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As Comunidades Locais de Prática e a prática de Sara

CAPÍTULO IV – UM OLHAR DE DENTRO

4.2 As Comunidades Locais de Prática e a prática de Sara

Os pesquisadores que estudaram as Comunidades Locais de Prática-CLP (WINBOURNE; WATSON, 1998; LAVE; WENGER, 1991) me ajudaram a fazer uma nova leitura das aulas de Sara tomando uma perspectiva sociocultural e histórica. Com essa nova leitura, ela cria, em sala de aula, um ambiente propício a um certo tipo de aprendizagem da Matemática, que está mais ligado ao conhecimento das definições e ao uso das regras.

Os estudos de Lave (1988) e Lave e Wenger (1991), feitos junto a ‘comunidades de prática’ não-escolares, destacam a importância da participação do aprendiz em uma ‘comunidade de prática’, como condição fundamental para se dar a aprendizagem. Segundo a teoria da prática social desenvolvida a partir desses estudos, toda comunidade de prática cria, entre seus membros, condições favoráveis à aprendizagem.37 Com isso, não se quer dizer que seja absolutamente necessária a

37 Lave e Wenger (1991) analisam, com base na antropologia, os meios utilizados pelos aprendizes de

alfaiate para aprender o ofício. Para esses autores, em uma comunidade de prática, a aprendizagem está relacionada com uma mudança da participação do aprendiz num movimento que vai de uma situação

participação em uma comunidade de prática para que haja aprendizagem, nem que seja suficiente participar de uma prática para que se produza conhecimento socialmente reconhecido.

Apesar de inicialmente pensada a partir da participação em comunidades de prática não- escolares, a teoria de aprendizagem desenvolvida por Lave (1988) e Lave e Wenger (1991) foi considerada, pelos educadores matemáticos, como uma contribuição importante para a pesquisa sobre a aprendizagem da Matemática escolar. Afinal, o propósito de todo professor em uma sala de aula de Matemática é que o ensino e a aprendizagem caminhem juntos. (FRADE, 2003).

Para Goos (2004), segundo a perspectiva de Lave e Wenger, uma sala de aula de Matemática pode ser vista como uma comunidade de prática, na qual os alunos (aprendizes) devem se apropriar de procedimentos, convenções e linguagem da comunidade dos matemáticos. Segundo Frade (2003), o conhecimento matemático dos alunos não é exatamente o conhecimento dos matemáticos, mas está relacionado a ele, e a sala de aula de Matemática não é exatamente uma comunidade de matemáticos. Com essas ressalvas, pode-se dizer que, nas aulas de Sara, os alunos ‘fazem’ Matemática: eles aprendem a operar com os números inteiros, eles aprendem a resolver equações e problemas do primeiro grau, eles aprendem a medir ângulos, etc.

Watson (1998) observa que se pode aprender muito sobre a aprendizagem no contexto escolar, analisando essa aprendizagem no contexto social de uma comunidade de prática. Essa constatação levou Winbourne e Watson (1998) a propor uma adaptação da idéia inicial de Lave para o contexto escolar, o que significa olhar para a sala de aula como uma comunidade na qual se desenvolve alguma prática social compartilhada entre o professor e os alunos. Esses autores utilizam um termo anteriormente introduzido por Lave — comunidade local de prática — e procuram caracterizá-lo, pensando-o em termos das práticas escolares. São seis as características que eles consideram necessárias para que uma sala de aula possa ser vista como uma Comunidade Local de Prática-CLP:

1. os alunos vêem-se, a si próprios, atuando matematicamente e, para eles, faz sentido ver esse seu modo de ‘ser matemático’ como parte essencial de quem eles são na aula;

2. através das atividades e dos papéis assumidos, existe reconhecimento público do desenvolvimento de competências dentro da aula;

periférica da sua situação de aprendiz a uma participação mais central, próxima à situação de mestre. (Watson, 1998, Introdução)

3. os aprendizes vêem-se a si mesmos trabalhando propositalmente juntos para alcançar um entendimento comum;

4. existe um compartilhamento de formas de se comportar, linguagem, hábitos, valores, e uso de instrumentos;

5. a aula é essencialmente constituída pela participação ativa dos alunos e do professor;

6. professores e alunos poderiam, por alguns momentos, ver-se a si mesmos como engajados na mesma atividade.

(Winbourne & Watson, 1998)

Em David e Lopes (2005), analisamos as práticas que a professora Sara desenvolve com seus alunos, em sua sala de aula de Matemática, às quais Winbourne e Watson (1998) se referem como práticas locais compartilhadas, de acordo com as características acima. Com essa perspectiva, percebo que ela compartilha com seus alunos uma linguagem que é própria da Matemática e alguns processos utilizados pela Matemática, como o uso de definições, regras operatórias e propriedades. Compartilha com eles, também, o uso de algumas ferramentas matemáticas como, por exemplo, o uso de uma equação para resolver um problema do primeiro grau, criando, assim, em sua sala de aula, umambiente favorável à aprendizagem da Matemática. Isso me leva a constatar que esses podem ser aspectos importantes do ensinar Matemática.

As entrevistas com os alunos de Sara reforçaram a idéia de que eles realmente aprenderam as regras e definições ensinadas em sala de aula, procedimentos importantes para o traquejo com a linguagem algébrica. Como já comentamos no capítulo anterior, dos dez alunos de 6ª série que participaram da primeira entrevista, todos responderam corretamente às duas questões sobre o conteúdo estudado por eles: resolução de equações do primeiro grau (Dê o valor de x que satisfaz a equação

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2x+ = ) e resolução de problemas do primeiro grau (O dobro de um número somado com quatro dá dez. Qual é o número?) Na primeira, todos resolveram a equação e deram o resultado x=2; e na segunda, todos montaram e resolveram uma equação e deram o resultado x=3.

Em que pese uma certa repetição da rotina das aulas de Sara, devido às sucessivas perspectivas de análise utilizadas, destaco, a seguir, algumas características das suas aulas que me levaram a associá-las com uma Comunidade Local de Prática. Uma aula típica de Sara começa com ela escrevendo no quadro, para os alunos copiarem, a data, o dia da semana e um ‘pensamento’ que traz anotado. Esse momento da escrita do cabeçalho e do ‘pensamento’ funciona como um sinalizador para os alunos de que eles estão se engajando em uma atividade comum, a aula de Matemática. É o momento de eles se organizarem e se prepararem para uma nova aula. Pelas

características de uma CLP, o ‘pensamento’ pode ser visto como um hábito compartilhado com os alunos (característica 4 de uma CLP, segundo Winbourne e Watson).

A rotina da aula de Sara (a revisão do assunto estudado na aula anterior seguida da explicação do conteúdo que será estudado, a conversa com os alunos sobre o conteúdo e o resumo que os alunos têm que copiar) aproxima a sua aula de duas outras características de uma CLP: a participação ativa dos alunos e do professor, que se vêem trabalhando juntos para alcançar um entendimento comum (características 5 e 3 das CLPs).

No momento de os alunos resolverem os exercícios de aplicação do conteúdo estudado e de a professora orientar a resolução dos mesmos, há uma participação ativa dos alunos e da professora, que se vêem a si mesmos engajados na mesma atividade, no sentido de alcançar um entendimento comum (característica 6 de uma CLP).

No diálogo abaixo, extraído da aula sobre subtração de números inteiros, Sara pede aos alunos exemplos de aplicação da regra de subtração de números inteiros e pergunta como procederam em cada caso. A cada resposta, ela enuncia a regra de subtração de números inteiros e dá mais dois exemplos. Em seguida, pede a um aluno que dê um exemplo e que o resolva, pedindo a outro aluno que corrija o que o colega fez.

062. S – ... então nós acabamos de aplicar a regra da sub(...) ... qual é a regra da subtração? ... para subtrair dois números tá? o que que nós vamos fazer? ... basta adicionar o primeiro com o oposto do se(...) ... tem alguém que poderia citar um exemplo para mim? ... Edgar ... Lincoln ... observe o exemplo do Edgar ... Edgar aplicou a regra?

NO: o exemplo de Edgar, no quadro: (−24)(+22)=

= − + − ) ( ) ( 24 22 063. Lincoln – ... não ... 064. S – ... aplicou ou não? 065. Lincoln – ... não ...

066. S – ... olha lá ... a primeira ... o primeiro termo sofreu alguma modificação? ... Lincoln? 067. Lincoln – ... não ...

068. S – ... não ... continua o mesmo ... tá? ... então ... basta que adicionemos o primeiro termo ... não aconteceu nada com o primeiro ... certinho? ... e o que (aconteceu) com o segundo? ... adicioná-lo com o ... oposto ... então vamos ver se ele colocou ... adicionado ... era mais vinte e dois passou para menos vinte e dois ... então o que que acontece com o exemplo do Edgar agora?

070. S – ... ele aplicou a regra ... concorda? ... Fernando ... então eu gostaria de saber agora tá? ... um outro exemplo ... mas queria que a Tatiane citasse um exemplo ... vamos Tatiane ... 071. Tatiane – ...não ...professora ...

072. S – ... vamos sim ...

073. Tatiane – ... ah... não sei não ... 074. S – ... sabe sim Tatiane ... 075. Tatiane – ... não sei não ...

076. S – ... Matuzi ... cita um exemplo pra mim baseado na conclusão da subtração em zê ... 077. Matuzi – ... não sei ...

078. S – ... pensa ... fala João ...

079. João – ... menos dez menos mais doze ...

080. S – ... agora João ... já que você colocou ... vamos ver se o Matuzi resolve pra gente aqui ... aplicando a regra da subtração ...

NO: João escreve um exemplo no quadro e Matuzi o resolve: (−10)(+12)= = − +

) ( )

( 10 12 081. Matuzi – ... menos dez mais menos doze ...

082. S – ... o que você fez aqui Matuzi? 083. Matuzi – ... inverti o sinal aqui ...

084. S – ... conservou o primeiro termo ... e adicionou com o ... oposto do ... segundo ... isto aqui tá claro pra todos?

Sara orienta a correção do exercício e percebo que a regra foi aprendida pelos alunos, que mostraram ter desenvolvido a competência de subtrair números inteiros (característica 2 das CLPs). Além disso, alguns alunos dando exemplos e analisando-os como aplicação de uma regra, alguns alunos mostram estar atuando matematicamente (característica 1 das CLPs).

Identificar as características de uma Comunidade Local de Prática, nas aulas da professora Sara, levou-me a concluir que ela cria um ambiente propício a um certo tipo de aprendizagem da Matemática, o que poderia ser mais um elemento para explicar sua história de sucesso. Do mesmo modo que as comunidades de prática são diferentes entre si, dependendo das atividades que desenvolvem (WENGER,1998), é evidente que serão diferentes as aprendizagens relacionadas a modos diferentes de ensinar (BOALER, 2002). Um professor que incentiva seus alunos a fazer conjecturas e a provar suas conjecturas vai desenvolver, em suas aulas, competências diferentes daquelas que Sara desenvolve tais como fazer o uso correto da simbologia, da linguagem das regras e procedimentos matemáticos. Considero, agora, após os insights que a análise das aulas de Sara me proporcionou, que esses dois aspectos do ensinar Matemática são igualmente importantes e se completam.

Compreender a história de sucesso de Sara, objetivo que venho perseguindo ao longo deste trabalho, não se encerra ainda aqui. Continuando dentro da perspectiva

da aprendizagem situada em uma comunidade de prática, acrescento à minha análise novos elementos, que virão esclarecer melhor o tipo de aprendizagem que ocorre em suas aulas.