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Indústria Ligeira e Mercado Popular

Especializado na indústria ligeira, o setor manufatureiro no Brasil não deixa de constituir um conjunto diversificado. Vimos acima a dicotomia do mercado brasileiro, polarizado entre o consumo de luxo dos ricos e o tênue consumo popular, orientado para bens de qualidade inferior. Esta estrutura particular do mercado constitui um dos traços essenciais da economia brasileira, na medida em que é a extroversão econômica que entrava a formação de uma classe camponesa e de atividades urbanas regionais ou locais.

Não pode pôr-se em dúvida que a indústria brasileira se especializou no início em produtos de consumo, por um lado, e em produtos de consumo destinados ao mercado popular, por

60Albert O. Hirschman, op. cit., p. 7.

61T. C. Baker, "L'économie britannique de 1900 à 1914", Revue d'Histoire Economique et Sociale,

n° 2, 1974, pp. 208 a 222. O autor refere-se a S. B. Saul, "The development of British Industry and Foreign Competition 1875-1914", London, 1968, in. The Engineering Industry, Derek H.

Aldcroft, ed.

62George Whyte, Brazil, Trends in Industrial Development, in: S. Kuznets, op. cit., p. 66: "A

independência econômica não deve ser tomada literalmente, pois durante um longo período o crescimento industrial deverá aumentar provavelmente, e não reduzir, a dependência do Brasil relativamente aos materiais, gasóleo e técnicas importadas". Na realidade, "trata-se de uma interdependência, contribuindo as compras do Brasil para criar economias de escala à indústria do centro em expansão. A dependência é pois, sempre um movimento duplo, com esta diferença essencial: os termos da complementaridade são determinados pelo pólo dominante

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outro. "Uma grande parte da indústria brasileira", escreve George Whyte, "concentrou-se em empresas que fornecem artigos de consumo comuns de baixo nível".63

A reprodução, ao nível das estruturas de produção, da dicotomia que prevalece na estrutura do rendimento não aparece nas estatísticas, já que nestas a produção é dividida em setores (têxtil, químico, etc.) e não segundo o mercado destinado a absorver o produto. Trata-se, no entanto, de uma distinção fundamental que cada empresário tomava em consideração. Se a produção de tecidos populares, por exemplo, era facilitada e podia ser desenvolvida por meio de máquinas fornecidas pela Grã-Bretanha e comercializada através da rede interna controlada pelos ingleses, qualquer penetração prematura na esfera do mercado de luxo provocava reações imediatas. "Um produtor do Rio de Janeiro", relata Stein, "declarou que os importadores e intermediários tinham a intenção de levar uma 'guerra de exterminação' para liquidar a sua empresa quando propôs a produção de meias...". 64

É evidente que o atraso técnico relativo da indústria brasileira a predispunha a fabricar bens menos sofisticados que os fabricados pela Grã-Bretanha ou os Estados Unidos. Mas do ponto de vista das economias capitalistas dominantes esta orientação ia no sentido da evolução do seu perfil de produção: "Desde muitos anos, a camisaria inglesa tinha-se tornado cada vez mais fina. A mudança teve duas ou três causas, mas a principal foi o progresso da mecanização nos países para os quais os nossos (da Inglaterra) fios de grosso calibre e os nossos tecidos comuns eram antes enviados. Estes países produzem agora estes artigos numa escala bem maior para o seu próprio consumo e deixam-nos a produção das qualidades mais finas".65

Esta divisão do mercado vinha complementar o ciclo na nova divisão internacional capitalista do trabalho: com efeito, se a Inglaterra dispunha, conforme relata Baker, de um mercado de profundidade social bem inferior à do mercado americano, e tinha em conseqüência grandes dificuldades para produzir bens de capital em escala competitiva, a exportação destes tornava-se imperiosa para complementar o mercado interno. A exportação de máquinas, por sua vez, não podia senão estimular a produção industrial no exterior. Numa economia dependente como a do Brasil, a repartição dos mercados internos constituía, pois, a melhor das soluções: permitia exportar bens de capital, ao mesmo tempo que se reservava para o produtor inglês o que os capitalistas brasileiros, sempre conscientes da distinção entre as faixas de mercado, chamavam de "filé mignon" do mercado.

Esta evolução aparece com clareza na indústria têxtil, a mais importante e melhor estruturada da época. 66

"O mercado que as empresas têxteis brasileiras tentavam atingir, naquela época como agora, era composto da parte rural e, em menor medida, da parte urbana da população, os que buscavam tecidos "para calças de homens, azuis ou claros... ou para camisas brancas ou calico e tecidos para vestidos e lenços para as mulheres". Os grupos ricos da sociedade brasileira continuavam a comprar tecidos importados, casimiras, seda e lãs para a sua vestimenta". 67

Ora, considerando a manutenção e a reprodução das relações de produção caracterizadas pela superexploração, a profundidade social do mercado era extremamente limitada e é interessante notar que já em 1920. L. S. Garry, enviado comercial dos Estados Unidos, ao analisar as perspectivas da indústria têxtil brasileira do algodão, via "somente duas alternativas: exportar, ou concentrar-se na manufatura dos bens de qualidade até então importados".68

63 George Whyte, op. cit., p. 49. 64Stanley Stein,op.cit., p. 70. 65T. C. Baker, op. cit., p. 214.

66“Em 1920, apesar de a produção de tecidos representar 27,6% da produção industrial do país

em valor, absorvia 38% do total dos capitais investidos na indústria" (Simonsen, op. cit., p. 21). 67Stanley Stein, op. cit., p. 69-70.

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Assim aparecem as bases estruturais da saturação do mercado interno popular. Roberto Simonsen podia proclamar com orgulho que a indústria brasileira fornecia 78% das necessidades nacionais em 1907 para 30 espécies de produtos manufaturados de "grande consumo". O problema é que justamente as "necessidades nacionais", no caso destes produtos, limitavam-se à capacidade de compra existente e que esta, considerando as relações de produção que caracterizam o essencial das atividades econômicas no Brasil, era particularmente restrita. O sucesso dos industriais brasileiros para satisfazer as necessidades do mercado nacional correspondia a uma definição capitalista de mercado e estes industriais sentiram logo os seus limites.69

A ligação com a característica precedente desta industrialização dependente é bastante clara: desenvolvida sobre a base de uma dependência clássica que favoreceu a extroversão da economia brasileira, a industrialização atacou um mercado limitado, enquanto a importação de máquinas permitia um aumento da produção relativamente importante. É curioso constatar que o capitalismo dominante contribui ao mesmo tempo para manter o caráter restrito do mercado interno, ao desenvolver as atividades extrovertidas, e para desenvolver a capacidade de produção de bens manufaturados para o mercado interno, ao fornecer bens de capital para a indústria. Assim, o aumento da produção agrícola e da produção industrial — dois fenômenos cuja complementaridade deu lugar, na Europa, a um desenvolvimento capitalista auto-sustentado — contribuiriam no Brasil, pelo fato de o ciclo de reprodução se fechar no exterior ou através de um pólo dominante, para reforçar a dicotomia e desequilibrar a economia nacional.