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1.2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2.4. Gênero na Saúde Coletiva

Em linhas gerais, ‘gênero’ é utilizado neste trabalho enquanto uma categoria de análise para refletir acerca das relações sociais e desigualdades de poder em que estão implicados os homens e as mulheres, uns com outros e entre si, tendo em vista o modo como emerge (não somente expresso, como também constituído em práticas e discursos) no contexto estudado. Refletir sobre gênero, neste campo de práticas da saúde, segundo Villela et. al., “... se relaciona ao processo de construção de uma nova perspectiva sobre mulheres e homens que, na área da saúde, permite redimensionar as suas necessidades.” (VILLELA et. al., 2009: 1003).

Historicamente, no setor da saúde, as mulheres eram vistas a partir de sua função reprodutiva. Tinham a sexualidade e as fases da vida, como a puberdade, a gravidez e a menopausa, vigiadas e controladas. A expressão dos desejos eróticos estava vinculada à histeria e à loucura, impedindo a mulher de viver plenamente seu desejo sexual (FOUCAULT, 1997). As ações de saúde, por um longo tempo, basearam-se nesta premissa, que entendia a mulher enquanto um aparelho reprodutivo, fornecendo serviços de atenção à saúde voltada à maternidade.

A partir das mudanças sociais, dentre as quais as mulheres estiveram presentes, organizadas e em luta por liberdades políticas e individuais e por autonomia sobre si e seu próprio corpo, emergem iniciativas de repensar os modos como as práticas de saúde produziam uma concepção de mulher subordinada às suas condições fisiológicas. Acompanha-se a este processo estudos que mostram a relação entre os problemas de saúde das mulheres e a sua condição de desigualdade frente aos homens.

Do mesmo modo, começam a ganhar volume os estudos que abordam a saúde das mulheres não apenas na dimensão reprodutiva ou como uma parcela inespecífica da população, mas também como trabalhadoras e como sujeitos que também tem necessidades de saúde além das reprodutivas. [...] estes estudos têm por pressuposto a saúde como um direito básico, portanto integrado à agenda mais ampla da luta por direitos, e a compreensão das desigualdades de gênero como um dos determinantes das desigualdades em saúde. (VILLELA et. al., 2009: 998)

Pensar os determinantes das desigualdades em saúde e intervir sobre eles são algumas das atividades compreendidas pela Saúde Coletiva. A característica fundamental do campo da Saúde Coletiva é a transdisciplinaridade, enquanto uma área de conhecimento que entrecruza saberes de diversas áreas – como ciências sociais e humanas, epidemiologia, políticas e outras – para a produção de conhecimento sobre as questões que envolvem a saúde, compreendendo a saúde como um estado amplo de bem-estar, seja ele físico, social, ambiental, psíquico, etc. Envolve, portanto, discussões acerca das condições psicossociais de vida dos sujeitos, o que motiva o diálogo entre essas diversas áreas. A ampliação de estudos sobre a saúde das mulheres e seus determinantes, incluindo outras dimensões de suas vidas e compreendendo os desdobramentos possíveis das desigualdades de gênero para sua saúde, confirma sua característica multi e transdisciplinar, ampliando por conseqüência, as intervenções na saúde das populações.

Ao ampliar o conceito de saúde e investigar com maior profundidade as condições de vida em que a população está submetida – no mundo contemporâneo e ao longo da história – torna-se cada vez mais pertinente entender também as desigualdades de poder nas relações sociais, as quais a utilização da categoria ‘gênero’ em estudos desse campo, procura problematizar.

Para Villela & Monteiro (2009), a incorporação da categoria ‘gênero’ em estudos da Saúde Coletiva, articulando-se a outros marcadores sociais, tem sido fundamental para a compreensão dos processos saúde-doença, muito embora não tenha sido, ao longo do tempo, tão recorrida. Colocam ainda, em linhas gerais, algumas reflexões que possivelmente possam explicar o porquê de tal categoria nem sempre ter sido utilizada.

Partimos da premissa que as ações em saúde, ao serem dirigidas a sujeitos e grupos sociais, deveriam trazer incorporada a idéia de que o ser humano, ao constituir a sua subjetividade em torno do processo de sexuação, não existe fora das tramas de gênero, eixo organizador da cultura. No entanto, dada a relação de origem da saúde coletiva com os saberes da biomedicina, que operam sobre o corpo, muitas vezes a dimensão subjetiva e a maneira singular com que cada um a exerce foram negadas ou abstraídas. Deste modo, os atravessamentos de gênero na constituição do sujeito tornaram-se invisíveis na área. (VILLELA & MONTEIRO, 2009: 994)

Para além da problematização das relações de poder e desigualdades entre homens e mulheres que a utilização desta categoria tem por pano de fundo, é importante considerar as possibilidades de interação entre ‘gênero’ e outras categorias do sujeito como classe social e raça/etnia, geração, orientação sexual (VILLELA et. al., 2009). As próprias vertentes do feminismo pós-estruturalista acenam neste sentido, chamando a atenção para a necessidade de rompimento com a tendência de homogeneizar internamente tanto o campo feminino como o masculino, reconhecendo assim “a existência de diversidade no interior de cada um, o que requer que se incorpore à análise outras dimensões das relações sociais, tais como raça, classe e geração” (FARAH, 2004: 48).

Não podemos, pois, dizer que exista uma única “Mulher”, mas muitas mulheres, inseridas em diferentes contextos, classes sociais, idades, raças/etnias – o que as coloca em diferentes posições na sociedade, revelando mesmo entre si, desiguais expectativas e possibilidades de realização (VILLELA et. al., 2009; BARBOSA, 2006).

Gênero, raça e geração, além de classe social podem ser considerados categorias de análise das relações sociais, constituindo-se cada uma, em uma dimensão básica da vida social (MOTTA, 1999). Segundo Alda Motta,

Essas dimensões realizam-se no cotidiano e na História e podem ser também definidas como categorias relacionais ou da experiência. [...] Essas categorias relacionais mais determinantes, e analiticamente valiosas, referem-se quase todas ao biossocial: o sexo, a idade e a cor estão inscritos no corpo e na cultura como gênero, geração e etnia. Somente a classe, categoria sobredeterminante, refere-se apenas ao social, mas não deixa de ser um coletivo – teórico, político e da prática – que se corporifica em homens e mulheres de diferentes idades e raças. [...] Isto significa que o conhecimento de cada uma das categorias remete, sempre, a uma análise de relações de poder (Id. Ibid.: 193).

Deste modo, estas marcas sociais são levadas em consideração articuladas à categoria gênero, na análise das relações sociais em questão, quando emergidas em campo.

Igualmente importante à apresentação da pesquisa e fundamentação teórica da mesma, é necessário apresentar um panorama da organização e estruturação da AB no SUS em Salvador, desde que se tornara prioridade do governo federal, já que é neste contexto em que se situa esta investigação.