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3.4. AS PRÁTICAS DE ATENÇÃO, AS CONCEPÇÕES DE GÊNERO E A AISM

3.4.2. A mulher na esfera privada e conjugal

Durante todas as vezes que “desci pra área” com as Agentes e outras profissionais, salvo poucas exceções, as pessoas com quem conversávamos em visitas, com todas as ACS que acompanhei, eram mulheres. Este fato reforça o imaginário que liga a mulher ao cuidado da família e da casa (ou seja, figura central da esfera doméstica). Eram as mulheres que estavam em casa, eram elas quem explicavam e gerenciavam as situações de saúde dos demais membros da casa e família.

As falas de Rita, Rosa e Laura, em entrevistas, evidenciaram que a Vila Lírio do Vale é composta em sua maioria, por mulheres casadas, formal ou informalmente. Também apontaram como um grande problema de saúde destas mulheres a falta de auto-estima. Rita e Rosa associaram este problema ao fato de que a maioria das mulheres depende dos companheiros e permanece a maior parte de seu tempo em casa. Algumas vezes são submetidas às agressões dos parceiros. E raramente procuram um emprego regular.

Na entrevista com Rosa, verifiquei que a presença de mulheres nas casas, predominante nos trabalhos domésticos e no cuidado com o lar, trata-se de uma condição característica da comunidade na Vila Lírio do Vale, conforme minha própria observação durante as vistas domiciliares. Rosa trabalhou como agente do último censo do IBGE realizado ainda em 2010, na mesma época de minha pesquisa. Aproveitei a oportunidade e perguntei sobre as condições de emprego das mulheres moradoras da Vila. Rosa me contou que as mulheres, a maioria é “do lar”. Reproduziu algumas falas

de suas entrevistas para mim, para exemplificar-me como as mulheres respondiam sobre a questão da renda: “num tenho renda, num ganho salário, mas eu faço faxina... trouxe algum dinheiro pra casa, vendi avon, vendi natura, fiz faxina...”.

Rosa continuou seu pensamento dizendo que as mulheres “são dependentes dos companheiros, e tem essa coisa de dizer que é do lar e pronto acabou o mundo, parece que quando elas falam isso eu tenho a impressão que a vida encerrou pra elas, eu tenho tido essa impressão, é inquietante isso.” Rosa demonstrou muito incômodo com o fato das próprias mulheres não considerarem suas faxinas e vendas no mercado informal como trabalho. Segundo ela, as mulheres lhe diziam que não possuíam renda por não saírem de casa, ficarem em casa cuidando dos filhos, porque não tinham carteira assinada e não saíam para trabalhar como o marido.

Em sua etnografia feita em Porto Alegre, Fonseca (2004) aponta uma observação condizente com a predominância da mulher no ambiente doméstico aqui destacada:

Enquanto a imagem pública do homem tem vários pontos de apoio, a da mulher gira quase exclusivamente em torno de suas tarefas domésticas na divisão do trabalho: ela deve ser uma mãe devotada e uma dona-de- casa eficiente (FONSECA, 2004: 31).

Sob esta perspectiva, refleti sobre as condições das vidas conjugais possivelmente estabelecidas na Vila Lírio do Vale, já que três entrevistadas relacionaram a falta de trabalho das mulheres, a baixa auto-estima e a permanência destas no ambiente doméstico, sem grandes perspectivas de se inserir no mercado de trabalho, como características problemáticas das mulheres na comunidade. Também ouvi diversas explicações sobre problemas de saúde mental de mulheres do bairro, que tenham surgido a partir de algum relacionamento amoroso (segundo relatos de profissionais).

Sobre as relações conjugais, uma visita domiciliar que fiz com Rita pode dar algum exemplo do modo como percebi que se processam estas relações:

A televisão estava ligada e alguém estava assistindo TV. Rita perguntou quem estava ali e ela comentou que era seu marido, com um ar de desgosto. Como quem diz... tá aí, a essa hora assistindo desenho animado... Nesse momento ela ficou bem irritada. Disse que não agüentava mais, que queria dar um fim naquilo logo. E Rita disse: “e

porque não dá?” Ela respondeu: “e eu num quero?” (me pareceu que

tratava, achei melhor não tirar conclusões). Depois Rita disse: “é... tem

que ter paciência!!! Senão como é que a gente agüenta?? Essa vida a gente tem que ter paciência pra andar!...” Depois Rita me explicou que

Vanda era casada e seu marido estava desempregado, além disso, bebia. Por isso ela estava desgostosa (DC).

Segundo esta informação, a forma como se concebe uma relação amorosa, parece manter-se sob uma espécie de passividade, sensação de impotência da mulher ou aceitação diante de seu desagrado na relação conjugal. Perpetua-se uma relação de poder, onde a mulher é submetida a uma relação de dominação com o parceiro.

A pesquisa realizada por Dantas-Berger & Giffin (2005) baseada em entrevistas com mulheres que denunciaram violência conjugal no Rio de Janeiro, revelou que para elas, “as expectativas de realização refletiram sua formação familiar para o casamento, a constituição e cuidados com a família.” (DANTAS-BERGER & GIFFIN, 2005: 420) Segundo as autoras, as mulheres entrevistadas evidenciaram que quanto mais tentavam romper com padrões femininos tradicionais de domesticidade e passividade, mais o conflito conjugal se radicalizava.

Assim, compreendi que possivelmente a violência que se exerce sobre as mulheres do bairro, não se limite a agressões físicas, mas também – e talvez principalmente – às agressões morais e psicológicas, abalando sua estrutura emocional e auto-estima.

Esta condição também fora constatada no estudo de Coelho et.al. (2009) em Salvador, sendo revelados em depoimentos do estudo, “conflitos da vida privada que expõem as mulheres aos agravos à saúde, à violência e à opressão.” (COELHO, et.al., 2009: 157). As autoras defendem que,

[...] A limitação ou interdição da liberdade das mulheres constitui também violência de gênero. A forma estereotipada de tratar a mulher segundo atributos de gênero é determinante de uma inculcação cultural de dependência e subordinação ao homem, responsabilizando-o pela sua proteção. Isso vai conferindo poder sobre o corpo feminino, subjugando as mulheres às vontades dos “homens da casa”, de modo que muitas vão incorporando e somatizando um esquema de submissão ao poder masculino (id.ibid.).

Embora tivera conhecimento de casos de violência contra mulheres, não me aproximei diretamente com ninguém envolvido nestes caso. Apenas tomei conhecimento da existência de algumas mulheres agredidas. Fora na oficina dada às

ACS sobre violência contra mulheres que pude ter conhecimento destes casos, os quais na maioria envolviam algumas próprias ACS com quem eu não tinha proximidade.

Vale um parêntese aqui, para fazer algumas considerações sobre essa oficina. Duas agentes, que eu não conhecia, fizeram seus depoimentos alegando terem sido vítimas de violência. Ambas relataram a relação de seus ex-parceiros e agressores com a bebida e o desemprego. Este também foi um dos poucos momentos em que ouvi considerações das agentes relacionadas à questão racial e de classe. Uma das agentes comentou com a professora, que achava que a justiça não funcionava tão bem: “falar da justiça, ói vou falar pra você, a gente tá entregue na mão de Deus...” e continuou: “e branca, classe média, apanha e não vem pra qui, não... tem vergonha. Branca apanha calada!” Sobre este assunto, Juliana (outra ACS) colocou que “na classe alta, as pessoas se impõem, têm vergonha... mas aqui, em minha área mesmo eu vejo, as mulheres comentando entre si “quem é que nunca apanhou?” Elas ficam debatendo porrada!”

Além desta oficina, não explorei mais a questão da violência doméstica. Observei que as respostas das profissionais às minhas perguntas carregavam alto grau de preocupação em manter sigilo sobre o assunto e descrição na hora de me relatar que haviam casos em suas áreas. Assim não insisti sobre o tema.

Este debate sobre as relações conjugais coaduna com algumas observações acerca daquilo que se concebe (neste contexto observado) por masculinidade. Percebi a tendência das pessoas situarem o homem na posição de chefe da família (embora muitas vezes seja a mulher quem controla e gerencia a casa), do provedor do lar, tal qual eles mesmos o fizeram em dois grupos focais com homens que presenciei. Tais concepções podem resultar na imagem que estas entrevistadas possuem das mulheres na comunidade Lírio do Vale, como mulheres passivamente dependentes dos maridos sem muitas perspectivas de vida.