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2. Capítulo 2: Formação e residência psiquiátrica

3.2 Procedimentos técnicos de realização de diagnóstico: a

3.2.2 Os manuais

Após e/ou concomitantemente a realização do exame do estado mental, os psiquiatras e residentes relatam que associam as informações recolhidas com possíveis categorias diagnósticas, a

115 fim de formar hipóteses diagnósticas que devem ser avaliadas ao longo do tratamento, como discutimos anteriormente.

A elaboração dessas hipóteses diagnósticas seguem diretrizes classificatórias presentes em dois grandes manuais, a saber: a Classificação Internacional de Doença, décima edição (CID 10), mantida e publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais IV (DSM IV), que é o manual americano.

A influência dos manuais na residência e no processo de realização de diagnóstico pode ser visto na própria organização dos ambulatórios que, criados por e para a residência no HU, foram estruturados de acordo com a CID 10. Embora no Brasil a CID 10 seja o manual adotado oficialmente para diretriz documental para reportar registros oficiais, relatórios, atestados e demais documentos, o serviço de residência baseia-se em ambos os manuais, CID e DSM, de maneira complementar, para a efetivação dos diagnósticos. Apenas em questões documentais que o CID é priorizado.

A gente usa mais em documentação, em registro, por força legal, inclusive. Agora, o DSM continua sendo usado inclusive aqui nos nossos serviços (Joana, residente).

Em alguns casos, no entanto, o DSM foi relatado como mais presente na prática clínica:

A gente usa mais o DSM porque o DSM ele é mais categórico, ele tem as categorias e tem os critérios diagnósticos. Então quem tá começando a fazer psiquiatria precisa estudar o DSM, porque pega ali: “quais são os critérios diagnósticos pra depressão?” Lista ali. Tu tens que preencher desses oito tem que ter, sei lá, cinco positivo. É assim que o residente começa a fazer diagnóstico (Laura, preceptora).

De modo geral, esses manuais são considerados guias classificatórios que devem servir de auxiliar instrumental para a prática clínica e não um protocolo definitivo. Além disso, entende- se como prioridade desses manuais a padronização de determinados transtornos com objetivo de possibilitar entendimento entre os profissionais da área, tanto na prática (como,

116 por exemplo, em casos de encaminhamentos e preenchimento de documentos) quanto nas discussões de caráter técnico e acadêmico (DSM IV, 1995).

Ele serve como um guia, um norte, pra gente – porque como ele é universal, todo mundo usa, pra gente poder falar a mesma língua. Mas a gente tem que observar outros aspectos... Porque a psicopatologia ela contempla mais o sujeito, o que ele está apresentando... Não quero saber que tipo de sintoma ele tem, mas o que ele está apresentando. Ele tá hoje mais deprimido, menos deprimido, mais ansioso, menos ansioso (Vitório, residente).

O diagnóstico a gente segue critérios clínicos, a gente também contempla a fenomenologia e a psicopatologia, pra não ficar tão preso no DSM que é uma coisa, assim, empírica na verdade, um grupo de especialistas se reuniram e disseram que aquilo ali é o que define o transtorno mental. Então a gente usa como um guia mas a gente não se limita a isso (Vitório, residente).

Resumidamente, a formulação da hipótese diagnóstica se dá a partir de “um agrupamento de sintomas e ver como eles se encaixam” (Guilherme, residente) a partir dos critérios estabelecidos nos manuais.

Tu vai abrir, por exemplo, TET, Transtorno de Estresse Pós-Traumático; 31 tu vai abrir critério A, isso, isso e isso; critério B, isso, isso, isso; critério C... Tem isso? não tem? Transtorno de pânico com agorafobia, tem isso? E vai, acha que é transtorno de ansiedade generalizada, então vai lá. Então tá diante de ti um caso sindrômico de ansiedade e tu conseguir enquadrar ele em duas ou três hipóteses diagnósticas, aí tu vai ter que observar com o tempo, outras consultas, qual é a mais adequada, né? O que é muito sedutor e é um erro que a gente comete muito é na primeira consulta a gente querer fechar um diagnóstico... E que a gente vê que não dá, precisa de tempo e conhecer bem o paciente, e é a parte legal, conhecer o paciente, acompanhar... Tem

31 Ver: DSM (1995).

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que montar um quebra cabeça, você não vai dar um diagnóstico na primeira consulta... (Rodrigo, residente). Desde a terceira edição do DSM esses manuais buscam um viés “ateórico”, caracterizado pela procura de um caráter mais descritivo do que interpretativo (como era marcado até então pela presença da teoria psicanalítica) na tentativa de se aproximarem de um viés mais objetivo que é considerado característico das áreas médicas (Aguiar, 2004). O estabelecimento de critérios mais ou menos fixos e delimitados, no entanto, não suprimem a presença de fatores subjetivos na utilização dos critérios manuais. De acordo com o residente Guilherme, por exemplo, o processo de realização de diagnóstico segue, para além da técnica, uma espécie de “feeling”, modos de abordagem aprendidos e desenvolvidos por cada profissional a partir da experiência construída no dia-a-dia.

Depende da prática, não tem orientação quanto a isso. Você vai vendo como os casos são, vai comparando com outros casos... Cada pessoa adoece de um jeito, mas de modo geral há semelhanças dos sintomas (Guilherme, residente).

Então tem critérios que a gente se baseia e clinicamente a gente vai pegando uma amostra tão grande de características – caso que destoa levemente de paciente pra paciente – mas assim, com experiência clínica também, você vai pegando experiência com a prática. Uma coisa é você ver na teoria e outra é ver na prática (Noel , residente).

Para Guilherme, esse processo de diagnóstico contém as sutilezas e minúcias de um procedimento que é técnico mas também artístico:

Isso é uma arte. Às vezes você pergunta algo querendo prestar atenção não na reposta em si, mas no modo como a questão é respondida, tem que avaliar reação da pessoa, tenta ver congruência entre o que tu tá vendo na hora, se ela fala que está ansiosa mas fala assim, toda calma... (Guilherme, residente).

118 Os manuais são diretrizes diagnósticas categóricas em processo constante de aprimoramento e, o mais importante, não passíveis de englobar toda a prática clínica em psiquiatria.

Os manuais são basicamente check-list, uma listinha de sintomas... Aí tem os critérios maiores, tem lá: critério A, critério B, critério C. Preencheu, tem que preencher dois ou três maior ou um maior e três menores, você já pode categorizar como um transtorno depressivo, por exemplo. Mas aí, vamos lá, o cara preencheu um maior e dois menor, e aí? Ficou um fora e por isso eu vou tirar que ele não tem depressão? Aí que entra aquela questão mais subjetiva, porque ele preencheu dois em vez de três não é necessariamente que ele não tá com sintoma depressivo. Então, assim, é mais pra fins de pesquisa, pra coisa ficar mais redondinha, uniforme, é bem importante assim, pra padronizar a amostra. Mas assim, na prática tem que não levar tanto a risca assim. Claro que precisa daquilo ali, um guia até pra saber se aquela característica pode se enquadrar, se é um indício, mas eu acho que o que não deve é ficar só preso naquilo ali, uma listinha de sintomas e fechar (Tiago, residente). O que nos leva ao próximo tópico de discussão, sobre a presença de fatores dinâmicos e subjetivos para a realização do diagnóstico.