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As Bases do Neocolonialismo

É essencial compreender que a independência do Brasil não resulta da luta travada pelas classes dirigentes brasileiras contra o sistema colonial, mas do afastamento de Portugal, economia demasiado fraca para gerir a sua colônia, em face da potência crescente da Inglaterra em plena industrialização.

A proclamação da independência, em 7 de setembro de 1822, provocará, pois, relativamente poucos distúrbios e nenhuma transformação essencial das estruturas internas: ratificava uma nova forma de existência do Brasil no sistema capitalista; refletia por um lado a ultrapassagem do capitalismo mercantilista e a decadência da Península Ibérica, e por outro lado o crescimento do capitalismo industrial e a potência da economia inglesa. Não refletia, e isto é fundamental, o aparecimento no Brasil de atividades econômicas e de uma classe social capazes de pôr em causa a própria relação colonial.

Em 19 de fevereiro de 1810, o regente português instalado no Brasil e o plenipotenciário inglês assinam, para um período ilimitado, dois tratados e uma convenção: um tratado de aliança e de amizade, um tratado de comércio e uma convenção instituindo a ligação postal permanente por navios regulares entre os dois países. O tratado sobre o comércio instaura um "sistema liberal de comércio fundado sobre as bases da reciprocidade".89

A grande privilegiada é na realidade a Inglaterra, que dispõe da estrutura industrial mais dinâmica e que domina os mares. Os navios ingleses obtêm melhores condições que os próprios navios portugueses: os produtos ingleses pagarão uma taxa alfandegária de 15 por cento, ou seja, um por cento menos que a taxa que incidia sobre os produtos portugueses ou de outras colônias portuguesas. Os direitos eram percebidos sobre o valor declarado. Se todos os estrangeiros obtêm o direito de estabelecer-se com toda a liberdade no país, os ingleses se beneficiam ademais da extraterritorialidade jurídica.90

O sistema liberal fundado sobre as bases da "reciprocidade" recobria, pois, na realidade, uma dominação esmagadora da economia inglesa, que já se havia manifestado através de Portugal, mas que se manifestaria doravante pelo jogo dos mecanismos econômicos e de uma superestrutura neocolonial.

O que estava em jogo nos tratados de 1810 e o tipo de mecanismos econômicos que eram instituídos não escapavam a certas esferas brasileiras e ao deixar o Brasil, em 1820, o regente entendeu dever justificar-se: "Não penseis", escrevia ele no seu manifesto de adeus, "que a introdução de manufaturas britânicas vá causar prejuízo à vossa indústria... O emprego das vossas riquezas está atualmente bem orientado para a cultura das vossas terras, o melhoramento das vossas vinhas... A diminuição dos direitos produzirá uma grande entrada de manufaturas estrangeiras: mas

88 "Esta transferência dos privilégios ingleses tradicionais, durante tanto tempo gozados em Portugal para o império independente do Brasil foi completada com o tratado comercial de 1827” (A. K. Manchester, British Preeminence in Brazil, its Rise and Decline, North Caroline, 1933, p. 338)

89) Preâmbulo do Tratado em Roberto Simonsen, História Econômica do Brasil — 1500-1820, vol. 11, Cia. Editora Nacional, p. 247.

90 Um observador perspicaz da época, Hyppolito José da Costa, que redigiu em Londres o Correio Brasiliense entre 1808 e 1822, escrevia a este propósito: "As condições contidas na convenção de 1810 significavam a transplantação do protetorado britânico, cuja situação privilegiada na metrópole era consagrada na nossa esfera econômica e era mesmo imprudentemente consignada como perpétua. A ausência de reciprocidade era absoluta em todos os domínios; era aliás difícil de estabelecer, visto a ausência de artigos de necessidade comparável para o consumo: os produtos manufaturados eram mais necessários ao Brasil que as matérias-primas brasileiras à Inglaterra. A desigualdade manifestava-se ainda na importância que as exportações representavam para cada um dos países produtores, a Inglaterra constituindo o mercado quase único para o Brasil, enquanto aquele país repartia os seus interesses entre países numerosos..." (Hyppolito José da Costa, em Roberto Simonsen, op. cit., vol. 11, p. 254). Estamos longe dos raciocínios ricardianos.

quem vende muito também compra muito; para ter um grande comércio de exportação é necessário permitir uma grande importação e a experiência vos mostrará que, a vossa agricultura aumentando, as vossas manufaturas não ficarão arruinadas na sua totalidade; e se algumas destas manufaturas abandonam, ficai seguros que é uma prova que esta manufatura não tinha bases sólidas, nem dava vantagens reais ao Estado".91

Assim, os embriões de atividade introvertida que se haviam constituído em particular durante a fase mineira seriam sacrificados em proveito da "cultura das nossas terras". Ora, por fracos que fossem, estes embriões jogavam um papel central na integração intersetorial e regional da economia brasileira. A abertura dos portos ia consagrar a dominação do setor exportador e o reforço do caráter extrovertido do capitalismo dependente.92

Aos mecanismos de dominação econômica seria acrescentada uma estrutura "burguesa compradora" inglesa instalada no Brasil, que passa a controlar essencialmente o comércio, os transportes e o crédito. "A Inglaterra", escreve Graham, "adquiriu um grande poder sobre a economia brasileira. Tentando reduzir os riscos do comércio do café, as suas casas de exportação tornaram-se maiores e controlaram cada vez mais exclusivamente as atividades vitais do Brasil

(Brazil’s life blood).93

Esta tendência caracterizava, aliás, o conjunto da América Latina: "Os comerciantes britânicos implantaram-se solidamente em toda a América Latina, em Buenos Aires, no Rio de Janeiro, em Valparaíso, em Caracas, em Vera Cruz, em Cartagena, em Lima".94 (9)

O fim da era colonial significa, pois, simultaneamente a independência jurídica do país e o reforço da sua dependência econômica. "O Brasil do século XIX", escrevem Stanley e Barbara Stein, "é um exemplo clássico da maneira como uma herança colonial constituída por uma agricultura orientada para a exportação e fundada sobre uma mão-de-obra servil determina os modos da mudança econômico-social depois da independência e leva à formação de uma estrutura neocolonial, cujas conseqüências sociais são previsíveis e inevitáveis".95

Vemos, pois, a dependência mudar de forma e sobreviver: enquanto Portugal, economia fraca, não poderia assentar o seu papel senão sobre um monopólio colonial, a Inglaterra era suficientemente potente para contentar-se com a dominação econômica e financeira.96

Se a ruptura do laço colonial entre o Brasil e Portugal se explica pelo declínio relativo de Portugal e o reforço prodigioso da Inglaterra, é necessário perguntar-se porque a Inglaterra não se substituiu simplesmente a Portugal como colonizadora e estabeleceu uma relação neocolonial onde antes havia relações coloniais.

Um elemento determinante parece ter sido a estrutura interna que o Brasil herda da sua função colonial: nas colônias de outros continentes, onde o imperialismo sobrepunha uma estrutura colonial às formações sociais pré-capitalistas mas introvertidas, a presença da dominação política devia impedir a tendência natural destas economias de seguir o seu caminho e de produzir em função das necessidades internas; no Brasil, e isto é verdade para outras economias latino-

91 Manifesto de D. João Vl, em Roberto Simonsen, op. cit., vol. 11, pp. 259-260

92 "A Inglaterra, pelo tratado de comércio de 1810, que era na realidade um instrumento criador de privilégios, continua a jogar na economia brasileira o papel dominante que exercia antes, por intermédio do seu satélite econômico, Portugal. Inundava o Brasil de tecidos de algodão, de produtos manufaturados à base de ferro e de aço, tirando-lhe toda a possibilidade de assegurar ele mesmo a fabricação destes produtos, apesar das riquezas do país” (Barbara e Stanley Stein, op. cit., p. 136).

93 Richard Graham, Britain and the Onset of Modernisation in Brazil, Cambridge University Press, p. 320. 94 Stanley e Barbara Stein, op. cit., p. 122.

95 Ibid., pp. 135 e 136.

96 Pierre-Philippe Rey mostra bem que o imperialismo toma a via da dominação política somente na medida em que esta é necessária para implantar estruturas financeiras e mecanismos econômicos de exploração. Logo que estes são possíveis – o que implica um certo nível de desenvolvimento interno da colônia — é do interesse do imperialismo substituir os seus exércitos por mecanismos de mercado capitalista. Neste sentido, Rey apresenta a forma política de dominação do imperialismo como uma forma transitória para as formas econômicas de dominação que caracterizam o neocolonialismo. Ver Pierre-Philippe Rey, "Sur l'articulation des modes de production ", in: Les Alliances de Classes,

americanas, o fato de toda a economia ter sido constituída em função das necessidades externas, a ponto de a própria classe dominante local ver a sua prosperidade depender da boa marcha das exportações, tornava possível a forma neocolonial de dominação — por intermédio de mecanismos econômicos e financeiros — quando a forma de dominação colonial estava ainda nos seus primeiros passos em outros continentes.

A apreciação da nova forma de dependência da economia brasileira em relação ao capital no dominante exige, portanto, a compreensão do papel particular da classe dirigente local.

Portugual, como vimos, jogava relativamente ao Brasil um papel de intermediário: "Estado entreposto de todo o comércio, Portugal ganhava sobre a importação de manufaturas estrangeiras que iam ser consumidas no Brasil, ganhava novamente sobre os impostos que estes artigos pagavam na colônia; ganhava ainda sobre os impostos dos produtos que a colônia exportava em pagamento dos que consumia... Os artigos estrangeiros consumidos no Brasil eram desta forma taxados em mais de 40 por cento do seu valor inicial. Era natural que uma situação de tal ordem despertasse, na maioria dos colonos, a consciência de uma autonomia que, de fato, existia já no início do século XIX" 97

Assim, para os colonos brasileiros não era a orientação colonial em si que constituía uma fonte de conflito, mas o fato de a posição lucrativa de intermediário ser ocupada pelos aristocratas de Lisboa e não por eles mesmos. Com efeito, a herança colonial não predispunha a classe dirigente crioula a uma verdadeira independência: vimos que a fase colonial havia deixado no Brasil uma estrutura econômica essencialmente extrovertida. Isto significava não somente que o produto era em grande parte exportado, mas que o conjunto da estrutura econômica, a escala de produção, o tipo de produto e as relações de produção existentes haviam sido constituídos em função de necessidades externas à colônia. O fato traduzia-se, como vimos, pela não-constituição de uma classe camponesa, pela fraqueza do mercado interno e das atividades comerciais e artesanais locais, tornando pouco viável a reconversão da economia para um modelo capitalista autodinâmico.98

É, pois, bastante compreensível que a classe dirigente local, ao mesmo tempo que não vê a necessidade de repartir com os dignitários portugueses os frutos do trabalho dos seus escravos, tampouco tenha intenção de "exagerar" a independência e pôr em questão a própria orientação colonial da economia.

Vimos que a independência do Brasil resulta menos da lute da classe dirigente local por um desenvolvimento econômico autocentrado do que do afastamento de Portugal, incapaz de cumprir o seu papel.

Vemos agora que a continuidade da orientação extrovertida estava inscrita nos interesses imediatos da classe dirigente local.

As repercussões do tratado de 1810 marcam bem a diferença entre uma classe burguesa nacional e uma classe dependente, como o era a classe dirigente de Portugal e, mais tarde, a do Brasil.

Esta diferença não escapava a Roberto Simonsen, se bem que permanecesse confusa: “À colônia, egoisticamente, pouco importava que o tráfego (que resultava da abertura dos portos) enriquecesse os ingleses ou os portugueses da metrópole, e foram estes últimos que sofreram realmente com a perda do antigo monopólio, cuja manutenção consideravam vital".99

97 Roberto Simonsen, op. cit., vol. 11, p. 200.

98 Caio Prado Júnior, que tende de modo geral a simplificar o papel das determinações internas, não deixa no entanto de resumir corretamente o essencial da herança colonial do ponto de vista econômico: "Este é o traço que sintetiza a economia brasileira no momento em que o país atinge a sua autonomia política: todas as suas atividades giram em torno deste fim específico de fornecedor de alguns produtos tropicais de alto valor mercantil, de metais preciosos e de pedras preciosas ao comércio internacional. O resto é secundário, acessório, e serve somente para tornar possível a realização deste fim " (Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil, p. 105).

Celso Furtado analisa este problema mais de perto: "Como não havia na colônia sequer uma classe comercial de alguma importância — o grande comércio era um monopólio da metrópole —, resultava que a única classe com expressão era a dos grandes proprietários agrícolas. Qualquer que fosse a forma de aquisição da independência, seria esta classe que ocuparia o poder, o que aconteceu efetivamente, particularmente a partir de 1831... Grande plantação de produtos tropicais, a colônia estava intimamente ligada às economias européias, das quais dependia. Não constituía poIs um sistema autônomo, mas um simples prolongamento de sistemas mais vastos... A tensão que se manifesta no decorrer da primeira metade do século XIX entre o governo britânico e a classe dominante brasileira não recobre, pois, nenhuma contradição séria de interesses. Não se pode, pois, afirmar que, se o governo brasileiro tivesse gozado de plena liberdade de ação, o desenvolvimento econômico do país teria sido necessariamente mais intensivo".100

O essencial do problema, que é o da identificação fundamental entre os interesses da metrópole — o capitalismo dominante —e a classe dirigente local, a quem a herança colonial predispõe a continuar a produzir em função das necessidades externas, fica claramente colocado. Este papel particular da classe dirigente — que designaremos como sendo uma burguesia dependente —, cujos interesses de classe se vêem ligados à orientação da economia em função das necessidades do capitalismo dominante, está na base das análises atuais que buscam situar este "crescimento sem desenvolvimento", esta forma particular do capitalismo dependente que representa o caso brasileiro.

"Encontramos aqui a originalidade radical da América Latina no interior do sistema... Formados como Estados nacionais no quadro da crise do sistema colonial e no contexto da emergência de um novo sistema de dominação internacional, os países latino-americanos são, por

origem e constituição, dependentes. Isto significa que o que se designa como 'situação de dependência' e que evidentemente encontra a sua raiz na subordinação aos 'países dominantes' implica, por um lado, o modo de relação dos países latino-americanos com o exterior e, por outro, o modo de organização interna das suas estruturas sociais, econômicas e políticas. Noutros termos: o sistema capitalista em formação forma as sociedades de acordo com as exigências do seu cresci- mento. Com a independência que, como se sabe, é associada à transformação das relações internacionais de dominação, vemos instalar-se e desenvolver-se a ambigüidade que constituem os atuais 'países dependentes': autonomia política e dependência econômica. Ambigüidade cuja estrutura interna se trata de esclarecer".101

Encontramos também esta compreensão da identidade fundamental de interesses entre a burguesia brasileira e a ordem colonial como base da orientação do desenvolvimento ulterior em Barbara e Stanley Stein, que põem em relevo o peso da herança colonial nesta situação. Assim, caracterizam a independência como um "ponto de referência histórico, que serve simplesmente para indicar quando se realizou a principal aspiração local — substituir-se à dominação ibérica, ao mesmo tempo que preservam as estruturas sociais e políticas herdadas da época colonial. Depois da

100 Ceko Furtado, Formação Econômica do Brasil, pp. 120 e 121. Notam-se no entanto hesitações importantes no raciocínio de Furtado: um pouco mais longe (p. 145) afirma que os interesses ingleses ocuparam o vazio deixado pelos portugueses, o que é incorreto: os interesses ingleses manifestavam-se através de Portugal e é a burguesia brasileira que se substitui aos portugueses no papel de intermediário, donde este papel ambíguo, simultaneamente nacional e colonialista (em termos internos), da nova classe dirigente. Segue-se a hipótese muito justa que levanta Furtado, segundo a qual se a classe dirigente brasileira tivesse gozado de uma "plena liberdade de ação” a orientação do desenvolvimento não teria sido fundamentalmente diferente. Mas Furtado coloca ainda o problema em termos de "intensidade” do desenvolvimento: ora, o desenvolvimento era intensivo, o que é importante é a sua orientação.

101

Francisco C. Weffort, Classes populaires et politique, tese de doutoramento, São Paulo, 1968, p. 21. Esta linha de estudos é a

que seguem atualmente, como já mencionamos, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros sociólogos e economistas latino-americanos.

independência, esta classe, para sobreviver, teve que opor-se às reformas sociais e impedir o movimento de libertação nacional de se transformar em revolução".102

Compreendemos, pois, que no próprio momento em que uma série de atividades introvertidas, nascidas como complemento da atividade mineira de Minas Gerais, recebia um golpe mortal, a elite local, no seu conjunto, não deixava de mostrar a sua satisfação. Um comentário da imprensa da época reflete bem este estado de espírito: "Deste modo, não intervindo os negociantes e as barras de Lisboa e do Porto, chegavam as coisas de fora mais baratas e saíam as da terra mais caras do que antigamente. Por outra parte, com a chegada de muitos navios mercantes, não podia haver falta de artigos comerciais estranhos e aumentando-se com esperança do maior lucro a agricultura do País, devia ser grande a abundância dos gêneros desta. Tudo assim logo sucedeu. Foi mais o tabaco da Bahia, o café do Pará e do Rio de Janeiro, o arroz do Maranhão, o algodão deste e da Bahia e a madeira e courama das capitanias marítimas".103

Explica-se, pois, pela orientação da classe dirigente brasileira —ela mesma determinada pela herança colonial, em termos de estrutura econômica, que a criara — a facilidade com que a Inglaterra pôde manter a orientação colonial do país sem outro elemento de poder que a instalação de uma rede de comércio, de transportes e de crédito em alguns centros urbanos e, naturalmente, a potência dos laços econômicos do capitalismo dominante expresso no mercado capitalista mundial.

O Brasil possuía, por certo, como o vimos, uma burguesia introvertida embrionária, ligada na maior parte às atividades de aprovisionamento da agricultura de exportação. Além da agricultura alimentar, tratava-se de uma pequena indústria dispersa e de uma rede comercial de importância crescente. No entanto, presa entre a concorrência inglesa e a atração das atividades de serviços ligadas ao comércio longínquo ou à nova administração, esta burguesia nascente foi carregada e absorvida na dinâmica neocolonial.

Assim, a uma independência política correspondia uma integração mais direta na esfera das necessidades do mercado capitalista mundial. A dependência mudava de forma, mas permanecia. Veremos todo o seu peso ao analisarmos a estrutura do aparelho produtivo.