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O Sus como Instrumento de Inclusão Social: Realidade e Promessas

4. A CONSTRUÇÃO DO SUS: IMPASSES E DISJUNTIVAS

4.7 O Sus como Instrumento de Inclusão Social: Realidade e Promessas

O ideário da RSB foi concebido como instrumento de questionamento das relações existentes entre a sociedade civil e o Estado brasileiro. As estruturas arcaicas alimentaram por muitos anos políticas públicas sociais, ancoradas no clientelismo, coronelismo, compadrio na esteira larga e anacrônica do paternalismo. Fundar uma nova política pública na área da saúde importava torná-la, ao mesmo tempo, democrática, promotora da cidadania, cultivando a solidariedade como raiz de um processo de inclusão dos contingentes populacionais historicamente marginalizados, sem acesso a renda, riquezas, bens e serviços criados pela própria sociedade. Lutar por mudanças nas estruturas do país não importava em buscar questionar o caráter do governo e o regime político vigente, mas antes almejava transformar as velhas estruturas nos limites do possível, isto é, preservando o status quo, mas que reservava espaços para a atuação de movimentos sociais impulsionadores de melhoria na qualidade dos serviços de saúde.

O conceito de hegemonia, renovado por Gramsci (1995), nos mostra como um “bloco histórico” (conjunto de classes dominantes) instaura seu poder por meio do consenso no seio da sociedade. O movimento sanitário precisava elaborar e articular um projeto contra-hegemônico, com vistas às transformações objetivadas sem qualquer alteração e questionamentos relativos à composição da estrutura de classes na sociedade brasileira.

Para Gramsci (1995), a hegemonia seria a direção moral e intelectual de uma sociedade, onde a dominação “física” e corpórea é auxiliada pela instauração do consenso. O poder de coesão, conectado ao consenso, constituiria o predomínio de uma visão social de mundo e de convívio social. O espaço da hegemonia é a sociedade civil, em que os chamados “aparelhos privados de hegemonia” são os responsáveis pela disseminação do pensamento dominante (COUTINHO, 1999).

Tomando os ensinamentos do filósofo italiano, Antonio Gramsci, e seu trabalho sobre os intelectuais e a importância dos aparelhos privados de hegemonia na estratégia revolucionária (guerra de posição), que trouxeram inegáveis contribuições aos estudos das relações cristalizadas na sociedade, os ideólogos da RSB, centravam na criação da formação de um projeto contra-hegemônico sua estratégia principal com vistas ao êxito do movimento sanitário.

A hegemonia em Gramsci é então não apenas o nível articulado superior de “ideologia”, nem são as suas formas de controle apenas as vistas habitualmente como “manipulação” ou “dominação”. É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores -constitutivo e constituidor - que, ao serem experimentados como prática parece confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas na sociedade, um senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas da sua vida. (WILLIAMS, 1979, p. 113)

A RSB em curso no Brasil representa uma reforma social inconclusa, de alcance e de grande complexidade política. Ao longo do tempo de sua formulação e maturação, enquanto projeto inovador e transformador, a RSB passou por ciclos diversos durante sua construção teórica: era um propósito, que foi sendo consolidado na medida em que se desenvolvia uma bem fundamentada crítica ao sistema de saúde vigente no período autoritário; era uma concepção política, que visava originalmente contribuir para a redemocratização do país conforme textos e propostas originalmente apresentadas e defendidas pelo Cebes, compondo-se um conjunto harmonioso de princípios e diretrizes e proposições contida no documento A questão democrática na saúde, em 1979; como ativismo político da sociedade civil, capaz de mobilizar um conjunto de forças políticas, ideológicas e sociais em torno de um projeto comum e agregador; como programa de ação, embasado em um conjunto de políticas articuladas que exigem consciência social e com estímulo à participação coletiva ativa e promotora da cidadania, realizando sua vinculação as outras lutas políticas e sociais; como processo, por exigir articulação e habilidade em atuação permanente dos atores sociais, promovendo práticas e difundindo experiências e, assim, transformando a RSB num fenômeno histórico-social; e plataforma contra-hegemônica, processo que por definição está sempre por se reinventar, com avanços e recuos de acordo com a conjuntura e as condições estruturais presentes em dado contexto.

Em favor da RSB e de seus resultados, deve-se destacar que esse é o rosário de proposições cuja efetivação real exige longo tempo de maturação e conquistas paulatinas de acordo com as peculiaridades históricas do momento. Todavia, o ideário da RSB, diferente de outras iniciativas de mudanças no setor, logrou ampliar seu raio de preocupação e ação não mais se restringindo ao Estado, como as reformas do início do século passado voltadas para os aspectos urbanísticos e combate aos focos de endemias localizados em portos - ambas visando ao incremento nos ganhos financeiros decorrentes do maior fluxo de mercadorias. Pode-se dizer que a RSB ou Reforma Democrática da

Saúde foi gestada exclusivamente no âmbito da sociedade civil, e só posteriormente desencadeou ações com vistas à conquista dos poderes executivos e legislativos, carecendo, ainda, de inserir-se na judicialização do país.

A questão democrática, o destaque para a importância das liberdades civis e a ampliação do acesso aos bens e serviços produzidos pelo país, como fatores de promoção da cidadania, mediante a redução das desigualdades de renda e de oportunidades para o conjunto da população, foram em sua maioria eternamente esquecidas e marginalizadas a despeito das riquezas geradas pela sociedade. Mesmo com as conquistas decorrentes da criação do SUS para a maioria da população, até então excluídas do acesso aos serviços de saúde, persistem os obstáculos à construção do sistema universal e igualitário, ideais dos reformistas. Os obstáculos presentes na estrutura econômica e na superestrutura jurídico- político e ideológico arraigados na sociedade brasileira têm sido agravados com dificuldades de ampliação de sua base de apoio e sustentação política, sobretudo pelo afastamento da classe média com sua maior capacidade de vocalização e pressão, aliada à conjuntura desfavorável pela crise fiscal e, principalmente, pelas profundas mudanças que se operam no papel do Estado, agora voltado para mero regulador de mercados.

As avaliações sobre a trajetória da RSB desde a fundação do Cebes, há trinta anos e vinte anos após a realização da VIII CNS, evidenciam um importante conjunto de avanços e conquistas decorrentes das lutas empreendidas pelo movimento pela reforma sanitária. Dentre estes merece destaque especial o reconhecimento, pelo menos formal, do direito universal à saúde e as responsabilidades indeclináveis do Estado e a descentralização administrativa, financeira e política do sistema com comando único em cada esfera de governo.

Os ideólogos da RSB que permanecem fora do aparelho estatal consideram que a RSB está apenas em seu início em decorrência da complexidade da concepção de federação instituída pela constituinte e em face das dimensões e desigualdades existentes entre as vinte e sete unidades da federação e os mais de 5.500 municípios, que necessitam organizar-se em instância que promovam a pactuação entre os diferentes gestores (estaduais e municipais) do sistema para a implantação do SUS, promovendo a participação popular através de conselhos, conferências e plenárias de saúde com vistas ao exercício real do controle do Estado e de seus aparelhos. A universalização do acesso, mesmo que apenas formalmente assegurado, a expansão do PACS/PSF, incremento da produção e da produtividade (mais de 1,5 bilhão de consultas ambulatoriais em 2004, 200 milhões de exames laboratoriais, 12 milhões de internações, 1 milhão de tomografia

computadorizadas, regulamentação e realização de 23.400 transplantes, desenvolvimento e implantação de sistema de informatização, etc.).

A par de tais êxitos, o ideário da RSB, no entanto, apresenta um grande déficit enquanto política pública que se pretende promotora da cidadania via acesso universal e participação ativa nas deliberações e, ao mesmo tempo, como projeto de inclusão social. Estes objetivos estão na dependência de muitos outros fatores e condições que extrapolam o âmbito do setor saúde e, pois, estão fora de sua governabilidade. A definição do papel do Estado como protagonista principal, embora não único, na construção do SUS depende de acontecimentos e decisões afeitas à esfera da política strito senso, o que por se só deixa com baixa capacidade de ação os atores sociais com interesses nesta área.

O confinamento da RSB à dimensão setorial e a submissão do SUS às “manobras da política” (BERLINGUER, 1988) constituem evidentes limitações a sua concretização plena. A dispersão do movimento sanitário como instância coletiva e instrumento de pressão política sobre o Estado e poder em geral tornou os obstáculos da conjuntura mais relevantes e de difícil transposição. Entre os principais obstáculos não superados e muitas vezes nem sequer objeto de reflexões teóricas e questionamentos de seus significados e práticas com vista à ampliação da cidadania e à democratização do setor, podemos identificar: a não implementação do preceito constitucional da seguridade social que permanece com construção legal, mas sem qualquer esforço de incremento de políticas complementares a serem desenvolvidas pelas três áreas que as compõem, visando potencializar os elementos que desfrutam em comum, notadamente a integração de políticas promotoras da cidadania; o subfinanciamento para o setor que permanece, ainda, na dependência de decisões a cada ano por ocasião da elaboração do orçamento fiscal da União Federal e dos demais entes federados; aviltamento ou precarização das relações, remunerações e condições de trabalho a que estão expostos os profissionais do setor e os usuários do sistema; marketing de valores de mercado “em detrimento das soluções que ataquem os determinantes estruturais das necessidades de saúde” (Fórum da RSB, 2006, p. 5); mudanças estruturantes insignificantes nos modelos de atenção à saúde e de gestão do sistema (PAIM, 2008, p. 245).

As críticas às políticas governamentais na condução do processo de implantação do SUS ao longo do tempo têm sido esparsas e condicionadas, por via de regra, a conjunturas desfavoráveis a sua efetivação. Mas, mesmo assim, as críticas e denúncias dos desvirtuamentos na sua implantação geram protestos que clamam por cuidados e vigilância mais acurada no acompanhamento permanente na construção do SUS. Por se tratar de um

processo de construção, o modelo passará por dificuldades, limitações e desafios que estão a exigir novos aportes teóricos com a revisão de conceitos e estratégias para sua materialização real.

O modelo assistencial é anti-SUS. Aliás, o SUS como modelo assistencial está falido, não resolve nenhum problema da população. Esta lógica transformou o governo num grande comprar e todas as outras instituições em produtores. A saúde virou um mercado, com produtores, compradores e planilhas de custos. O modelo assistencial acabou universalizando a privatização. (AROUCA, 2002)

Embora essa visão seja exagerada, e possivelmente fruto das contendas político- eleitorais, já que realizadas ao final do governo de Fernando Henrique Cardoso, e no calor da ascensão eleitoral de Lula, o diagnóstico da volta da primazia da medicalização e do hospital como centro do sistema estimulado e patrocinado pelas políticas governamentais no transcurso desses mais de vinte anos pós-constituinte é acertado, e corresponde, ainda, a submissão do SUS a interesses partidários na ocupação de cargos de direção.

Os mecanismos técnico-burocráticos apresentados e exigidos pelo governo federal para a habilitação de estados e municípios a fim de terem assegurado o acesso livre aos recursos federais e, com eles, definirem suas prioridades de investimentos e custeios, trouxeram grandes dificuldades para os pequenos municípios que não dispõem de estrutura e nem capacidade técnica para atender a todas as exigências formais da administração pública. Estas exigências técnico-burocráticas têm representado sérios entraves à autonomia dos entes federados. As limitações burocráticas de muitos municípios para se habilitarem a receber os recursos transferidos por estados e União têm imposto dificuldades à celebração de pactos de gestão entre os entes federados que deveriam receber os recursos financeiros para compartilhar a responsabilidade pela prestação da assistência à saúde da população. Também a atribuição de exercerem as atividades de coordenação das atividades, ações e serviços de saúde em seu âmbito federativo.

Além disso, deve-se destacar que “pouco se avançou na efetivação da integralidade e da igualdade, na institucionalização da carreira de gestor ou na influência da sociedade civil e dos conselhos de saúde sobre a formulação de políticas e estratégias do SUS” (PAIM, 2007). A cristalização de distorções na gestão e na prestação da assistência poderá levar à perda da legitimidade do modelo e seu questionamento com a volta de propostas de gerenciamento racionalizadoras, objetivando a redução de custos, ampliando as dificuldades de acesso da população ao sistema, pois, “não será possível seguir expandindo