a integração (C2).

Ou seja, no projeto político pedagógico da RIS-ESP/CE, está prevista a necessidade de que, além de exercer suas profissões nos cenários de prática, os residentes reflitam sobre ela. Andrade e colaboradores (2004), ao discutir a metodologia da tenda invertida, falam da contribuição que há para o processo formativo quando os estudantes conseguem, em determinados momentos, distanciarem-se do cenário de atuação e dedicarem-se à reflexão com apoio externo. Apoio, no caso das residências, exercido pelo preceptor.

Os residentes, por sua vez, conseguem perceber essa importante faceta da articulação teórico-prática:

Acho que outra coisa valiosa é a gente estar sempre andando teoria e prática juntas. A gente vê em grande parte dos profissionais é que a teoria muitas vezes fica de lado e aí você fica muito no automático. Fazendo as ações e a prática ali automatizada, o programa

automatizado... embora tenha os treinamentos, acaba que a pessoa se acomoda e vai apenas reproduzindo aquilo, aquilo, aquilo... não se atualiza, não busca estar estudando... e eu acho que a residência proporciona isso... Então muitas vezes no módulo saúde do adolescente, por exemplo... a gente via lá no módulo coisas sobre saúde do adolescente e aí você para pra fazer aquela reflexão ‘vixe, mas na minha agenda não tem nada de saúde do adolescente’ e se eu não tivesse aquele momento teórico, aquele momento de estar ali discutindo saúde do adolescente talvez eu não tivesse esse insight de estar voltando na minha agenda e pensando ‘o que eu faço pra saúde do adolescente? O que eu faço pra saúde do idoso? O que eu faço pra saúde do homem?’ então eu acho que outra vantagem de ser residente é essa relação teoria-prática que aqui nos é proporcionado (RM1) a residência, ela favorece que a gente aprenda como fazer [...] então eu acho que a residência permite isto, que a gente faça, e realmente a teórica com a pratica, andando juntos né. Você aprende como se faz e você vai colocar em pratica. Se todas as pessoas soubessem o quanto é importante a residência, né (RA4)

[na roda de campo] a gente discutia bastante realmente o que era o tema e lembrava dos casos, trazia os casos comparando com o que tava no texto e ajudou bastante também na questão do desenvolver né (RA3)

Na RIS-ESP/CE, as estratégias teórico práticas de aprendizagem são a roda de campo e a roda de núcleo. A noção de roda, como apontado por C2 acima, parte do modelo de saúde Paideia. Esse modelo, por sua vez, parte do pressuposto da interferência dos sujeitos na co-produção do mundo e de si mesmos. Esse movimento de múltiplas vias de intervir e receber intervenção não é diferente na saúde, nem na educação. Portanto, neste método, busca-se constituição de sujeitos reflexivos e operativos, ou seja, capazes de refletir sobre o mundo e sobre si mesmos, mas também disponíveis a operar transformações. Daí, surge a dimensão da autonomia e da horizontalidade das relações (CAMPOS, 2009). Essa concepção Paidéia em muitos aspectos dialoga com a proposta de articulação teórico-prática nas residências.

O método da Roda é uma tecnologia para o desenvolvimento da co-gestão de coletivos que, em concordância com os princípios da saúde Paideia, se propõem a fortalecer a autonomia do sujeitos e do coletivo (CAMPOS, 2000). Pela similaridade dos objetivos, o método da roda é incorporado ao repertório metodológico da RIS- ESP/CE, sendo adotado enquanto espaço de ensino e aprendizagem dentro desta pós- graduação.

Entendendo a múltipla determinação dialética da saúde e do processo de aprendizagem, a roda caracteriza-se como espaço de superação do modelo tradicional de gestão e de ensino. O método da roda propõe-se ao cultivo de relações horizontais entre

os sujeitos que ensinam e aprendem de forma dialética. E, como já apontam Silva e Sousa (2010, p. 9) sobre a experiência da Residência Multiprofissional em Saúde da Família de Sobral/CE, na roda “a dimensão da formação supera a lógica dicotômica de

quem ensina e de quem aprende, já que todos ensinam e aprendem no sentido da complementaridade, mediante processos contextualizados”.

Justificada a opção ideológica pelo método da roda, cabe aqui uma definição dos objetivos destes momentos de encontro entre residentes e preceptores.

A Roda de Campo é a estratégia que tem o intuito de ampliar a discussão multiprofissional do referencial teórico pautados nos módulos de ensino-aprendizagem; é também o espaço de aprofundamento e debate do conhecimento no contexto do campo e do núcleo profissional da temática em estudo; e espaço de discussão e negociação de temas de interesse a toda a equipe de residentes. Embora facilitada pelo preceptor de campo, o protagonismo é dos profissionais-residentes por meio de estratégias pedagógicas ativas e dialógicas (COREMU RIS-ESP/CE, 2013, p. 34 e 35)

A Roda de Núcleo é o espaço de diálogo na dimensão do núcleo profissional. Facilitada pelo preceptor de núcleo e com a participação dos profissionais-residentes da categoria profissional, são discutidos temas e situações do dia-a-dia do serviço–categoria. As RN acontecem também na forma denominada Roda de Núcleo Dialogada, em que um convidado participa do espaço, a convite do corpo docente / preceptor de núcleo. Dentre as principais conteúdos da RN, citam-se: a) Aprofundamento dos módulos de ensino-aprendizagem no âmbito dos núcleos profissionais. b) Discussão e negociação de temas de interesse a todos os residentes do núcleo. c) Planejamento, monitoramento e avaliação do processo de trabalho dos residentes do núcleo (COREMU RIS-ESP/CE, 2013, p. 33).

Ou, nas palavras da coordenação geral do programa:

A roda de campo é o momento em que todos os residentes daquela equipe, num momento à noite, estão juntos com seu preceptor, o de referência da ênfase, preceptor de campo, discutindo as questões do cotidiano de serviço. Essa roda tem duas matérias-primas, uma é o cotidiano do serviço, aquilo que acontece no dia a dia, que durante o trabalho tem ali o corre-corre do serviço, à noite as pessoas param pra discutir porque aquela criança morreu, porque aquele paciente não aderiu ao tratamento de forma interprofissional. A segunda matéria- prima da roda de campo é discutir as questões do próprio currículo, o que a escola produz nos manuais, módulos e nas unidades de aprendizagem. A leitura dos artigos, os vídeos, existem várias estratégias pedagógicas, tudo discutido de forma multi e interprofissional juntos ali naquele momento (C1).

Partindo-se dessas definições, percebe-se que as rodas se propõe exatamente a serem esses espaços de integração teórico-prático. Elas partem dos conteúdos trabalhados nos módulos presenciais em articulação com as práticas exercidas no

território. Pela fala de RM1 transcrita no início desta discussão sobre articulação teórico-prática, percebe-se ainda o caráter operativo desses momentos, umas vez que as reflexões ali aprofundadas desencadeiam mudanças nas agendas e nas estratégias de inserção e intervenção nos territórios. Essa constatação só reforça o embasamento teórico da proposta das rodas no modelo de saúde Paideia (CAMPOS, 2009).

Em Aracati, ao comentarem sobre as rodas, residentes e preceptora de campo, sem exceções, falaram que o caráter das rodas precisou ser adaptado. Abaixo, pode-se conferir algumas colocações que retomam o processo de insatisfação com as rodas, devido ao fato de, no início, a preceptora de campo ficar, durante as rodas, muito restrita aos textos e metodologias propostas no manual do módulo elaborado pelo corpo docente da ESP/CE. Essa insatisfação, pelo que é relatado, foi seguida por uma conversa com a preceptora e com o corpo docente da ESP/CE e, a partir daí, o conteúdo prático das vivências no território passaram a integrar também as discussões nos momentos de roda.

Eu acho que as rodas de campo são muito boas. Na maioria das vezes, a gente não faz os assuntos que a escola sugere, porque eles trazem muitas demandas. Quando a gente consegue fazer a roda de saúde mental e saúde da família, é melhor ainda, é muito bom. PC2

As [rodas] de campo eu acho ainda melhor, assim por que a gente conversa além do tema proposto, agente conversava o que estava acontecendo no nosso território. No início, não. Ficava fechado naquele negócio, ai quando a gente começou a reclamar, ai até a escola começou a fazer e colocar no tutorial, ai dizia para preceptores que não precisava se prender ao assunto, pode se estender para o território (RA6)

Hoje em dia nas rodas... de uns tempos pra cá... uma coisa que mudou... antes ficava muito preso a um texto, a um texto... e a gente não discutia! E as vezes a gente tem tanta demanda, a gente precisa tanto falar sobre aqueles casos que a gente tá vendo no dia a dia, que a gente precisava de um momento desse pra sentar toda a equipe junto pra ver o que a gente poderia fazer naquele caso e a gente não tinha essa oportunidade na roda. Mas de um tempo pra cá, já estava acontecendo isso... de a gente sentar todo mundo e discutir um caso que estava acontecendo. Nisso daí você aprende demais com os outros profissionais. É um momento único de você aprender. RA7

Indo além das falas e resgatando os aspectos observados durante a pesquisa de campo, pode-se, aqui, associar essa grande necessidade de discussão dos casos e do processo de trabalho da roda de campo em Aracati devido ao fato de os residentes não terem sistematicamente reuniões de equipe nos horários dedicados ao território. As reuniões de equipe que acontecem são da equipe de cada unidade de saúde, ou seja,

integrando profissionais residentes lotados naquela unidade e profissionais do serviço. Não se nega a importância dessas reuniões, mas elas, na maioria das vezes, tem caráter administrativo, tendo como pautas a elaboração dos consolidados de produção mensal, o planejamento da agenda do mês seguinte e o repasse de informes da gestão. Dessa maneira, não há, na carga horária prática nenhum espaço dedicado à discussão de casos. Na realidade de Aracati, percebe-se ainda outro agravante: a distribuição dos residentes em muitas unidades, diminuindo também as possibilidade de encontro da equipe inteira. Essas inferências tem base inclusive na comparação com o contexto de Maracanaú. Neste, a equipe com menos integrantes se concentra em uma unidade praticamente (uma vez que os residentes da estratégia NASF desenvolvem apenas ações pontuais na outra unidade) e tem, na agenda fixa semanal, um turno de encontro para reunião de equipe. Nas falas dos residentes e preceptores de Maracanaú, não se percebe esse conflito com as atividades propostas para a roda. Sabe-se que muitos outros fatores podem estar relacionados a essa diferença, mas algo que chamou a atenção foi essa diferença nas agendas.

No entanto, na avaliação das rodas, também há semelhanças entre os municípios. Residentes de ambos afirmam que a roda é uma atividade que facilita a colaboração interprofissional:

A roda de campo é uma atividade que eu percebo [que facilita a colaboração]. A de núcleo também... só que a de núcleo acaba que fica cada um ali com o seu... ai acaba que... divide. No final, divide. Mas eu acho que as rodas de campo elas dão uma visão maior pra gente. [...] Na roda de campo a gente consegue ver diferentes visões de um mesmo situação e a gente consegue entender que eu posso somar com a visão do outro. RM5

o próprio roteiro da residência puxa pra isto [CIP], mesmo quando a gente está discutindo, pronto determinada doença, colo do útero, não sei, prevenção... a residência meio que tem aqueles questionamentos que puxam pra isto, então a gente discute isto na hora, né. E a gente e os preceptores acabam trazendo a realidade, como seria a consulta com esses outros profissionais? Avaliando a importância, eles trazem também. RA8

Os momentos da roda eram muito importantes, a gente problematizava mesmo sobre o que a gente enfrentava em nosso cotidiano de trabalho e qual a melhor forma de a gente enfrentar isso. [...] com o preceptor. Era ele que disparava as discussões. Esses momentos de discutir sobre nossos processos de trabalho eram massa, assim, a gente conseguia mesmo sair da nossa zona de conforto e pensar um pouquinho mais sobre o que a gente pode fazer, além disso. RA1

A roda de campo, enquanto esse espaço de encontro e articulação teórico- prática, possibilita tais trocas interprofissionais. E, como afirma RA8, mesmo à distância, a proposta pedagógica interprofissional da RIS-ESP/CE consegue ser impressa nas discussões travadas nas rodas por meio de questionamentos existentes nas metodologias propostas para as rodas que sempre tensionam para a interprofissionalidade.

Vale ressaltar ainda a empolgação de RA1 ao comentar a riqueza desses momentos de discussão. Esse tipo de EIP, ao passo que proporciona uma aprendizagem significativa, causa empolgação e ativa o estudantes a uma co-construção de tais espaços. Entretanto, por essa proposta de articulação teórico-prática ir de encontro ao modelo formativo uniprofissional da maioria das graduações em saúde, há também certo estranhamento e dificuldade até mesmo de participação de alguns residentes no início do processo:

Na [roda] de campo como era para ler aqueles textos era mais uma coisa mais geral, e eu não tava acostumada com isso, por que a gente sai da graduação, só vendo fisio fisio fisio fisio e quando eu fui ver aquela coisa geral, negócio de todo mundo, ai eu me estranhava muito. Lia lia, tentava ler os textos, tentava chegar na roda e falar alguma coisa, ficava mais tempo ouvindo [...] enfim o que eu mais tive dificuldade de aceitar foi as rodas de campo (RA2)

Essa dificuldade de aceitar a roda de campo fica ainda mais clara quando a mesma residente aponta sua maior identificação com a roda de núcleo:

Da residência tem essas rodas né. Rodas de núcleo que a que eu mais me identifico, a de campo e a de núcleo, a núcleo é a que eu mais me identifico, porque a gente fica trocando ideia do que a gente faz com o paciente. [...] o que gostava da roda de núcleo é que a gente ficava: ‘como é que eu posso fazer?’ ‘é assim assim, assim...’ e na outra semana ‘gente eu fiz isso, não deu certo, aconteceu não sei o que...’, ai as meninas diziam: ‘faz assim, tenta aquele reflexo’ e a gente relembrava as coisas a fisioterapia. RA2

Talvez o grande desafio de uma formação interprofissional seja este de não negar o núcleo, mas fortalecer de forma prioritária o campo. Há necessidade de, como afirma Barr e Low (2013), combinar a formação profissional com a formação interprofissional. Necessidade esta percebida e justificada pela opção metodológica da RIS-ESP/CE nas palavras de C1:

Mas a gente não anula o núcleo nem o saber de cada uma das profissões. A gente não pensa assim, pelo contrário, cada um se fortalece no outro, mas é preciso que as profissões estejam também de certa forma, fortalecidas, organizadas, porém com a leveza de se ver

no meio do outro e poder flexibilizar. Então, a gente faz a questão das rodas de núcleo, que são os residentes daquela mesma profissão, com preceptor de referência no núcleo profissional, discutindo por vezes a mesma questão discutida na roda de campo, só que dentro da sua profissão. Quando chega a roda de campo, aquilo é colocado com permissão da equipe e das profissões como um todo (C1).

Entretanto, o que muitos residente colocaram em relação às rodas de núcleo foi a grande dificuldade de que elas se operacionalizem e disparem todo esse processo de formação profissional.

As nossas rodas de núcleo, eram assim mais fraquinhas, não aconteciam, a gente tentou mais algumas vezes reunir só a gente, mas... RA6

Na roda de núcleo, a gente tentou inclusive no começo trabalhar em cima de intervenções nos problemas que a gente tinha dentro da unidade... Só que a gente chegou só na teoria, quando ia pra prática... nem na teoria realmente a gente aprofundou, só chegou a citar mesmo. RA7

Outra possibilidade para as rodas de campo e de núcleo é que elas aconteçam de forma integrada interênfases, inclusive porque neste caso podem fomentar a integração entre diferentes serviços, saúde da família e saúde mental, no caso. Em Aracati, essas rodas aconteceram com bastante frequência e foram, nos comentários dos próprios residentes extremamente proveitosas.

Em Maracanaú, não foram citados os momentos de rodas interênfases, mas alguns residentes comentaram da participação de residentes da ênfase de Saúde Mental nas atividades de grupo que eles desenvolvem no território e de como essa integração contribui com a qualidade do cuidado ofertado à população naquele momento de grupo e do grande aprendizado que foi possibilitado à equipe da ênfase de SFC.

A proposição de momentos como este de integração nos próprios cenários de prática são fundamentais para que a RIS alcance seu objetivo constituinte de integração. Esta integração de duas ênfase atuando em um mesmo cenário de prática é uma potência enorme que, pela estruturação do programa acaba acontecendo de forma ainda tímida.

5.1.4 Formação teórico-conceitual: pressupostos e estratégias de uma educação