• Nenhum resultado encontrado

2. Capítulo 2: Formação e residência psiquiátrica

3.2 Procedimentos técnicos de realização de diagnóstico: a

3.2.5 Refracta, a exceção como exemplo

Um ponto que elucida um pouco mais essa questão “flutuante” e não objetiva do diagnóstico em psiquiatria pode ser

35 Para Bonet, o médico constrói o diagnóstico a partir da relação entre dados objetivos e formas subjetivas de interpretar os dados a partir do que o autor chamou de “tensão estruturante”, processo em que o diagnóstico resulta-se, como no processo ritual de Turner, em um ordenamento da crise (Bonet, 2004).

135 encontrado se formos discutir o ambulatório Refracta da residência no HU, ambulatório que se destina, grosso modo, à avaliação diagnóstica de casos que são considerados “exceções”. Seja por contradições nos códigos manuais ou por “contradições” dos sintomas do paciente, que não se encaixam em nenhum diagnóstico específico ou seja, ainda, em casos que o tratamento medicamentoso não tem efeito, esses casos são considerados como de difícil manejo em pacientes graves que, não obstante a incerteza ou inexistência de um diagnóstico específico, apresentam um “quadro” de sofrimento considerado grave. Entende-se que pacientes que não respondam da maneira esperada à nenhuma das tentativas de tratamento utilizadas podem estar sendo diagnosticados de maneira errônea. Esse ambulatório vai, então, realizar uma investigação diagnóstica minuciosa junto a esse paciente e depois encaminhá-lo de volta ao médico com quem realiza tratamento.

Desse modo, acredito que uma discussão sobre o ambulatório Refracta pode permitir uma postura interessante para ampliar a compreensão e a discussão sobre diagnóstico em psiquiatria. Esse ambulatório foi criado recentemente, há cerca de um ano com esse objetivo de contemplar atendimento a uma demanda considerada mais grave do ponto de vista psiquiátrico, casos que sejam considerados farmacologicamente refratários e/ou com diagnósticos indefinidos e que apresentem pouca ou nenhuma melhora mesmo depois de longo tempo de tratamento.

São casos bem graves do ponto de vista psiquiátrico. Quando eu digo psiquiátrico eu quero dizer não só médico, psicossocial também. Uma boa parte dos pacientes tem uma, do ponto de vista do tratamento, eles são pseudo-refratários. Eles ou não tem um diagnóstico especificamente, não é uma depressão que eu entendo como uma depressão maior que ele iria pra nossa alçada, muitas vezes é uma depressão menor que com muitos componentes, muitos prejuízos funcionais, com a família, com o trabalho... Então identificar isso ajuda muito o médico que encaminhou (Cléber, preceptor).

Esse ambulatório, segundo Cléber, começou “feito por um sonho” a partir de uma iniciativa voluntária com a ideia de aprimorar o diagnóstico e avaliar se determinado paciente está

136 tendo tratamento compatível com o seu quadro. Um grupo de colegas vinculados ou não à residência criou um protocolo de avaliação no qual cada paciente é avaliado por 3 horas, uma manhã inteira, em quatro encontros, num total de 12 horas, por cerca de quatro ou cinco profissionais. Esses pacientes são encaminhados por outros psiquiatras: da prefeitura, geralmente matriciados36, mas também pela residência e alguns casos, inclusive, de psiquiatras particulares – mas, por se tratar de um serviço na rede púbica, sem cobrar pelo serviço desse ambulatório ou de seus profissionais. A ideia básica desse ambulatório, como foi dito, é confirmar ou refutar a hipótese diagnóstica do paciente encaminhado ou mesmo se esse tem algum transtorno.

Em cada um desses dias de trabalho se observa um requisito a ser preenchido em um relatório o mais completamente possível. A dinâmica do atendimento é de que, no primeiro dia, seja realizada uma entrevista aberta convencional, o mesmo modelo de entrevista que os psiquiatras fazem usualmente. No segundo dia, uma semana depois, é realizada uma entrevista mais fechada, estruturada, usando um questionário específico e validado pra isso, para avaliar a possibilidade de ocorrência de transtornos do eixo 1, critério diagnóstico do DSM IV que engloba depressão, transtornos ansiosos e esquizofrenia, principalmente (DSM IV, 1995). No terceiro encontro utiliza-se um outro questionário direcionado para diagnosticar eventuais chances de compatibilidade com o que a psiquiatria chama de eixo 2, que engloba, principalmente, retardo mental e os transtornos de personalidade - por exemplo, Transtorno de Personalidade Esquizóide, Transtorno de Personalidade Borderline e Transtorno de Personalidade Dependente. (DSM IV, 1995). No quarto e último encontro é feita uma “devolutiva” ao paciente e ao familiar e ocorre a entrega do relatório do que foi observado, sendo que uma cópia deve ser encaminhada ao psiquiatra que encaminhou. Basicamente, um serviço voltado para a realização de uma segunda opinião diagnóstica através de procedimentos técnicos abundantes e intensivos.

A simples existência desse ambulatório nos remete ao fato da extrema delicadeza da realização de diagnósticos em psiquiatria e em como esses são caracterizados por mecanismo imprecisos.

137 Dos casos analisados até agora por esse ambulatório, apenas alguns poucos se caracterizaram por uma “pseudo refratariedade”, caso cuja gravidade não justifica a continuidade da medicação. Esses pacientes têm “sintomas depressivos” ou “sintomas ansiosos” que atrapalham a vida deles, mas esses são considerados mais como reação a situações cotidianas do que a transtornos, os chamados pacientes “muito reativos”.

Além de um viés ideológico de prestar um atendimento que o SUS não teria condições de arcar, Cléber aponta que esse ambulatório tem “talvez uma certa presunção até, de ajudar na segunda opinião no sentido de: ‘olha, ele tem realmente um diagnóstico que é passível de um tratamento medicamentoso’ ou ’ele não tem um diagnóstico que seja passível de um tratamento medicamentoso’... (Cléber, preceptor) nesses casos nos quais se considera que o tratamento medicamentoso não é indicado por se tratarem de processos reativos. Cléber aponta também para a importância dos aspectos não estritamente diagnósticos para entender a complexidade do sofrimento psíquico humano para além da definição de transtorno mental.

Talvez pelo que eu li no teu texto, eu vi uma frase bonita que tu colocou, da tua experiência com as mulheres que você acompanhou [sobre meu projeto de pesquisa para a presente dissertação] 37, que tinham, né, que tratava por depressão que tinha a ver com a subjetivação... Eu não sei se eu estou correto com o entendimento, não é um termo técnico da minha área, então eu posso estar enganado, mas... É como se eles passassem por um processo e processo gera... Não há muito o que a gente fazer – isso do ponto de vista farmacológico – não há muito o que o Refracta pode fazer do ponto de vista farmacológico. Ele pode ajudar no sentido de realmente: “olha, vai por outro caminho, não é esse o caminho”, aí sim... Até onde a gente pode ir é confirmar ou não um diagnóstico (Cléber, preceptor).

37 Entreguei para alguns sujeitos de pesquisa uma cópia do meu projeto de pesquisa, sempre que solicitado por esses. Também deixei duas cópias na recepção do Ambulatório de Psiquiatria do HU e uma cópia com o coordenador do IPq/SC.

138 Ou seja, há situações em que se considera que esses pacientes estão em um processo cuja complexidade não se resume a um tratamento medicamentoso, que perpassa outros pontos da vida do indivíduo em questão e que um tratamento medicamentoso seria apenas uma abordagem paliativa, quando muito. Nesses casos, é indicada a realização de terapias psicológicas e não medicamentosas.

Alguns casos se fecha um diagnóstico, outros casos permanecem incertos e é indicada a terapia. Mas, essencialmente, considera-se que o paciente passa por uma avaliação mais objetiva ao mesmo tempo que ampla, visando abordar aspectos qualitativos e quantitativos, sempre do ponto de vista psiquiátrico:

No final a gente faz um relatório quanti e qualitativo. Quantitativo porque tem escalas psicométricas para avaliar a frequência, e a frequência da intensidade dos sintomas apresentados por ele, pra gente poder ter uma ideia mais objetiva do quadro. (Cléber, preceptor). Eu acho que uma avaliação psiquiátrica ela tem que passar pelo qualitativo... Por exemplo, quando você tem um critérios diagnóstico no DSM IV ele é quali e quanti. As pessoas dão muito valor ao quali, quer dizer: preencheu pra isso, preencheu pra isso é uma depressão maior, não é bem assim, não é nada disso, assim... Ontem, por exemplo, a paciente não encaixava em nenhum critério do DSM IV. Nem por isso não era psiquiátrico, não era grave ou não era passível de medicação, simplesmente não encaixava. Era um estado misto que a gente foi achar em trabalhos de Kraepelin, que é um estudioso, que nem existia direito psiquiatria, ainda, em 1900/1890, é o princípio do transtorno bipolar que nós entendemos hoje, na época eles não tinham esse nome, né? (Amanda, preceptora)