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3.4. AS PRÁTICAS DE ATENÇÃO, AS CONCEPÇÕES DE GÊNERO E A AISM

3.4.1. As atribuições das mulheres e as orientações profissionais

As profissionais da equipe Lírio do Vale apontam a mulher como a figura fundamental de seus lares. Constatam que a mulher mantem-se como principal responsável pelo cuidado da família, cuidado dos filhos, cuidado da casa (tanto em tarefas domésticas como no gerenciamento do lar) e ainda o cuidado pela estabilidade familiar (ou conjugal). Para a médica Helena: “Apesar de toda emancipação feminina, mas a responsabilidade do lar ainda é muito da mulher, e ela geralmente é quem cuida muito”.

Tal característica também fora observada nas poucas atividades vivenciadas com a equipe da médica Bárbara. Na reunião de gestantes da equipe Gardênia que participei, outras falas também podem exemplificar a forma como se articula a imagem da mulher atrelada ao cuidado com os filhos e com a estabilidade conjugal:

Bárbara relembrou a última reunião de gestante que falou sobre parto. Então ela pede para repassar o que discutiram. Poucas gestantes falam, mas relembram alguns pontos. A médica relembra os sinais do parto, sobre os cuidados para quando for à maternidade “parir”: deixar a mala do bebê arrumada, cuidados com a limpeza, ficar cheirosa – “até pro

pegar ele” (refere-se ao termo muito utilizado atualmente de

“piriguete”, que está ligada à imagem de mulher “fácil”) (DC).

As orientações passadas às mulheres sobre o modo como devem cuidar de seus filhos e da manutenção de sua vida conjugal, parecem permear muitas das práticas das profissionais. As reuniões acabam por conter prescrições baseadas no conhecimento profissional sobre como as mulheres devem conduzir suas vidas e exercer seu papel de cuidadora da melhor maneira – sob julgo daquelas que transmitem as orientações. Conforme nos demonstra Schraiber, em seu estudo realizado com equipes de PSFs em Recife, as mulheres são usuárias preferenciais dos serviços, seja como mãe ou como cuidadora da família, ou ainda reprodutora dos discursos e práticas de saúde (SCHRAIBER, 2005). Scott (2005) em reflexão sobre gênero e família no PSF em Recife, reafirma esta centralidade com a qual a mulher é vista nas Unidades de saúde. (SCOTT, 2005).

Segundo Bustamante & Trad (2007), entre profissionais do PSF persiste uma grande dificuldade “em superar a visão universalizante de família, baseada no modelo nuclear, assim como a tendência a pensar nas mulheres como as “cuidadoras” naturais da família” (BUSTAMANTE & TRAD, 2007: 1176).

E por constatarem este papel social atribuído às mulheres, as profissionais reforçam este ideário, com a série de orientações sobre como devem cuidar de seus bebês, por exemplo. Coloco este exemplo, por observar que dentre as orientações passadas pelas profissionais às usuárias gestantes, existe uma preocupação constante em reforçar a importância do aleitamento materno exclusivo. Esta preocupação das equipes profissionais segue de acordo com os esforços empregados pelo próprio Ministério da Saúde para ao aumento desta prática.

O trabalho etnográfico de Tornquist (2003), sobre humanização do parto faz referência à questão da amamentação. A autora aponta e reflete sobre o valor atribuído à prática da amamentação. Ao mesmo tempo em que se preconiza a amamentação enquanto um direito do bebê perde-se de vista o direito da mãe em resistir a esta prática. O que poderia ser uma normativa bem intencionada acaba sendo mal implantada, ferindo até mesmo princípios relativos aos direitos humanos. Segundo a autora, a prática de indução à amamentação, muitas vezes ocorre como uma “obsessão em fazer toda mulher amamentar seu bebê”. Sendo fruto de um imaginário de tradição higienista que busca construir um modelo de mãe que acaba em violências e desrespeito “aos

direitos das mulheres sobre seu próprio corpo e à diferença.” (TORNQUIST, 2003: 426).

O esforço em prescrever o aleitamento exclusivo e conseguir que a mulher o faça, choca-se muitas vezes com o saber popular das mulheres, das familiares destas mulheres ou vizinhança. Nisto encontra-se uma das maiores intenções das profissionais – conscientizá-las de que muitos conhecimentos do povo sobre a saúde é apenas “mito”. Sobre isso falou Marieta, em uma reunião de gestantes:

Marieta ressaltou a importância de se fazer o que aprendeu, do que lê, do que aprende que é o certo. E não dar bola aos hábitos, ensinamentos e experiências dos familiares, vizinhos, que muita coisa é “mito”. E depois a criança vai precisar de remédio, vai ficar doente. Contou que sua irmã teve uma filha e apenas amamentou até os 6 meses, não deu mais nada, nem chá, nem mingau, nada que as pessoas diziam para ela dar a sua filha. Ela fez exatamente como a médica orientou e só deu leite materno, por conseqüência hoje sua filha tem 5 anos e nunca precisou tomar antibiótico. Disse também mais de uma vez que as meninas é que eram as responsáveis pela saúde, pela vida de seus filhos. (DC).

Bustamante (2009) também aponta em seu estudo, certa distância entre as expectativas dos profissionais para com as usuárias e vice-versa. Em um relato sobre uma profissional de saúde, nos mostra como a profissional se lamenta pelo fato das usuárias não seguirem suas orientações. Ao mesmo tempo em que, em uma fala da mesma profissional que é reportada, se percebe o quanto as orientações técnicas se distanciam das realidades vividas pelas usuárias, além de se pautarem na supremacia do saber científico em detrimento dos conhecimentos de vida e de experiência das usuárias. (BUSTAMANTE, 2009: 185)

Esta questão observada articula-se a outra, que se refere à associação da figura da mulher com a esfera doméstica. Nas visitas domiciliares, sempre que chegávamos em alguma casa, a ACS perguntava da mulher da casa, mãe, avó, tia, irmã. Ao encontrar alguma mulher na rua ou em casa, quando a agente perguntava sobre o estado de saúde de algum familiar, recomendava depois que esta assumisse a responsabilidade sobre o caso específico. Falas como: “Porque você não cuida dela? Vá lá, pega ela e fica responsável por ela...” ou então: “Se você marcar uma consulta pra ele, ele num iria?”, ou ainda: “Vá lá, num esqueça não, vá marcar uma consulta pra seu avô!” (DC), foram pronunciadas sempre a uma mulher – jovem ou adulta – durante visitas.

Poucas vezes vi um homem nos atender, ainda que estivesse presente nas casas. Esta observação exemplifica como a esfera privada é de domínio feminino.

Trago esta reflexão para discutir os limites destas práticas de atenção à saúde, nas quais as profissionais não conseguem instituir uma relação de construção compartilhada de autonomia com (e para) as mulheres usuárias, ainda que o desejem. Enquanto não se transcende a idéia da mulher como a principal responsável pela casa, pela família, pelo cuidado – não é possível transformar as práticas para além das ações de orientação baseadas em normativas para os modos de vida das usuárias. Se o olhar sobre as mulheres permanece ancorado em valores tradicionais, que atrelam sua figura ao espaço doméstico e privado, estas não se apropriam de autonomia.