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A configuração do trabalho Macu

3.5. Articulando as relações de trabalho

Diante dos fatos historicamente constituídos, verifica-se que o trabalho veio sofrendo mudanças quanto a conceção, prática e estruturação de acordo com as culturas sociais e políticas em cada momento político e em cada lugar.

O trabalho indígena configurado pela mão-de-obra escrava veio atender a demandas socioeconômicas vigentes, em detrimento de suas atividades tradicionais de caça, pesca e coleta de frutos. Atividades em que a memória mediatizou as transformações espaciais de trabalho e convivência, mas que num momento oportuno e, como um “golpe” a ordem local se desestabilizou, pois “a mudança tem como condição os recursos invisíveis de um tempo que obedece a outras leis e que, por surpresa, furta alguma coisa à distribuição proprietária do espaço” (Certeau, 1994, p.161). As atividades, que dentro de um espaço e tempo estão imbrincadas por crenças e valores culturalmente arraigados na ancestralidade, representam o respeito à mãe-natureza, a terra, com uma rotina mediada pelo “fazer” para o autoconsumo. Portanto, as atividades indígenas não eram concebidas com a mesma configuração dada ao trabalho pelos colonizadores, pois, o esforço feito com o objetivo de atingir uma meta não se voltava para a produção excedentária e nem para a mão-de-obra paga.

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O trabalho configurado nas relações de poder gera comportamentos de sujeição, reação e resistência e permite a tomada de consciência de si, verificável quando ao grupo confrontado é imposta uma “ordem”, com obrigações a serem cumpridas e imposições que não atendem suas necessidades de sobrevivência e nem a seus referenciais de compartilha. O comportamento de resistência delineia-se com o acesso à liberdade de reação e vem gerar transformação de atitudes pois, “Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (Foucault, 2005, p. 241). Nesse sentido, o índio ao receber a patente de “chefe”, usa de prestígios para demonstrar autoridade e poder sobre seus pares e sobre quem lhe facultou liberdade de reação. Vê-se as ações protagonizadas de forma inventiva entre fugas e convivência cotidiana, enquanto estratégias disciplinares da colonização se confrontavam com táticas de resistência.

O conceito de “liberdade” vem reforçar o conceito de “grupo minoritário” que, em desvantagem social é objeto de preconceito e passa a responder em posição subordinada ao grupo dominante. Nesse sentido, os índios aldeados enquadram-se no desamparo e no isolamento físico e social de seu grupo étnico. A liberdade “dada” justifica-se pelas limitações impostas pela sociedade de contato que garante-lhes, sob tutela, os direitos vigiados.

A estruturação do comportamento de aculturação se faz quando os índios, retirados de seus territórios e tendo seus costumes julgados, violados e suprimidos, passam a aceitar novos paradigmas de convivência e trabalho que se confluem com seus preceitos sobre: espaço físico, língua nativa, vestimentas, crenças, cultura, dentre outros. No entanto, a esse rendimento às práticas exógenas, os indígenas respondem ao colonizador subvertendo “leis que lhes eram impostas outra coisa que não aquela que o conquistador julgava obter por elas” (Certeau, 1994, p 39) e, sem rejeitá-las usa-as à sua maneira, ritualizando-as, pois, delas não podiam fugir e nem tão pouco agiam na total submissão. Observa-se o prolongamento do processo de aculturação dos povos indígenas, que retirados de suas aldeias recebem orientações de como se comportar com os costumes das pessoas das cidades. A escolha por uma e outra criança indígena que se destacasse entre os demais e viesse estudar na missão, futuramente quase que lhes garantia manter uma relação de poder no seio de sua comunidade de origem.

O cotidiano traz suas demandas e exige a operacionalização de fazeres que se estabelecem dentro da ordem do lugar. A cultura dominante (Bourdieu, 1977; Bourdieu & Passeron, 1975) vem agir como domesticadora das necessidades básicas dos nativos

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ao incutir-lhes novos processos valorativos ao seu cotidiano no que refere, normas de convivência, processos de trabalho, aquisição de bens de consumo com vantagens materiais e simbólicas. Ao ganhar prestígio e valor social, a cultura dominante constitui- se em capital cultural levando a cultura dominada a introjetar, incorporar e internalizar valores e hábitos. Porém, entre essa complexa relação de poder, o hibridismo cultural se configura tanto pela modificação de seus processos de dominação e resistência, como por suas interações. Processo esse de invenção de saberes cuja tática “se insinua fragmentariamente, sem poder retê-lo à distância” (Certeau, 1994, p.46),

transformando os acontecimentos em ocasiões.

As atividades rotineiras do convívio social e familiar se estabelecem situadas entre fronteiras psicológicas e atitudinais e se organizam na inter-relação do grupo. Fronteiras psicológicas correspondentes ao pensar, apropriar, refletir e gerir ideias que darão significado a essas novas ações. Nessa perspetiva, os Macuxi desenvolvem suas atividades apreendidas num tempo subjetivo, com base na indissociabilidade entre individual e coletivo. Ações imbuídas de significados por onde traçam suas trajetórias de trabalho.

O novo tempo parece-lhes firmar certeza sobre sua identidade étnica, conferida ao lugar e protegida de qualquer obscurantismo que venha enraizar o contrário. O processo de politização dos índios começa a ser trabalhado paulatinamente com suas inserções em grupos que “estabelecem uma mediação entre os indivíduos e os costumes, as normas e a ética de outras integrações maiores” (Heller, 2000, p. 19).

O processo de politização tem como base as atividades coletivas geradoras de integração e consecutivamente reflexão sobre práticas cotidianas. Dessa forma, o trabalho enquanto construção étnica é concebido coletivamente vinculado a um espaço territorial, tendo em sua mão-de-obra não intelectualizada a sustentação para a ação reflexiva como constructo do discurso do desaparecimento étnico. O discurso que outrora servira ao colonizador para ocupar as terras das regiões de fronteira, “Uma terra sem gado é uma terra que não tem dono” (Mongiano, 2011, p.62), é revertido em benefício de suas reivindicações sobre o lugar de pertencimento. A pecuária, ao proporcionar a suplantação da sedentarização pelo comportamento nômade dos indígenas, passa a promover a fixação destes no espaço territorial e contribui para a construção ideológica sobre a terra, como lugar identitário.

A tomada de consciência de forma coletiva sobre a realidade vivida, leva-os à busca de soluções, com o envolvimento e participação interétnica das comunidades que

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utilizam-se da dialética para evidenciar a luta por seus direitos e deveres enquanto grupos originários.

O conceito de “chefe” cuja função mediadora baseava-se mais em sujeição dos índios aos colonizadores, passa a ser ressignificado como “liderança”, implicando ao seu recetor condutas de responsabilidade e sabedoria para com seu povo. Nesse aspeto, “cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais” (Certeau, 1994, p. 38) implicando na construção de novos sentidos ao papel de liderança, nomeadamente pelo viés da alteridade.

A instalação do CIR na capital do Estado constitui-se numa posição estratégica de visibilidade e de articulações políticas. A busca por captação de recursos financeiros perpassa pela necessidade em gerir os trabalhos das comunidades indígenas, por manter a interlocução em âmbito local, nacional e internacional bem como pela participação atuante dos conselhos indígenas regionais nas demais causas coletivas. A luta pela garantia do direito de trabalhar na terra ganha proporção política a partir do incremento das políticas de valorização das culturas originárias, voltadas para a biodiversidade, para o etnodesenvolvimento sustentável e para a preservação do meio ambiente.

Os indígenas residentes fora de suas comunidades de origem, buscam por inserção no mercado de trabalho formal e/ou informal, não deixando de manter a relação de contato com seus familiares na comunidade. No contexto dessas relações, o indivíduo passa a experimentar novas regras de trabalho, reconhecendo-se enquanto trabalhador, afirmando sua posição no grupo e em sua trajetória particular de trabalho.

Nessa perspetiva, o indígena integra-se a grupos sociais, envolve-se em comunidades abstraindo costumes, exigências e normas morais. Distancia-se de si, de sua particularidade e produz uma síntese do seu “eu” transformando conscientemente objetivos e aspirações particulares de si mesmo e desse modo, socializa sua subjetividade. Dessa forma, compreende-se que as práticas de intersubjetividade vêm possibilitar o amadurecimento de novas práticas de trabalho com pluralidade interétnica