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2. Capítulo 2: Formação e residência psiquiátrica

3.3 Processos da formação

3.3.2 As abordagens diagnósticas em cada fase da residência

Como vimos anteriormente, o serviço da residência do IPq/SC tem a duração de 3 anos nos quais a grade horária é dividida anualmente. O primeiro ano é denominado R1, o segundo ano R2 e o terceiro ano é denominado R3 (os residentes de cada ano também são denominados de acordo com essa classificação).

Além da divisão das disciplinas ofertadas, ocorre uma clara distinção de abordagens em cada ano. O primeiro ano é considerado de caráter mais “básico”, onde o residente vai aprender a base necessária para a prática da psiquiatria. Interessante notar que essa formação mais “básica” é praticada principalmente no hospital, seguida de uma rotina junto aos ambulatórios mais “básicos":

O R1 é hospitalar, o que deve ser internado e o que deve ser tratado em casa e também faz as consultas por áreas: depressão, esquizofrenia, bipolar (Joana, residente).

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Que que ele aprende a fazer no primeiro ano então: história clínica, tá? Colher uma história, exame do estado mental, manejar manual diagnóstico, fazer diagnóstico, psicofarmacologia, manejar medicamento, manejar efeito colateral, evolução de caso clínico, é isso que ele aprende no primeiro ano, basicamente isso. Então a gente espera que ele saia do primeiro ano sabendo fazer uma entrevista psiquiátrica, colher uma história, se relacionar com o paciente de forma psiquiátrica e não de forma... Como um médico clínico, mas como um psiquiatra em que a gente vai buscar muito mais os aspectos psíquicos, né? (Tânia, preceptora)

No segundo ano os residentes passam a ter o enfoque psicodinâmico concomitante ao biológico. Os residentes passam a atender também quatro ou cinco pacientes com psicoterapia de orientação analítica semanalmente, para os quais realizam uma hora de supervisão individual semanal. Eles continuam atendendo na enfermaria no IPq/SC , mas com menos dias. No Ambulatório de Psiquiatria do HU, deixam de atender nos dias que atendiam no R1 e passam a atender no Ambulatório de Transtornos Alimentares, no Laboratório de Psiquiatria da Infância e Adolescência e no Ambulatório de Enfermaria Geral (que atende casos de Transtornos Depressivos e Transtornos de Ansiedade, principalmente), todos seguidos de seminários em suas respectivas áreas e com supervisão constante. Também passam a acompanhar o serviço no NASF, ambulatórios policlínicas da prefeitura e no sistema de matriciamento (sistema no qual o psiquiatra sai da policlínica e vai até o posto de saúde para atender pacientes ou discutir casos com o médico da família dos Postos de Saúde). Também frequentam o curso de Teoria Psicanalítica no Centro de Estudos Psicodinâmicos de Santa Catarina (CEPSC), curso introdutório de abordagem psicodinâmica que é realizado uma hora por semana. Esse curso, geralmente pago, é ofertado gratuitamente pelo CEPSC aos residentes de psiquiatria por conta de um acordo com a residência e tem como foco principalmente Sigmund Freud e Melanie Klein.

Não é um curso de formação, é um curso de informação. Ele não forma psicoterapeutas, ele informa. Que é uma hora e meia por semana à noite. Que o

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CESPESC ofereceu pra residência e eles fazem isso gratuitamente no CEPSC (Laura, preceptora).

Além desse, no segundo ano eles também frequentam outro curso de técnica de psicoterapia analítica ministrado por um psiquiatra voluntário que tem um enfoque mais voltado para uma prática de consultas do que o do CEPSC, que foi relatado como sendo mais teórico. No IPq/SC, revezam apresentação de caso de psicodinâmica.

No R2 tem essa diferença que é basicamente que você adquire ferramentas pra poder manejar o paciente, né? Essa formação em psicoterapia, seja a supervisão, a psicoterapia, o curso introdutório à psicanálise e um outro curso de um psiquiatra, do Bóris, voltado pra prática, de alguns temas em psicoterapia... Então a gente aprende coisa que não tem no R1 ainda, que é o manejo do paciente, identificar como ele [o paciente] funciona, quais são as características da personalidade dele, como ele interage com o mundo, aí você consegue manejar melhor o caso, né? (Rodrigo, residente). No segundo ano entra a parte psicoterápica que daí faz que nossa formação se torne mais qualitativa. Que aí a gente começa a pegar detalhes do que a simploriedade de escutar só o que o paciente diz, que às vezes ele traz certos detalhes nas entrelinhas... A gente vai pegando outros detalhes que a clínica não consegue transpor, sabe? Que às vezes questão de personalidade, outras questões que a medicação não vai trazer efeito nenhum. Por exemplo, um paciente com transtorno de personalidade borderline, que tem comportamento que, por exemplo, se relaciona com a pessoa, por exemplo, inicialmente ele ama a pessoa depois ele começa a criar repulsa quando alguma coisa lhe é negada, então tem comportamento intempestuosos, ora ama ora odeia... Então o que vai acontecer? Medimencatosamente, se você coloca medicação, no começo ele vai ficar bem, depois ele vai voltar a ser igual. Nessas pessoas, com uns tipos de diagnóstico, pessoas normais que vão distorcendo as coisas, paranoides, depressivas que vão criando umas características paranoides, de começar a achar que todo mundo tá fazendo mal pra eles,

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minúcias, assim, que atrapalha a qualidade de vida dessas pessoas, tá? (Noel , residente)

Então a gente começa a esclarecer certos detalhes que a clínica não ia esclarecer. E esse é o grande ganho da gente, que a psicoterapia ajuda. Uma coisa, a gente vai vendo os detalhes íntimos das pessoas... Que clinicamente fica muito aquela coisa fechada, né, tem que ser aquela coisa diagnóstica, preencheu aquelas características e então fechou. A psicoterapia faz com que você englobe muito mais coisas, não é só ficar tachando diagnóstico, sabe? Você vai, a partir daquele diagnóstico na psicoterapia, você consegue formas de abordagens com aquele paciente... (Noel , residente). A abordagem psicodinâmica, assim, passa a ser o foco do segundo ano. Mesmo assim, é considerado que esse é um conhecimento inicial, considerada a abrangência da área psicanalítica.

Eles aprendem muito pouco – que eu que fiz uma formação psicanalítica, completa, tem muita coisa ainda. Seria muito ousado dizer que a gente ensina psicanálise pros residentes, entende? A gente ensina noções básicas de psicanálise, né? A gente ensina a fazer uma abordagem mais psicodinâmica (Laura, preceptora).

No terceiro ano pretende-se integrar parte clínica de assistência em atenção primária e secundária em saúde e a parte de psicodinâmica. Os residentes continuam atendimento com psicoterapia, mas em menor número, cerca de dois pacientes por residentes e com supervisões quinzenais em vez de semanais. Os residentes diminuem ainda mais os horários no IPq/SC e ambulatório e iniciam atividades nos CAPS. Como a grade ainda está sendo organizada e a presença nos CAPS e NASF é recente, não fazendo parte da grade horária inicial, nesse ano ainda tem residentes R3 que estão nos NASF por terem passado no CAPS no ano anterior, mas a previsão é que esses horários sejam acertados para as turmas em 2013.

Nessa última fase da residência, os residentes passam a atuar nas pensões crônicas do IPq/SC e dois deles continuaram com enfermaria de agudos. Passam a ter seminários e grupos de Terapia

146 Cognitivo-Comportamental, um para pacientes com Transtorno de Pânico e outro voltado para pacientes com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), cada um desses grupos ocorrendo em um semestre do ano. Cada um desses grupos é acompanhado por apenas 3 dos residentes de R3 de modo que cada residente passe por apenas um desses grupos visando não prejudicar a dinâmica dos grupos por um excesso de profissionais acompanhando. Também estão presentes uma vez por semana no Ambulatório de Refracta, mas apenas observando a avalição dos psiquiatras, mantém as atividades acadêmicas no IPq/SC e apresentam, ao final desse ano, um trabalho de conclusão de curso. Além disso, uma vez por semana se concentram na Área B do HU, onde realizam interconsultas (realização de parecer para pacientes internados no HU quando solicitado pelos médicos do hospital) e atendimento ambulatorial com caráter de triagem para o Ambulatório de Psiquiatria.

R1 é mais baseado em diagnóstico do DSM, um pouquinho mais restrito, mais clínico. O R2 diagnóstico psicodinâmico e estrutura de personalidade, uma visão mais completa e no R3 a gente tem aquele enfoque mais psicossocial, é onde a gente integra mais. Então a gente... Se é que posso dizer,assim é uma escadinha: a gente parte da parte clínica, que é a básica, depois vai pra parte mais de personalidade e no R3 a gente já tem um enfoque mais psicossocial, completando um diagnóstico mais assim... A gente contempla mais o individuo como um todo, a parte mais social, também (Vitório, residente).

Os responsáveis pela confecção da grade disciplinar afirmam que as disciplinas ministradas obedecem às diretrizes do MEC, mas que a distribuição das disciplinas e atividades de acordo com o ano de residência e no sentido de um diagnóstico mais biológico para um mais dinâmico e depois para um mais social, fechando também uma compreensão do funcionamento da rede de saúde, foi pensado por acharem mais fácil iniciar o aprendizado com a abordagem clínica do que a abordagem psicodinâmica, uma vez que a primeira é mais próxima à formação médica, mas também por se considerar que a clínica tem um caráter essencial no manejo do paciente, o que não é o caso da abordagem psicodinâmica.

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Psicodinâmico é bem mais difícil. E o que tu precisa pro contato inicial com um paciente psiquiátrico é primeiro a clínica. Que tu começa fazendo plantão, tendo que atender gente em emergência, ambulatório paciente internado [faz barulho de palmas, bate nas mãos] saber psicanálise na hora do “vamos ver” ali não...Não... Quando tá no front tem que saber resolver os problemas que surgem ali. Aí é uma... refinamento tu entender e conhecer psicanálise. E é mais fácil, muito mais fácil, a psiquiatria clínica... Não tem dúvida, é muito mais fácil. Tanto que eles saem daqui psiquiatras clínicos. Se querem se especializar eles fazem depois um curso no CEPSC (Tânia, preceptora).

Ao longo do tempo de residência, assim, a perspectiva quanto à realização de diagnóstico vai adquirindo novos contornos.

Interessante notar que as abordagens,

clínicas/psicodinâmicas/sociais, respectivamente priorizadas no R1, R2 e R3, seguem a lógica evolutiva pela qual caminha a própria psiquiatra, que passou de um atendimento exclusivamente hospitalar para englobar também atendimento ambulatorial e, posteriormente, atendimentos também em rede, como é o caso dos CAPS.

A ênfase na abordagem clínica ensinada no R1 deixa ver uma visão de psiquiatria que entende aspectos da clínica e da psiquiatria mais biológica como abordagem essencial, sendo as demais consideradas importantes, mas apenas complementares. Mesmo entendidas como fundamentais para uma melhor aplicabilidade da psiquiatria, essas não são consideradas partes estruturais da prática psiquiátrica – que pode, então, ser praticada sem um viés psicodinâmico ou social.

O aporte clínico voltado aos manuais é onde se concentra o coração da prática psiquiátrica e pode tanto ser um ponto de partida para outras abordagens quanto findar-se em si. O que nos leva mais uma vez a uma valorização dos aspectos mais próximos ao que se entende por objetividade científica.

Outro aspecto é que a residência, embora seja praticada exclusivamente nos serviços públicos de saúde, não efetua uma discussão específica sobre saúde pública. Tive a oportunidade de ver a última aula de um ciclo de seminários introdutórios sobre Medicina Social que foi ministrado pela primeira vez esse ano e

148 que, me parece, pode ser uma semente de abordagem do tema mais a fundo. Nesse seminário, aspectos sociais da prática psiquiátrica inserida em uma rede de atenção centrada no CAPS começaram a ser discutidos com os residentes, além de serem apresentadas discussões de temas como a patologização da vida cotidiana e o uso excessivo de medicamentos por parte de médicos e psiquiatras ao abordar casos de “saúde mental” – e como, muitas vezes, considera-se que o medicamento é a única ferramenta que o psiquiatra tem para ajudar o paciente mesmo quando se considera que seu caso não teria indicação para tal tratamento. Mas, comparado com as tantas ênfases diagnósticas e clínicas da residência em questão, esses aspectos são bastante periféricos na formação da residência do IPq/SC.

3.4 Questões políticas que perpassam os diagnósticos em