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ARTICULANDO NOÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS SOCIAIS NA FORMAÇÃO DE UMA CIÊNCIA EUGÊNICA

Procuraremos demonstrar neste capítulo que a eugenia, como ciência da hereditariedade, nos moldes galtonianos, formou-se em um contexto intelectual marcado por um conjunto de elementos, de certa forma inter-relacionados, dado pelo desenvolvimento das teorias evolucionistas do final do século XIX, do movimento de expansão neo-colonialista, em função de relações estabelecidas por uma lógica de dominação imperialista, e em estreita sintonia com as teorias raciológicas que pretendiam estabelecer a existência de diferenças constitutivas ou naturais entre os seres humanos, o que explicaria, em uma perspectiva eurocêntrica, estágios diferenciados de maturação civilizatória.

A eugenia, configurar-se-ia, portanto, como a formação de um campo de articulação de procedimentos ou práticas, pautados pela pressuposição de que existiriam elementos indicadores de traços hereditários responsáveis não somente pelas diferenças entre os povos, mas que essas diferenças seriam as razões que

explicariam sua inferioridade em relação ao homem branco europeu. Para tanto, precisamos considerar como faz Pierre Bourdieu ao argumentar sobre o conceito de campo científico que:

“Os campos são lugares de relações de forças que implicam

tendências imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se orienta totalmente ao acaso. (...)”250

Nesse sentido, a naturalização das diferenças existentes entre os povos, para a formação de uma perspectiva que se pretendia científica, incorporou-se do debate acerca das origens da humanidade, bem como de seu posterior desenvolvimento na formação da preocupação com os problemas sociais.

Ao longo do século XIX, concepções poligenistas e monogenistas proporcionaram elementos em relação aos quais se procurou compreender não só a natureza das próprias diferenças, como também as causas subjacentes aos diversos

problemas sociais, como prostituição, criminalidade e epidemias.

Consequentemente, além dos aspectos teóricos, organizou-se uma série de procedimentos laboratoriais e instrumentais no sentido de controlar os elementos degenerantes que os indivíduos carregariam em seus corpos e que contribuíam para a degradação das condições sociais. Em função disso, organizou-se um saber biotécnico, em que se inscreve o nascimento da própria eugenia como campo de atuação científica sobre a hereditariedade humana, cuja meta, além da assepsia

social, visava o estabelecimento de condições para o melhoramento racial das futuras gerações.

O controle sobre as condições corporais, o corpo orgânico e o corpo social,

foi estabelecido em função de noções sobre o normal e o patológico,251 em relação

às quais se organizou medidas profiláticas não só no sentido de manter, mas principalmente, instaurar uma ordem orientada pelos princípios de uma ciência eugênica, em que se articularam procedimentos técnicos como a antropometria e a craniometria, por um lado, e teorias raciológicas e discriminatórias, por outro. Ao discorrer sobre as condições pelas quais se deu o nascimento da clínica, Michel Foucault nos oferece uma idéia suficientemente clara acerca do controle biotécnico postos em curso ao longo do século XIX, em suas palavras:

“Mais ainda: o prestígio das ciências da vida, no século XIX, o papel de modelo que desempenharam, sobretudo nas ciências do homem, está ligado originalmente, não ao caráter compreensivo e transferível dos conceitos biológicos, mas ao fato de que estes conceitos estavam dispostos em um espaço cuja estrutura profunda respondia à oposição entre o sadio e o mórbido. Quando se falar da vida dos grupos e das sociedades, da vida da raça, ou mesmo da ‘vida psicológica’, não se pensará apenas na estrutura interna do ser organizado, mas na

bipolaridade médica do normal e do patológico. A consciência vive, na

medida em que pode ser alterada, amputada, afastada de seu curso, paralisada; as sociedades vivem, na medida em que existem algumas, doentes, que se estiolam, e outras, sadias, em plena expansão; a raça é um ser vivo que degenera; com também as civilizações, de que tantas vezes se pôde constatar a morte. Se as ciências do homem aparecem no prolongamento das ciências da vida, é talvez porque estavam

biologicamente fundadas, mas é também porque o estavam medicamente;

sem dúvida por transferência, importação e, muitas vezes, metáfora, as

ciências do homem utilizaram conceitos formados pelos biólogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suas realizações individuais e sociais) constituía, portanto, um campo dividido segundo o princípio do normal e do patológico. Daí o caráter singular das ciências do homem, impossíveis de separar da negatividade em que apareceram, mas também ligadas à positividade que situam, implicitamente, como norma.”252

O que pretendemos indicar neste capítulo é, portanto, que a eugenia, como um campo de produção de saber biotécnico acerca da admissão da existência de disposições intrínsecas que colocariam os seres humanos em posições diferenciadas em função de características biologicamente herdadas, organizou-se em um contexto de expansão das condições imperialistas fundadas na pressuposição da superioridade do homem europeu em relação aos outros povos sob seus domínios; pela utilização sistemática de metodologias classificatórias a partir da utilização de técnicas como a antropometria e a craniometria, e procedimentos laboratoriais; no bojo do desenvolvimento de teorias raciológicas, evolucionárias e hereditárias no que diz respeito às condições de melhoramento tanto das condições sociais, quanto das disposições ou características hereditárias responsáveis pela qualificação racial não somente dos indivíduos, como também de povos e das futuras gerações.

ESTABELECENDO DIFERENÇAS, LEGITIMANDO DOMÍNIOS: