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A Empresa Agroexportadora

Passados os sonhos do ouro e diamante, os portugueses tiveram de enfrentar a realidade: não tirariam da colônia mais do que ali produziriam. A colônia era olhada com cobiça por outras potências européias, em particular a Holanda e a França, e ambas fizeram incursões importantes no Brasil, e os portugueses deviam em conseqüência organizar rapidamente a colônia, desenvolvendo nela atividades produtivas, ou perdê-la.

Após uma breve etapa de pilhagem cujo objetivo foi a madeira, os portugueses orientaram-se desde 1531 para a produção do açúcar, cuja técnica já conheciam por tê-la praticado na Madeira e em São Tomé, antes da queda dos preços do fim do século XVI. Com a subida dos preços a partir da segunda década do século XVI,50 a produção de açúcar correspondia aos interesses em jogo: a

colônia, dotada de estruturas de produção, estaria mais abrigada das cobiças estrangeiras; o produto não sendo realizável in loco, a colônia dependeria da metrópole para fechar o ciclo da reprodução; a aristocracia portuguesa, cobrando impostos através do monopó1io sobre o comércio colonial, asseguraria a sua própria sobrevivência; para o capitalismo mercantil em desenvolvimento, o comércio de um produto de luxo contribuiria para a concentração dos rendimentos e para o desenvolvimento da burguesia.

A colônia foi dividida em "capitanias", faixas de terra que começavam nas praias do Atlântico e se prolongavam em direção ao oeste inexplorado. Os donatários recebiam a terra da coroa de Portugal a titulo hereditário e partiam em geral com o objetivo especificado de desenvolver a produção da cana-de-açúcar na colônia.

O privilégio da terra era bastante lato: "Quem tivesse um capital — escreve R. Simonsen — podia solicitar o direito de explorar a terra... As concessões dadas pelo rei a estes homens constituíam o modo de estimulá-los, tornando o empreendimento mais fácil''.51

A instalação central da produção de açúcar era o "engenho", que compreendia uma estrutura bastante ampla para organizar a plantação da cana-de-açúcar, para moê-la e para fabricar o açúcar, processo bastante complexo que exigia dezenas de trabalhadores com especializações diferentes. Tomando em consideração a importância das atividades da transformação sofridas pelo açúcar, Heitor Ferreira Lima sustenta que "o açúcar é o primeiro produto industrial que existiu entre nós".52

Os engenhos multiplicaram-se rapidamente ao longo das costas do Nordeste. Cifras aproximadas dão-nos 60 engenhos em 1553; 120 em 1600; 528 em 1700 e, em torno de 1800, cerca de 800 engenhos, distribuídos como segue:53

Paraíba ... 37

48

Ibid., p. 32.

49 Um marco importante desta evolução é o Tratado de Methween (1703), que confirma a dominação da Inglaterra sobre a economia portuguesa e, indiretamente, sobre a colônia brasileira. Um breve corte não fez senão relativizar esta situação sem transformá-la: a presença do marquês de Pombal no governo português entre 1750 e 1777, que se esforçou por submeter a economia às necessidades portuguesas e por imprimir a Portugal uma política econômica nacional.

50 "Com a subida dos preços na segunda década da descoberta do Brasil a situação modificou-se e a produção do açúcar tornou-se interessante" (Heitor Ferreira Lima, História Político-Econômica e Industrial do Brasil, Cia: Ed.

Nacional, 1973, p. 29).

51 Roberto Slmonsen, op. cit., vol. 11, p. 126. 52 Heitor Ferreira Lima, op. cit., p. 25. 53 Ibid., pp. 29 e 30.

Pernambuco ... 296 Alagoas ... 73 Sergipe ... 140 Bahia ... 260

Total ... 806

É difícil sobrestimar a importância do açúcar na formação das estruturas econômicas e sociais do Brasil. Simonsen calcula que durante os três séculos de colonização portuguesa o Brasil exportou um valor de mais de 300 milhões de libras de açúcar, contra uns 200 milhões de produtos mineiros. Mas a sua importância sente-se sobretudo na formação das estruturas sócio-econômicas.

Se a estrutura da propriedade se apóia, no início, sobre um ato do soberano, a dinâmica econômica ia rapidamente tornar-se essencial: "A cana-de-açúcar", escreve Caio Prado Jr., "não se prestava economicamente senão às grandes plantações. Já para a limpeza e para preparar o terreno (tarefa difícil no meio tropical e virgem tão hostil ao homem) era necessário reunir o esforço de muitos trabalhadores; não era empreendimento para pequenos proprietários isolados. Isto feito, o plantio, a colheita e o transporte do produto até aos engenhos onde se preparava o açúcar não podia ser rentável senão numa grande escala de produção. Nestas condições, o pequeno proprietário não podia subsistir. São estas circunstâncias antes de tudo que determinam o tipo de exploração agrária no Brasil: a grande propriedade".54

O desenvolvimento da grande propriedade de monocultura leva, por sua vez, ao desenvolvimento da escravatura: o desmatamento, a cultura, a transformação, a embalagem e expedição do açúcar exigiam mão-de-obra abundante. Começou-se por utilizar mão-de-obra indígena,55 que revelou ser pouco adaptada a estas atividades e foi massacrada no trabalho. Já em meados do século XVI havia começado a importação de mão-de-obra escrava da África. Um engenho médio contava cerca de 100 escravos; em alguns o seu número ultrapassará o milhar.

Do ponto de vista da estrutura social, a polarização entre as grandes propriedades e a massa de mão-de-obra miserável, entre a "casa grande" e a "senzala", marcou profundamente o Brasil e os seus efeitos fazem-se sentir até hoje. As duas classes não formavam no entanto todo o universo social da colônia. Ao lado dos senhores de engenho havia os agricultores que produziam cana-de-açúcar, sob contrato, para o engenho; se bem que dispusessem de mão-de-obra escrava, o seu nível era nitidamente mais baixo. Nos próprios engenhos encontrava-se um número bastante importante de assalariados que executavam tarefas intermediárias: carpinteiros, técnicos do açúcar, contadores, etc.56

Se o açúcar foi indiscutivelmente o produto mais importante do período colonial, não foi o único. Mais ao sul, na Bahia, desenvolveu-se a produção do tabaco. Esta última estendeu-se em parte sob o efeito direto da procura européia e em parte como atividade induzida pela produção do açúcar: com efeito, o tabaco serviu para a compra de escravos em África, para o aprovisionamento dos engenhos. Um documento da época mostra bem a ligação profunda entre a produção local e o comércio internacional após dois séculos de colonização: "Segundo um parecer enviado a D. Pedro II, em 4 de Março de 1669, pelo duque de Cadaval, presidente do Conselho Ultramarino, não se devia deixar sair do Brasil mais de 30 000 rolos de tabaco ao ano, sendo esta quantidade a maior

54 Caio Prado Jr., História Econômica do Brasil, 8a ed. Revista, Ed. Brasiliense, 1963, p. 23. A este fator cabe acrescentar o fato de se tratar de monocultura de exportação já que a cultura da cana em si pode evidentemente existir em pequenas propriedades.

55 Em 1570 uma carta real autorizava os colonos a reduzirem os indígenas a escravos conquanto fossem, evidentemente,

presos em guerra justa (Caio Prado Jr. op. cit., p. 35).

56 Antonil, jesuíta que publicou as suas notas sob o título Cultura e Opulência do Brasil, em 1711, dá uma das melhores descrições da organização econômica e social do Brasil colonial. Antonil nota as funções e os respectivos salários das diversas categorias profissionais.

que posse absorver o comércio interno e externo de Portugal. Um levantamento por ele feito, segundo os livros de contas e alfândegas, mostrava que apenas 2 278 rolos eram consumidos em Portugal, 200 nos Açores e na Madeira; todo o resto, ou seja, 24 727 rolos, ficando destinado à exportação para países do Norte, a Itália, a Espanha e a costa de África”.57 Constatamos que menos de 10 por cento da produção exportada do Brasil permanecia em Portugal.

A produção do tabaco exigia também, se bem que em menor medida que a do açúcar, uma série de etapas intermediárias para transformar a folha em produto embalado e pronto para a exportação. A cultura desenvolveu-se pois em grandes propriedades, com uma mão-de-obra escrava numerosa, sem diferenças essenciais relativamente às estruturas criadas pela produção do açúcar.

Pelo fim da fase colonial, à medida que o capitalismo europeu se transformava em capitalismo industrial, a demanda de algodão tomou importância no mercado internacional e a sua cultura desenvolveu-se rapidamente na parte setentrional do Nordeste e no interior da Bahia e de Minas Gerais.58 Exigindo poucas instalações, a produção do algodão esteve ao alcance de capitais mais modestos, ocupou terras mais afastadas, mas guardou o caráter de grande propriedade característica da monocultura de exportação no Brasil. A ausência de etapas intermediárias de transformação do produto facilitou a dominação dos comerciantes sobre os produtores. Sob o seu controle, assistimos ao desenvolvimento da produção sob forma de "meias", semelhante à dos

share-croppers dos Estados Unidos.59

A agricultura brasileira não tem, pois, no seu início, nada da pequena ou média propriedade camponesa, nem das diferentes estruturas européias ou russa, às quais se tentou assimilá-la, e difere profundamente da hacienda da América hispânica, mais introvertida e fechada sobre si mesma.

O fato de produzir para o exterior, a disponibilidade de grandes extensões de terras e importação maciça de escravos e as exigências técnicas da produção deram a esta produção o caráter de grandes unidades de monocultura extensiva e de transformação, visando a exportação. Celso Furtado qualifica-as de empresas agromercantis: "Nunca se insistirá suficientemente sobre o fato de que o estabelecimento dos portugueses na América teve por base a empresa agrícola comercial. O Brasil é o único país da América criado desde o início pelo capital comercial sob forma de empresa agrícola".60

A estas atividades diretamente estimuladas pelo mercado capitalista internacional, cumpre acrescentar uma atividade que, apesar de voltada essencialmente para o mercado interno, constitui uma atividade induzida pela agricultura de exportação. É o caso em parte do tabaco, como já referimos, mas é sobretudo o caso do gado, que toma uma grande importância na formação do Brasil.61

O caráter induzido desta atividade sobressai claramente nesta descrição que encontramos ainda em Antonil:

"A fim de que se faça uma justa idéia do gado retirado cada ano dos currais do Brasil, basta notar que todos os rolos de tabaco que são embarcados com destino a qualquer região são revestidos de couro. Como cada rolo pesa cerca de oito arrobas e os rolos de tabaco são geralmente, como o vimos no devido tempo, em número de vinte e cinco mil pelo menos e os de Alagoas e Pernambuco

57 Antonil, Cultura e Opulência do Brasil — 1711, Paris, IHEAL, 1968, p. 325.

(17) "É somente depois de se tornar uma mercadoria de grande importância no mercado internacional que o algodão começa a aparecer, tornando-se mesmo uma das principais riquezas da colônia ", escreve Caio Prado Jr., op cit, p.

83.

(18) Caio Prado Jr, op. cit., p 85.

58 "É somente depois de se tornar uma mercadoria de grande importância no mercado internacional que o algodão

começa a aparecer, tornando-se mesmo uma das principais riquezas da colônia ", escreve Caio Prado Jr., op cit, p. 83.

59 Caio Prado Jr, op. cit., p 85.

60 Celso Furtado, "Agricultura y desarollo económico: consideraciones sobre el caso brasileño”, El Trimestre

Económico, Jan.-Mar., 1972, p. 14.

61 Além da sua importância econômica, a criação de gado exerce um papel importante de integração econômica do país,

em número de dois mil e quinhentos, vemos bem claramente quantos animais são necessários para revestir de couro vinte e sete mil e quinhentos rolos.

"Além disto, exporta-se cada ano da Bahia, com destino ao Reino, até cinqüenta mil peles tratadas; de Pernambuco quarenta mil e do Rio de Janeiro até vinte mil... num total de dez mil peles. "Dado o grande número de engenhos de açúcar que, cada ano, se aprovisionam em bois para os serviços dos carros e o grande número de bois que são necessários aos plantadores de cana-de-acúcar, de tabaco, de mandioca, às serrarias e ao transporte da lenha para queimar, poderemos facilmente deduzir o número de bois que serão necessários, de um ano para outro, para assegurar todas estas atividades".62

Se bem que produzido fundamentalmente com destino interno (do ponto de vista da colônia), o gado foi criado segundo exigências comerciais, em grandes fazendas do interior do pais, de onde era "exportado" para atingir o seu mercado freqüentemente situado a milhares de quilômetros. Assim, grande parte do gado de Pernambuco vinha do Piauí;63 mais tarde, com o desenvolvimento da produção de charque no sul do Brasil, este virá aprovisionar o Nordeste e o Sudeste do país.

Do ponto de vista da função e da estrutura não se trata, pois, da "granja" camponesa de estilo europeu, que produz em função das necessidades locais ou regionais. A criação de gado ocupava gigantescas extensões no interior do país e os engenhos reservavam as boas terras à cultura dos bens de exportação.64 Assim, sob a influência da dinâmica de produção para exportação, a criação de gado, se bem que destinada ao mercado interno, era por ela orientada. Do ponto de vista regional esta atividade em grandes propriedades aparecia como exportadora e não contribuía para a formação de uma dinâmica autocentrada.65