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MUDANÇA E TRANSMISSÃO: O PROCESSO EVOLUTIVO EM LAMARCK

Na passagem do século XVIII para o XIX, conceber um mundo em mudança estava na ordem do dia. Não que antes os indivíduos não reconhecessem as mudanças que ocorreram no mundo, certamente reconheciam; no entanto, o que se pensava até então, pela força da influência de uma concepção essencialista, era que o universo, como criação da sabedoria divina, só poderia ser perfeito e imutável. Neste contexto, a mudança era compreendida enquanto um desvio de uma ordem natural e essencialmente perfeita. Mudança geralmente tinha o sentido contrário ao

da ordem natural, promovida pela degenerescência ou degradação.41 O que pode ser

notado no fato de que “nos séculos XVII e XVIII, a alteração biológica era

usualmente designada pelo termo ‘degradação’”.42

Contudo, a mudança estava lá. As condições mudam e o mundo se transforma. Mas essa constatação, reforçada com a proliferação de evidências fósseis, ao invés de suscitar a admissão de um processo evolutivo, geralmente tinha

40 Hull, D.: “Filosofia da ciência biológica”, p. 143-172. 41 Carlson, E. A.: “The Unfit: A history of a bad Idea”, p. 12. 42 Mayr, E.: “O desenvolvimento do pensamento biológico”, p. 545.

o efeito contrário de sustentar determinadas posições que concebiam a eliminação das espécies como intervenções de forças sobrenaturais, justificadas por relatos bíblicos como o dilúvio e Sodoma e Gomorra, ou o resultado de catástrofes naturais, com a geração espontânea de uma nova flora e fauna. Nesse sentido, as mudanças biológicas produziriam desvios, aberrações, monstruosidades, que não se mantinham e eram eliminadas ou por intervenção divina ou por mudanças drásticas no

ambiente, e não por novas formas modificadas de vida.43

As várias teorias sobre as transformações que ocorreram e estavam ocorrendo no mundo natural, e também social, não eram propriamente formulações no sentido evolucionista de transformação gradual de uma espécie para outra. As possíveis teorias, com viés evolucionista, formuladas anteriormente ao início do século XIX, podem ser agrupadas em duas categorias, que segundo Ernst Mayr, não corresponderiam propriamente a teorias evolucionistas, mas sim a teorias sobre origens e teorias sobre desdobramentos de potencialidades imanentes:

“Os ditos precursores ou tinham teorias sobre ‘origens’, ou desdobramentos de potencialidades imanentes do tipo. Uma verdadeira teoria da evolução deve postular a transformação de uma espécie para outra, e isso ao infinito. Tais idéias não se encontram nos escritos de de Maillet, Robinet, Diderot e outros, que supostamente influenciaram Lamarck. Diversos antecessores de Lamarck, como por exemplo Maupertius, postularam uma origem espontânea de novas espécies. Lineu, nos seus últimos escritos, mostrava-se muito impressionado com a possibilidade de novas espécies, por hibridação.” 44

43 Idem, ibidem, p. 392. 44 Idem, Ibidem, p. 394-395.

É com a obra do naturalista francês Jean Baptiste Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829), que se tem de fato uma primeira formulação onde se percebe os contornos de uma teoria consistente e influente sobre o processo

evolutivo.45 Com Lamarck, e sua teoria da evolução, muito embora não tenha usado

o termo em suas obras,46 tem-se o início da substituição da visão de uma natureza

estática por uma natureza dinâmica.47 Com esta substituição, a mudança, antes considerada uma degradação de um tipo perfeito, com Lamarck foi compreendida enquanto variações em um processo que permitiria o surgimento da diferenciação na espécie.

Não se tem no pensamento de Lamarck o que representaria a suposição de uma ancestralidade comum, para ele, ao contrário, existiram vários pontos de geração da vida. As formas de vida mais elevadas corresponderiam a um processo

de muitas gerações provenientes do surgimento de formas simples.48 Restava

somente descrever o mecanismo pelo qual variações, transmitidas às novas gerações, permitiram ao longo do tempo a estabilização das diferenças em características que possibilitariam a classificação taxionômica da espécie em uma linha filética.49

Antes de Lamarck, as respostas dadas ao problema da extinção vinham de concepções que admitiam a intervenção do Criador ao longo da história, como na narrativa bíblica do dilúvio, ou de teorias catastrofistas, como as do paleontólogo

45 C. N. El-Hani & A. A. P. Videira: “O que é vida?” p. 158-159. 46 Carlson, E. A.: “The Unfit: A history of a bad Idea”, p. 111. 47 Mayr, E.: “O desenvolvimento do pensamento biológico”, p. 395. 48 Bowler, P.: “Evolution: The history of an idea”, p. 85.

francês George Cuvier (1769-1832).50 Ao introduzir a idéia de uma seqüência temporal e perceber a presença de um processo de mudança ao longo do tempo, ficou cada vez mais claro para Lamarck que o problema da extinção, na realidade, não existia, pois para ele os animais não haviam se extinguido de fato, mas sim se transformado nas formas atuais.51

Na percepção do fator tempo, é que parece residir o ponto de inflexão que coloca as teorias de Lamarck no rol das teorias evolucionistas. Enquanto que os naturalistas anteriores, presos aos rigores da teologia natural, só conseguiam conceber as espécies organizadas de modo fixo em uma escala natural do seres que, de modo implícito, revelava a existência de um Ser Superior de infinita bondade e sabedoria, para Lamarck o conjunto de dados ao seu dispor sinalizava a evidência de uma transformação gradual dos organismos ao longo do tempo. Apoiado em seus

estudos, Lamarck defendia uma teoria unitária da natureza,52 postulava que durante

um longo espaço temporal operaram-se mudanças contínuas, e eram justamente estas mudanças que demandaram as modificações observadas no conjunto de dados a seu dispor no museu de Paris, quando assumiu, em 1790, a coleção de moluscos. De acordo com Mayr, em alguns casos os dados permitiam a Lamarck “ordenar os fósseis dos estratos mais primitivos e mais recentes do Terciário numa série cronológica, terminando numa série recente”53.

50 C. N. El-Hani & A. A. P. Videira: “O que é vida?”, p. 155. 51 Mayr, E.: “O desenvolvimento do pensamento biológico”, p. 391. 52 Carlson, E. A.: “The Unfit: A history of a bad Idea”, p. 113.

Ao se deparar com arranjos que, em alguns casos, possibilitaram-lhe organizar os fósseis em uma série filética sem interrupções, Lamarck conseguiu vislumbrar um conceito que faltou aos naturalistas anteriores –que os organismos poderiam ser organizados em uma linha temporal–, e isso lhe permitiu reconhecer uma série de novos fenômenos.

A percepção de que se poderia organizar os fosseis de modo que eles apresentassem a conformação de uma linha temporal em que se poderia observar mudanças gradativas de uma forma ancestral até a forma atual, sugeria para Lamarck que haveria alguma forma de adaptação dos organismos às mudanças ambientais. Assim, Lamarck passa a considerar a idéia de que seria o ambiente que determinaria as condições favoráveis para a existência de certos tipos de organismos. Mudanças ambientais seriam responsáveis ou pela eliminação de algumas espécies ou pela necessidade de transformação de outras para se adaptarem

às novas condições ambientais.54 Não havendo nenhuma perturbação ambiental,

manter-se-ia uma espécie de relação harmônica entre as condições ambientais e os organismos. No entanto, o meio ambiente está sujeito a mudanças sucessivas e contínuas que requerem dos organismos medidas adaptativas para que se recupere a harmonia perdida, forçando assim os organismos a se modificarem ao longo do tempo.55

O que isso parece indicar é que Lamarck elaborou um mecanismo evolucionário de mudança e adaptação como um processo contínuo, onde não

54 Lamarck, “Philosophie zoologique”, p. 130.

haveria oportunas divisões na natureza, e sim um fino e gradual processo de harmonização entre organismo e meio ambiente.56 Contudo, Lamarck não era um vitalista tampouco um teleologista, em seu processo evolutivo não há nenhuma força vital a conduzi-lo em um determinado sentido ou propósito. Para ele a necessidade de harmonização decorria de um potencial inato da vida animal. A tendência para a organização complexa, no sentido de um processo de desenvolvimento gradual de formas simples até as atuais, era o que poderia ser considerado como o subproduto de ações orgânicas internas aos organismos para fazer face às necessidades impostas por modificações no meio ambiente. Suas teorias são nesse sentido mecanicistas. De acordo com Mayer, as mudanças evolutivas na acepção de Lamarck correspondiam a duas causas:

“A primeira era uma capacidade que providencia a aquisição de sempre maior complexidade”. (...) “A segunda causa da mudança evolutiva era a capacidade de reagir a condições especiais do meio ambiente” 57

Antes, contudo, precisamos atentar para um mal entendido que tem sido motivo de muita confusão. Ou seja, a idéia de que para Lamarck os novos caracteres são resultados de indução direta do meio, isto é, que o meio ambiente seria

responsável diretamente pelas modificações observadas.58 Contudo, a teoria

lamarckiana parece significar algo diferente desta idéia; pois, para dar conta do processo de mudança evolutiva, Lamarck desenvolveu uma teoria fisiológica onde

56 Idem, ibidem, p. 88.

57 Mayr, E.: “O desenvolvimento do pensamento biológico”, p. 400. 58 Idem, ibidem, p. 399.

estímulos extrínsecos desencadeariam uma série de movimentações de fluidos no organismo, ocorrendo assim mudanças evolutivas em termos de respostas adaptativas do organismo às condições do meio ambiente. 59 Como na teoria de Lamarck os organismos tendem naturalmente a uma relação harmoniosa com o meio ambiente, a quebra desta relação, por qualquer motivo, desencadearia uma série de eventos com o propósito de se restaurar o equilíbrio harmonioso em função de uma nova ordem mais complexa que a anterior. Em suas palavras:

“Il sera, en effet, évident que l'état où nous voyons tous les animaux, est, d'une part, le produit de la composition croissante de l' organisation qui tend à former une gradation régulière ; et, de l' autre part, qu' il est celui des influences d' une multitude de circonstances très-différentes qui tendent continuellement à détruire la régularité dans la gradation de la composition croissante de l'organisation. Ici, il devient nécessaire de m' expliquer sur le sens que j' attache à ces expressions : les circonstances influent sur la forme et l' organisation des animaux, c' est-à-dire, qu' en devenant très-différentes, elles changent, avec le temps, et cette forme et l'organisation elle-même, par des modifications proportionnées. Assurément, si l' on prenoit ces expressions à la lettre, on m' attribueroit une erreur ; car quelles que puissent être les circonstances, elles n' opèrent directement sur la forme et sur l' organisation des animaux aucune modification quelconque.60

Isso revelaria certa dinâmica interna à vida animal, que, no entender de Lamarck, é dado pela existência de um potencial inato no sentido de adquirir uma organização progressiva mais complexa. De acordo com Mayr, a necessidade do organismo em responder às circunstâncias especiais suscitaria a seguinte cadeia de eventos:

59 Idem, ibidem, p. 397.

“(1) Qualquer mudança considerável e contínua das circunstâncias de alguma raça de animais provoca uma mudança real nas suas necessidades (besoins); (2) Qualquer mudança nas necessidades dos animais requer um ajuste do seu comportamento aos diferentes hábitos; (3) toda nova necessidade requer novas ações para satisfazê-la, exige do animal que ele ou use certas partes com mais freqüência do que antes, por isso desenvolvendo-as e ampliando-as consideravelmente, ou use partes novas, nele desenvolvidas imperceptivelmente por suas necessidades, ‘em virtude de operações do seu próprio senso interno’ (‘par des efforts de

sentiments intérieures’).” 61

Nesse sentido, podemos dizer que a teoria evolucionista de Lamarck pode ser resumida, por conseguinte, na idéia de que o ambiente produz necessidades e atividades no organismo, e estas, por um mecanismo complexo de distribuição de fluidos, operam variações adaptativas. Não seria, portanto, o uso e o desuso, como se emprega correntemente, que provocaria a mudança, mas sim disposições internas

do próprio organismo pressionadas pelas condições de adaptações ao ambiente.62

A ação do uso e desuso no desenvolvimento e fortalecimento de órgãos era à

época uma idéia antiga e considerada por todos sem maiores complicações.63

Lamarck admitia, como era comum em seu tempo, a idéia de que os descendentes herdariam as alterações, desde que elas fossem comuns a ambos os sexos.64 Uma idéia corrente “que, no entanto, tinha um papel secundário em sua teoria”,65 mas

61 Mayr, E.: “O desenvolvimento do pensamento biológico”, p. 397.

62 Para uma análise de como o pensameto de Lamarck não representaria a admissão simplista do uso e desuso,

ver: Bowler, P.: “Evolution: The history of an idea”, p. 86.

63 Zirkle, C.: “The early history of the idea of the inheritence of adquired characters and of pangenesis”: 1946. 64 Mayr, E.: “O desenvolvimento do pensamento biológico”; p. 397.

que, por outro lado, o marcou como defensor da hereditariedade dos caracteres adquiridos.

Como se nota, Lamarck desenvolveu uma teoria de grande complexidade. Sua importância para a formação do pensamento evolucionista está em colocar em cena a pressuposição de um desenvolvimento gradual dos seres em decorrência de

predisposições orgânicas no sentido de uma composição crescente da organização.66

Todavia, como salienta E. Carlson, principalmente no que diz respeito à herança dos caracteres adquiridos, a teoria de Lamarck parece sofrer da carência de dados mais substanciais, o que pode sugerir que sua teoria decorre muito mais de princípios filosóficos do que de evidências científicas.67

A despeito de seu perfil filosófico, resumidamente, podemos considerar que a teoria evolucionista de Lamarck estabelecia que as transformações decorrentes de movimentações internas só seriam postas em ação pela necessidade intrínseca de o organismo se adaptar às novas condições ambientais e assim restabelecer o equilíbrio perdido, até que novas mudanças gerassem novas pressões, demandando assim novas adaptações. Os organismos que desenvolvessem alterações adaptativas e conseguissem procriar, transmitiriam às crias os novos arranjos orgânicos, possibilitando assim a sobrevivência enquanto medidas adaptativas a um dado ambiente.

Contudo, o ponto dúbio de sua teoria parece ser saber como se daria a transmissão das características específicas entre as gerações, pois, admitia-se, sem

66 Idem, ibidem, p. 159.

maiores explicações, que os descendentes herdariam as características de seus progenitores, dado que qualquer um poderia constatar, sem grande dificuldade, a existência de certa uniformidade na geração de novos organismos, no sentido das crias apresentarem características de seus progenitores. Um ponto que ocupou sobremaneira as diversas teorias evolucionárias formuladas ao longo do século XIX e que exigiu de Charles Darwin uma teoria específica para dar conta do assunto: a teoria da pangênese.

Todavia, para o desenvolvimento do pensamento evolucionista, a importância de Lamarck parece estar em ter colocado dois problemas centrais com relação ao mundo orgânico: o primeiro, o desenvolvimento histórico e a variação da espécie, o problema da especiação; o segundo, como certas características seriam mantidas e transmitidas dos progenitores à prole, o problema da herança. Demandando, para tanto, a elaboração de teorias que se envolvessem, por um lado, com a questão da transformação ou evolução e, por outro, com a questão da transmissão ou herança.

O EVOLUCIONISMO DARWINIANO E SUA TEORIA DA