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As Concepções de Organização e Estruturação de Serviços de Saúde

A Medicina Comunitária logrou imprimir racionalidade na organização dos serviços de saúde, imprimindo as noções de regionalização, hierarquização, participação comunitária, equipe multidisciplinar e multiprofissional, a partir das formulações originadas no movimento preventivista (DONNANGELO, 1976). Desde a incorporação das ciências sociais no estudo dos cursos de saúde pública, ainda na década de 70, as disciplinas de planejamento e administração, com abordagem de análises de custo- benefício e custo-efetividade, programação, planejamento participativo, sistema de informação, etc., foi possível desenvolver criticamente novos conceitos, metodologias e instrumentos operativos no campo da saúde. Estas iniciativas empreendidas pelo movimento preventivista possibilitaram outros arranjos institucionais, vindo a se constituírem em um dos principais fundamentos do movimento sanitário que deu origem ao projeto da RSB.

Partindo da análise dos processos de trabalho e do conceito-chave de organização social da prática médica, tal movimento opera uma leitura socializante da problemática evidenciada pela crise da medicina mercantilizada bem como de sua ineficiência, enquanto possibilidade de organização de um sistema de saúde capaz de responder as demandas prevalentes, organizado de

forma democrática em sua gestão e administrado com base na racionalidade do planejamento. (FLEURY, 1988, p.196)

A Saúde Coletiva com vertente vanguardista passa a questionar a supremacia do economicismo e do estruturalismo que houvera sido importante nos primórdios das formulações preventivistas, e que havia reduzido os enfoques e críticas à estrutura do poder. A busca de outras e diversificadas alternativas teóricas assumem lugar de destaque como desafios à construção do projeto da RSB.

O conceito de práticas de saúde, inicialmente pouco valorizado na análise política do movimento sanitário e nas formulações de macropolíticas, tornou-se imprescindível como campo de experimentação e laboratório de modelos alternativos de gestão e organização de serviços de saúde, e indispensável para a consecução exitosa de projeto da RSB.

Diversas linhas de pesquisas, reflexões e experimentações relativas às práticas de saúde foram desenvolvidas em distintos centros acadêmicos e núcleos de estudos instalados em unidades de serviços, ensejando novos arranjos institucionais e profissionais para a criação de modelos alternativos de atenção à saúde, planejamentos locais e gestão participativa de profissionais e usuários. Estes novos arranjos criaram as condições para que outras dimensões subjetivas fossem incorporadas às práticas com a constituição de espaços de comunicação e diálogos entre trabalhadores de saúde e usuários na perspectiva da criação de sujeitos sociais.

Os diversos modelos de atenção à saúde e as iniciativas inovadoras que lhes acompanhavam propiciaram a articulação entre as universidades, os serviços e a comunidade em vários municípios e distritos sanitários.

Paralelo aos trabalhos de pesquisas, experimentações e de formação de recursos humanos desenvolvidos pelas academias e núcleos de serviços alternativos para construção de condições propicias as mudanças, também programas e ações implantadas em distritos sanitários e pequenas unidades de saúde contribuíram para o desenvolvimento de diversos modelos de atenção à saúde, como, por exemplo, a “estratégia da saúde da família”.

Assim, o ideário da RSB foi resultante de um longo movimento da sociedade civil brasileira em defesa da democracia, dos direitos sociais e de um novo sistema de saúde como coroamento da uma ampla reforma social e política e de produção de conhecimento sobre o assunto. A questão da democracia sempre foi o cerne da concepção reformista: como necessidade para as mudanças setoriais e como possibilidade de transformação do Estado e da sociedade civil, assim como as relações entre eles. A democratização da

saúde, nas formulações da RSB, adquire o significado de elevação da consciência social e sanitária a respeito da saúde e de seus condicionantes e determinantes, além do reconhecimento do direito inalienável da cidadania, garantindo-se pelo acesso universal, gratuito e igualitário ao SUS e a participação da comunidade na definição e prioridades das políticas e da gestão.

Visando à democratização do Estado e de seus aparelhos, com a desconcentração do poder e descentralização dos processos decisórios, o reconhecimento de autoridade sanitária única em cada esfera de governo - comando único - evitando duplicidades de ações e gastos desnecessários e disputas políticas, e estímulo à participação social como forma de propiciar maior transparência nas prestações de serviços governamentais, constituíam objetivos explícitos do movimento reformista.

Ao mesmo tempo como estratégia e como finalidades precípuas, a RSB propugnava pela democratização da sociedade civil e da cultura, vistos em conjunto como espaços a serem conquistados e ocupados pelos cidadãos para modificações no modo de vida e organização das comunidades, condição indispensável para alcançarem-se melhores serviços de saúde e acessíveis a todos.

Em perspectiva, pode-se dizer que o projeto da RSB tinha um alcance e uma profundidade que ultrapassava os limites do setor saúde, atingindo outras áreas em busca de melhor qualidade de vida para o conjunto da população brasileira, criando estímulos e meios à implantação e desenvolvimento da solidariedade entre os cidadãos.

O projeto da RSB é o da civilização humana, é um projeto civilizatório, que para se organizar precisa ter dentro dele princípios e valores que nós nunca devemos perder, para que a sociedade como um todo possa um dia expressar estes valores, pois o que queremos para a saúde é o que queremos para a sociedade brasileira (AROUCA, 2001, p.6).

Especificar e detalhar as bases sociopolíticas do projeto da RSB, sua práxis e as estratégias empregadas ao longo da construção dos pilares doutrinários da reforma, as características do movimento pelas reformas, alianças setoriais e intersetoriais, a ampliação do espectro de apoios partidários e as contribuições do mundo acadêmico nas formulações e experimentações de diversos modelos de atenção à saúde configuram, em seu conjunto, as raízes de uma nova modalidade de fazer política no Brasil, e cujo êxito contou com a participação de diferentes atores sociais em distintas posições extras e interinstitucionais.

A conjuntura política e econômica mostrava-se favorável a novas experiências inovadoras. Os setores mais modernos das indústrias viviam experiências econômicas mais

contemporâneas, decorrentes dos intercâmbios com países capitalistas centrais, e por isso, propiciavam melhores condições de trabalho e melhores distribuições de renda, sem, contudo significar rompimentos com a ordem vigente.

Cabe-nos, agora, realçar cada um destes múltiplos elementos constitutivos do amplo e ambicioso do projeto da RSB.