• Nenhum resultado encontrado

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 1 A Opção pedagógica da RIS-ESP/CE

5.2 Educação interprofissional em serviço na RIS-ESP/CE: os atores, seus lugares e seus papéis

5.2.3 Cenários de práticas: a estranheza de ser residente

Quando se observa as diversas colocações apontando as vantagens da organização do processo de trabalho-aprendizagem da RIS-ESP/CE enquanto estratégia de EIP, evidencia-se a centralidade do cenário de prática. O local de atuação, por mais diverso e amplo que ele seja na realidade da SFC, configura-se como o plano de fundo da formação. É lá onde acontecem os principais aprendizados ou onde aquilo que é aprendido nos momentos teóricos se efetiva e se concretiza enquanto aprendizado significativo. Adotar esse lugar como locus de ensino-aprendizagem, transforma também o papel dos serviços e dos profissionais de saúde. Os serviços passam a ser escola e os profissionais docentes (LIMA, 2005).

O cenário de práticas é o local onde o residente vai desenvolver suas atividades práticas. Esse local é um serviço de saúde como qualquer outro, é um dispositivo da rede de Atenção Primária à Saúde do SUS. É portanto um equipamento

de saúde com as mesmas dificuldades e desafios da organização do sistema de saúde brasileiro, é, como falaram alguns entrevistados o “SUS real”.

Chegar a esse lugar imperfeito buscando uma formação pautada integralmente nos princípios do SUS causa, de início, como aponta PC2, um choque de realidade, seguido de muitas críticas ao desmantelamento da gestão e da assistência em saúde com que o residente se depara:

Quando os residentes chegam nos municípios, com o SUS maravilhoso na cabeça, - C1 não gosta quando a gente diz isso -, mas existe um choque de realidade entre o que é real e o que é possível. Tem uma ponte ali, que a gente não consegue ligar e vem uma frustração junto, por causa dos residentes. Vem uma crítica feroz aos gestores e foi muito complicado, veio uma crítica enorme aos profissionais que estavam ali, que foi muito difícil, tiveram muitos conflitos. ‘Ah, porque o posto nunca fez visita de puericultura’. – ‘Como assim, estou aqui há 15 anos e você vem dizer que nunca fiz e você chegou agora?’ (PC2).

No entanto, ao final da residência, já é possível perceber posicionamentos diferentes dos próprios residentes em relação à opção pelo cenário do sistema de saúde real como lugar de aprendizagem. O “SUS real” também pode ser escola – escola que já forma para a realidade do mundo do trabalho na Saúde Pública do país:

às vezes eu vejo as pessoas aí querendo viajar na maionese, querendo coisas de primeiro mundo... meu irmão, tu tá numa coisa que não é de primeiro mundo, então te conforma aí, trabalha ai... que eu acho que a residência também vem nos mostrar isso. Na nossa clínica particular a gente tem tudo do jeito que a gente quer, de primeiro mundo... mas aqui não... aqui você se vira com o que você tem... eu acho que a residência também é um modo de se reinventar: ‘sim eu tenho que fazer isso aqui, mas eu só tenho papel, lápis, tesoura e cola, né? Então o que eu posso fazer?’. Sabe... eu vejo isso também. RM5

Nesta fala se percebe uma aceitação dos limites impostos freqüentemente pela realidade do trabalho no SUS. No entanto é preciso estar atento para que aceitar trabalhar com o que se tem não produza uma acomodação dos profissionais, de maneira que eles deixem de lutar por melhores condições de trabalho e de atenção à saúde dos usuários.

De fato, o período da residência é um exercício de como lidar com as potências e dificuldades práticas do sistema, como que uma preparação para o mundo do trabalho que espera aquele residente. Nessa lógica, o raciocínio é mais ou menos como C1 afirma: “se ela conseguiu, acreditamos que, uma vez saindo da residência, ela

então vamos fazer em outros espaços profissionais do futuro” (C1). Estar em um

cenário de práticas cheio de desafios também desenvolve no residente a resiliência, ou seja, a capacidade de, a partir dos recursos materiais e humanos disponíveis, recriar sua atuação e extrair toda a potência daquela realidade.

Entretanto, nem sempre chegar nesse cenário, e ainda mais chegar com a proposta de reflexão crítica e mudança, é fácil. Pelo contrário, “uma das barreiras institucionais, o serviço que já está instituído, ali é onde o residente está locado, aí ele tem que transpor as formas de fazer daquele lugar...” (C1).

O trabalho em equipe, que é princípio central do processo da residência, por si só exige mudanças na organização do trabalho que promovam encontros, diálogo. No entanto, instituir essa filosofia nas unidades de saúde ainda permanece desafiador:

desafio é a gente também conseguir... conseguir mesmo fazer com que as pessoas reconheçam que aquele trabalho em equipe é importante. Porque hoje em dia tem muitas pessoas que infelizmente ainda não conseguem ver o trabalho em equipe e nem conseguem trabalhar (RA7).

Como complementa C1, até mesmo as atividades propostas pela RIS- ESP/CE para tornar a prática cotidiana reflexiva, participativa e interprofissional não são compreendidas pelos profissionais do serviço como importantes, nem mesmo como atividade inerente ao trabalho.

Essas pessoas [profissionais do serviço], a formação e a vivência delas é muito mais multi e menos interprofissional. Então, quando a gente ativa que um residente, de fato, tenha uma roda de conversa, uma reunião de equipe semanal e isso é trabalho, por vezes, isso não é encarado como trabalho. Trabalho é atender, estar atrás do birô, na maca ou fazendo uma visita domiciliar, porque tem a consulta e a gente fala muito: tem que ter planejamento, avaliação, monitoração e crítica do atendimento, porque, a partir disso, novos fluxos assistenciais são feitos. C1

Daí deriva uma dificuldade de compreensão geral da RIS-ESP/CE, uma vez que o trabalho em equipe, o diálogo e a promoção da interprofissionalidade são a base da organização do processo de trabalho nessa estratégia de formação. E, em várias falas esse julgamento das atividades interprofissionais e comunitárias como “não trabalho” surge. Há a concepção de que trabalho é a assistência tradicional e individual em saúde. Tudo o que escape a isso, é enrolação, é coisa sem futuro inventada pela residência. O peso dessa noção recai inclusive sobre a preceptoria, que precisa o tempo inteiro estar

reafirmando a necessidade das ações de planejamento, debate, discussão de caso, territorialização:

Por que é diferente com os residentes? É como eu já disse, a primeira turma deu muitas respostas, mas eu tive que ouvir, por exemplo, no período em que os residentes chegam à territorialização, que eles passam o mês conhecendo o território, tinha gente que dizia assim: ‘vocês vão começar a trabalhar quando?’ Eles ouviram muito isso, mas eles já estavam trabalhando! PC2

Tem a questão de toda a compreensão né já que é algo novo, a compreensão de todo o sistema da importância da residência né e que eles não tão aqui só pra estudar, tão recebendo pra estudar e que não trabalham né, que vivem em pracinhas, em ação e isso e aquilo e que só gostam de movimentos... Porque a gente ainda tem pessoas que pensam assim e quem não está envolvido né ou então não valoriza a questão do aprendizado da educação e só pensa em consulta, consulta, consulta (PN5).

Os próprios residentes colocam como grande desafio o entendimento da gestão sobre a forma de trabalho da residência:

Assim, eu acho que, assim também [necessário] esclarecer para própria gestão, para própria equipe saúde, que nós somos residentes, que não somos só profissionais do posto, explicar também a importância das ações, da educação em saúde pra população, por que às vezes [para eles] é preferível que a gente fique trancando dentro do consultório atendo, atendo, atendo, cumprindo metas, não acham que a educação em saúde é importante né? (RA8)

De fato, o modelo de gestão implantado na maioria dos cenários supervisiona o trabalho dos profissionais através do cumprimento de metas assistenciais e quantitativas. E, por isso, encaixa aos profissionais em uma agenda prioritariamente voltada para a assistência individual curativista, privando-o de autonomia para gerenciar seu processo de trabalho. Há uma tendência a querer encaixar os residente neste mesmo esquema, no entanto, por receberem uma proposta de organização do trabalho diferente na instituição formadora, os residentes percebem essa interferência como desafio:

Mudança seria, eu acho que conscientizar os gestores. Tentar fazer com que os gestores e as pessoas que estão na ponta vejam a importância do trabalho em equipe e do trabalho da gente enquanto residente porque eu acho que isso ainda é um empecilho bem grande (RA7).

porque na residência a gente tem que seguir uma linha da instituição formadora, a gente tem que seguir aquilo... mas quando chega aqui no serviço, e em Maracanaú isso é bem forte, a gente tem que fazer o que vem de cima, o que é mandado pela gestão. Tem que fazer... que passa pro preceptor, que passa pro residente. Aí você tem que fazer, mesmo que você não esteja interessado ou não ache interessante para a saúde