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2. Capítulo 2: Formação e residência psiquiátrica

2.1 Formação em psiquiatria

2.1.2 Hospital como local de ensino: o que aconteceu

O serviço de residência do IPq/SC - seguindo as diretrizes do Ministério da Educação (MEC) e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) - tem suas atividades voltadas em grande parte para a atuação hospitalar e, assim, nesse ponto em específico, atua na direção contrária dos moldes da reforma na qual se preza uma rede em saúde mental que substitua definitivamente o hospital psiquiátrico.

A preceptora Maíra me diz que, quando na fase de implementação da residência, no começo da década de 2000, poderiam ter feito o contrário: a residência poderia ter sido pensada como uma proposta junto à UFSC com parceria no IPq/SC, mas que “na época era mais comum fazer pelo Estado”. A escolha pelo IPq/SC como sede da residência foi pensada devido aos profissionais estarem vinculados

20 Não efetuei uma pesquisa apurada sobre esses currículos. Tomei por base também a discussão de autores que estudam o tema: Nos cursos de Saúde Mental, as disciplinas todas são “psi”: às vezes não há nem Saúde Coletiva, nem uma noção básica de planejamento, de políticas sociais. Então, eu acho que é uma discussão fundamental (Amarante, 2010, p. 103).

83 institucionalmente ao hospital mas principalmente por se considerar então que o hospital contaria com uma infraestrutura que parecia mais apropriada para abordar casos de emergência em psiquiatria - no caso, essa infraestrutura seriam as enfermaria e os leitos. Tal fato não deixa de refletir bastante o modelo de atendimento psiquiátrico que vem sendo priorizado nas práticas da residência.

A predominância do ensino da residência dentro do IPq/SC abre espaço para uma discussão essencial sobre a formação do residente no contexto atual, além de nos remeter à discussão sobre as bases epistemológicas da psiquiatria. Como já demonstrou Foucault (1995), debruçado sob o leito é onde se fez o psiquiatra. Se atualmente temos ainda a permanência do enfoque hospitalar para ensino da profissão, poderíamos pensar que esse conhecimento que se produz hoje seria semelhante, em essência, do que caracterizou o início do saber psiquiátrico?

Na época de implementação da residência aqui estudada, a Reforma já tinha sido oficializada e já havia sido decretado o fechamento dos hospitais; porque uma residência enfatizaria então leitos em um hospital psiquiátrico se esses deveriam ser minimizados ao máximo? Os leitos não deveriam mais ser a base do conhecimento/prática psiquiátricos, mas na prática é o que continua acontecendo. E isso nos leva a questionar os regimes de força que possibilitam que um decreto, uma lei, não tenha mais peso na prática do que uma posição oficial da ABP. Claro que estamos falando de posições bastante consolidadas de poder na atualidade e que essas, lei e ciência, se fazem valer de diferentes formas, mas não deixa de ser interessante observar como uma instância de ordem da sociedade pode se alterar em nome da “ciência” uma vez que se entende que as leis devam ser a base sob a qual se fundamenta e ordena a sociedade civil. Que poderes tem então a ciência, essa forma de conhecimento que, mesmo com tantas discussões que a procuram desmistificar de forma tão razoável21, se faz valer inclusive acima de uma instância de lei? Deixo essa questão em aberto para um outro debate. Adiante, no capítulo quatro, será retomada essa relação entre a psiquiatria e a ciência.

A residência do IPq/SC especificamente, embora hospitalocêntrica, não deixa de atuar em todos os outros pontos da rede de saúde mental, indo ao encontro daquilo que propõe Ceccim (2010) quando defende que as residências devem prezar por treinar a prática em

21 Autores como Kuhn (1978), Hacking (1999) e Latour (2000), entre outros, produziram trabalhos importantes sobre o tema.

84 todos serviços de atenção e não apenas no local sede de residência (Ceccim, 2010), como apresentado.

No que se refere aos espaços de formação em saúde mental, tem se observado que muitos acabam tendo no hospital psiquiátrico um lugar central para a formação ainda nos dias de hoje, nesse contexto de implementação da reforma psiquiátrica. Nas palavras de Amarante,

E o lugar de produção e reprodução do conhecimento ainda é o manicômio, que é o lugar de formação por excelência do modelo psiquiátrico clássico (Amarante, 2010, p. 97). Os problemas de uma formação dentro do hospital, para Amarante, não se dá pelo local em si mas pelas prerrogativas que se assume a partir desse espaço (Amarante, 2010). Se, por um lado, os teóricos com viés antimanicomial assumem que a rede de atenção à Saúde Mental deve deixar de ser uma simples alternativa de tratamento para tornar-se realmente substitutiva ao modelo hospitalar (Lobosque, 2010), a posição de muitos psiquiatras e gestores é que o fechamento dos hospitais psiquiátricos é inviável: argumentos sobre a Reforma Psiquiátrica como desassistência e associação de fechamento de leitos com aumento da indigência vem servindo de base para que os hospitais continuem sem perspectiva de fechamento.

Amarante aponta que o modelo manicomial é predominantemente tomado como base nas residências em saúde mental, seja o molde tradicional (o hospital mesmo) ou sua adaptação para algum serviço novo. Para o autor, “a questão é que nós ainda pensamos toda a formação médica a partir do hospital, do modelo biomédico” (Amarante, 2010, p. 98).

Não é apenas nos cursos de psiquiatria, mas também em outras áreas que atravessam a chamada Saúde Mental que muitas vezes têm o foco de suas atividades no hospital. Ou seja, se nem as disciplinas não psiquiátricas da Saúde Mental conseguiram abandonar de vez o modelo hospitalocêntrico na formação de seus profissionais, não é de causar espanto que existam residências em psiquiatria ainda focadas no hospital, já que a psiquiatria, enquanto saber, tem sua origem neste espaço (Foucault, 1994). Foucault discute como o saber médico nasce no hospital (Foucault, 1994) e como, mais especificamente, o saber psiquiátrico só é possível a partir do hospital psiquiátrico e dentro deste (Foucault, 1995).

Retomando as leituras de Foucault, Amarante discute que “foi dentro das práticas de internamento, das práticas de exclusão, que se

85 constituiu um saber para justificar essa exclusão, que se constituiu um saber que classificava os sujeitos. E classificava sujeitos cujas experiências já tinham sido alteradas pela prática do internamento” (Amarante, 1996, p. 98). O saber psiquiátrico se origina a partir de uma realidade confinada, alterada:

Muito da psicopatologia que nos ensinaram Pinel, Morel, Kraepelin, todos os grandes clássicos da psiquiatria foram psicopatologias observadas em sujeitos cuja experiência da loucura foi transformada pela institucionalização (Amarante, 2010, p. 98).

Essa questão de vincular o ensino ainda hoje ao hospital, assim, se depara com uma problemática maior sobre os próprios saberes que fundam a psiquiatria e em quais saberes se pautam outras áreas da saúde mental: os sujeitos não experimentam as mesmas formas de loucura independente do local onde estão inseridos uma vez que suas “loucuras” não existem em estado de natureza, mas são experimentadas em relação com o meio no qual estão inseridos (Amarante, 2010). Nesse sentido, a formação não apenas reproduz os valores instituídos, como se esses também existissem em um estado puro de natureza, isolado da prática, mas os reafirma e reinventa em sua prática diária.

Entraremos agora em uma discussão mais específica sobre a formação na residência em psiquiatria do Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (IPq/SC) e como essa se insere dentro desse quadro geral em que está inscrita.

2.2 A residência psiquiátrica do Instituto de Psiquiatria (IPq/SC)