• Nenhum resultado encontrado

Complementaridade dos Interesses em Jogo

O fato de não se tratar de um equilíbrio temporário de forças em si contraditórias, mas de um reajustamento da relação de forças entre segmentos da classe dirigente cujos interesses convergem por outro lado na defesa do sistema de dependência existente, reflete-se na interdependência destes diversos segmentos no que concerne à própria reprodução do capital.

Trata-se de uma indústria que, lembremo-lo, desenvolveu um atraso singular no que se refere à produção de bens de produção. Entende-se, pois, que se a realização do produto manufaturado (M' — A’) tende a fazer-se cada vez mais dentro do país, na nova relação de dependência é a transformação do capital-dinheiro em bens de produção (máquinas, equipamento, técnicas) que tende a tornar-se a fase do ciclo de reprodução do capital que se fecha no exterior (A — M). A partir daí, visto a decalagem industrial existente, a indústria fica ligada às economias dominantes.100

Esta forma de reprodução do capital industrial implica, portanto, a manutenção, em grande parte pelo menos, da capacidade de importação: a interdependência com os setores latifundiários, aos quais os industriais recriminam a falta de eficiência mas não a orientação, é, pois, bastante clara. O ciclo do café ultrapassou, decerto, a sua fase de apogeu, mas o café ocupará ainda nos anos 1950 cerca de 60% do valor das exportações.

Por outro lado, a polarização regional da economia e a divisão interna do trabalho levam à dependência das regiões que produzem matérias-primas em relação ao eixo dinâmico Rio—São Paulo, e a contribuição do Nordeste para a acumulação industrial em São Paulo pode não ser essencial para esta última, mas é importante. Os industriais do Centro-Sul, se bem que desfavorecidos no plano da realização pela manutenção da orientação extrovertida das estruturas rurais, encontram compensações no plano da acumulação.101

Se o setor "nacional" da indústria, ligado à produção para o mercado popular, pode sentir-se dividido entre o apoio às reformas generalizadas da agricultura, que Ihe abririam mercados mais amplos, e a manutenção do status quo que Ihe é favorável do ponto de vista da acumulação, o setor ocupado pelas empresas estrangeiras, que visam o mercado sofisticado, tem tudo a ganhar com uma posição conservadora: com efeito, a polarização com divisão interna de trabalho favorece a

100 Ver William Tyler, “Manufactured exports promotion in semi-industrialized economy: the

brazilian case ", Journal of Development Studies, Londres, 1973.

101 A importância da transferência de rendimentos do Nordeste para o eixo Industrial do Sul foi

mostrada por Celso Furtado no documento que levou à constituição da SUDENE, organismo encarregado do desenvolvimento do Nordeste: “... O Nordeste não utilizou a totalidade de divisas criadas pelas suas exportações. Cerca de 40% dos ganhos em trocas com o exterior eram transferidos para outras regiões do país” (“A policy for the Economic Development of the North-East — 1959", Conselho do Desenvolvimento do Nordeste, in: Werner Baer, Regional Inequality and Economic Development in Brazil, Yale University, 1964, p. 278).

102

transferência de rendimentos para as zonas de produção do Rio e de São Paulo, onde estas empresas se situam; por outro lado, como estas empresas dependem ainda mais do que as "nacionais" da importação (afora as máquinas, importam ainda uma parte das peças, se bem que em quantidade decrescente), a extroversão econômica da agricultura apenas pode ser-lhe favorável, já que reforça a capacidade de importação do país; enfim, do ponto de vista da realização, estando estas empresas ligadas ao mercado de luxo, a estrutura existente que favorece a concentração da renda, tanto em favor das camadas mais ricas como da região mais desenvolvida, constitui um alargamento qualitativo do mercado, ou seja, uma transferência da capacidade de compra das esferas de produção das empresas "nacionais" para a sua própria esfera.102

Quanto às empresas agroindustriais do interior do país, devemos ter em conta o fato de que, se do ponto de vista social e macroeconômico a manutenção da estrutura e da orientação econômica destas regiões é desastrosa, do ponto de vista dos grandes proprietários a polarização social implicada por esta estrutura constitui um elemento positivo; o Nordeste, por exemplo, pode temer a concorrência do açúcar e do algodão produzidos na região de São Paulo, mas o mercado interno que se abre para eles pela polarização das atividades no país constitui uma compensação.

Por outro lado, trata-se de empresas em que a composição orgânica do capital está em permanente elevação e a possibilidade de equiparar-se no Sul com custos inferiores aos dos produtos importados não pode ser mal recebida.

No que concerne aos produtores do café, uma boa parte dos capitais e dos empresários industriais provinham deste setor e vimos o Estado tomar medidas importantes de proteção à indústria em pleno período de hegemonia dos interesses do café. Esta indústria constituía uma atividade complementar importante para muitos produtores rurais afetados pelas variações conjunturais no mercado mundial do café e fornecia-lhes também bens manufaturados importantes para as suas atividades. É assim, por exemplo, que os sacos destinados à embalagem eram produzidos por esta indústria.

Enfim, cumpre lembrar que se a industrialização, sob a pressão dos interesses imperialistas e os limites constituídos pela herança colonial, tomava uma direção determinada, o seu desenvolvimento dentro desta direção não era entravado pelos interesses do capitalismo dominante. Estes, ao manter a extroversão da economia (os Estados Unidos, por exemplo, continuam a interessar-se pelos produtos coloniais que o Brasil pode produzir, apesar de estes produtos deixarem de constituir o elemento central da relação) orientam-se gradualmente para os investimentos industriais diretos e terão em conseqüência necessidade de reforçar a infra-estrutura industrial local, favorecendo assim indiretamente a indústria "nacional" que, conforme vimos, se orienta para um outro mercado e não Ihe fez concorrência.

O setor estatal, cuja importância econômica já mencionamos, e que, em conseqüência da extrema concentração da classe dirigente brasileira, constitui um peso importante como estrutura organizada, continua a desenvolver as suas atividades de infra-estrutura que são, no entanto, reorientadas parcialmente em função das necessidades tanto da agricultura, que se moderniza, como dos dois subsetores da indústria, que têm interesse em importar o mínimo possível. É assim que uma iniciativa como a empresa siderúrgica de Volta Redonda, apresentada na época como um símbolo da emancipação nacional, foi construída pelo Estado com a ajuda de capitais americanos.103

102 Conceição Tavares dá uma excelente descrição desta alternativa de crescimento “horizontal” ou

“vertical” do mercado interno no caso da industrialização do Brasil (Conceição Tavares, The Growth and Decline of Import Substitudon in Brazil, CEPAL, Nova Iorque, 1964).

103Esse tipo de contribuição do capitalismo dominante — e não se trata de um caso isolado, já que

em 1920 capitais europeus tinham constituído a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira — parece-nos melhor explicada no quadro de deslocamento das bases técnicas de dependência, que implicam um tipo de industralização, do que como resultado das pressões nacionalistas, que encontravam pouco apoio no país, no seio das classes dirigentes, a não ser o apoio demagógico. Vimos acima que numa fase em que esta iniciativa de constituir uma base siderúrgica teria tido

103

Esta breve vista geral dos interesses que se defrontam no seio da classe dirigente brasileira, que nos deixa como impressão fundamental a solidariedade dos diversos grupos em torno do sistema vigente, fornece-nos uma das chaves da compreensão do subdesenvolvimento atual: é na medida em que a agricultura extrovertida já era capitalista e contribuía para a acumulação do capital no centro, e não feudal ou "autárquica", que as suas funções puderam ser reorientadas para as necessidades do pólo dinâmico interno sem que a própria estrutura fosse posta em questão.104

Por outro lado, vemos esboçar-se uma contradição que opõe o setor da indústria ligado ao mercado popular, que a longo prazo não pode desenvolver-se sem uma redistribuição dos rendimentos, e o setor industrial ligado ao mercado sofisticado, cujos interesses vão no sentido de uma extensão, dentro do país, de um perfil de consumo análogo ao perfil de consumo dos países capitalistas dominantes, extensão que supõe, dada a pobreza geral da população brasileira, a concentração de rendimentos e não a sua redistribuição. "O corte entre indústria nacional e indústria estrangeira", escreve com razão Cardoso, "terá menos importância, no que concerne às repercussões sociais e políticas que acarreta, do que o corte entre a indústria destinada ao consumo amplo e a indústria de consumo restrito''.105