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O Ideário da Reforma Sanitária Brasileira

O ideário da RSB tinha como ponto modal a compreensão e crítica do significado, extensão e tradução real, na prática, do “binômio saúde-doença” historicamente utilizado no campo da saúde coletiva e nas definições e implementações de políticas governamentais desenvolvidas no setor. Manifestação social, este binômio vinculava-se indelevelmente à questão da democracia.

O ideário da Reforma Sanitária consistia na proposta de um sistema de saúde único, fundamentalmente estatal, sendo o setor privado suplementar àquele, sob controle público, e descentralizado. O que estava em questão era a universalidade da atenção à saúde, superando--se a histórica dicotomia entre assistência médica individual e ações coletivas de saúde.

O que se buscava, com a descentralização, era não só maior racionalidade do sistema de saúde, mas fundamentalmente a valorização da criação de novos espaços institucionais de participação, com poder deliberativo dos segmentos organizados da sociedade, constituindo-se, assim, uma estratégia de ampliar, no espectro social, as oportunidades de acesso ao poder.

As formulações de uma nova e radical concepção deste binômio desenvolveram-se no ambiente acadêmico na década de 70, mais especificamente nos departamentos de medicina preventiva e social e nas escolas de saúde pública.

Partindo do marco conceitual do movimento preventivista que nutria as idéias de Medicina Integral (Comprehensive Medicine) como contraponto e crítica às propostas e práticas da Medicina Preventiva e da Medicina Comunitária, empregadas em diferentes países latino-americanos, inclusive no Brasil, os ideólogos da RSB inspiraram-se, igualmente, nas concepções de Medicina Social desenvolvidas na Europa em meados do século XIX para delimitação do campo de conhecimento e de atuação que embasam essa nova concepção.

A junção destas duas matrizes conceituais (Medicina Integral e Medicina Social) sedimenta os paradigmas que norteariam a elaboração do projeto da RSB. Os elementos sociais e políticos são incorporados como amálgamas indispensáveis, e tornam-se centro e polo irradiador das demais formulações no setor.

A produção teórica desenvolvida no campo da Saúde Coletiva, a partir daí, passou a trabalhar com dois conceitos: determinação social das doenças e processo de trabalho em saúde (TEIXEIRA, 1985). A compreensão de que o binômio saúde-doença em uma sociedade não pode ser explicada exclusivamente pelos componentes biológicos e ecológicos, possibilitava ampliar os horizontes de análise, investigação e intervenção sobre as diferentes realidades, como integrantes dos processos de reprodução social, e, pois, como fenômenos determinados social e historicamente.

O materialismo histórico torna-se o fundamento epistemológico do “objeto” chamado processo saúde/doença, ao mesmo tempo em que se institui como instrumento de transformação racional da realidade. Assim, a categoria central explicativa do processo saúde/doença seria, pelo seu máximo grau de abstração, aquela de “produção e reprodução social”, naturalmente intermediada por outras categorias, quando se trata de especificidades (NOVAES, 1997, p.213).

É neste cenário que os conceitos da “velha Saúde Pública” eram confrontados e questionados, ensejando a medicina social latino-americana a desenvolver uma vertente crítica ao pensamento relativo à saúde pública dominante, como destaca Rodriguez Neto:

Se pelo lado da questão saúde a Medicina Social tinha introduzido novos conceitos e abertos outros campos de intervenção além do prevenir/diagnosticar/curar, quais sejam a determinação social do fenômeno saúde/doença e a organização das práticas, serviços e sistemas de atenção à saúde, pelo ângulo da política, a visão que predominava no movimento era predominantemente reformista, ainda que tendo no horizonte o socialismo (RODRIGUEZ NETO, 1997, p.63).

Esta matriz de pensamento passava a orientar as construções teóricas e as práticas político-sanitárias que, como movimento de democratização da saúde, conduzia as transformações nas relações deste setor com outros setores análogos e, assim, como sua inserção e relação com o estado, a sociedade civil e as instituições públicas.

O processo reformista em seus esforços de inovações teórico-conceituais se fazia acompanhar de desconfianças e receios quanto à possibilidade e capacidade de preencher e superar as lacunas teóricas e as ausências de práticas solidárias no campo social. Aspectos culturais, psicológicos e subjetivos fizeram parte do rol de componentes envolvidos na definição e reconstrução do conceito do significado e extensão da saúde.

Saúde e doença, bem-estar e mal-estar são fenômenos não apenas físicos que se manifestam pelo bom ou mal funcionamento de um órgão, mas ao mesmo tempo possuem uma dimensão psicológica que passa pelo vivenciar e pela emoção de cada indivíduo. São fenômenos que possuem uma dimensão sócio-cultural, coletiva, e outra psicobiologia, individual, que não deveriam ser dicotomizadas. Devem então ser compreendidas enquanto parte do modo de organização da vida cotidiana e da história pessoal de cada um. (VAITSMAN, 1989, p.157-158)

A visão economicista das necessidades humanas é entendida pela autora de forma crítica, pois, ao restringir a concepção de saúde aos efeitos das formas de organização da produção e à distribuição das riquezas em uma sociedade, considera que as relações de classes decorrentes do processo social de produção determinariam as desigualdades nas condições de vida e de saúde, relevando outros fatores também importantes para, em conjunto, formarem as vigas mestras que contribuem para acentuar as distorções e discriminações presentes na atenção à saúde, como cor, gênero, idade, posição social, etc.

Nestes termos, a reforma sanitária brasileira, ao contrário do caso italiano, não se configura como uma esfera de ação preferencial do Estado e, portanto, como uma política de Estado, mas sim como um ato de interesse dos governos. A principal hipótese para explicar esta ocorrência remete ao tema recorrente da fragilidade da participação política em nosso meio, do qual a fraqueza das estruturas partidárias é decorrência e não causa, resultando na rarefação de partidos políticos mais orgânicos e ideológicos (SOUZA, 1976, p. 33-34).

A mediação entre Estado e sociedade flui através de outros mecanismos, como por exemplo, diretamente por determinados segmentos sociais que, representando interesses setoriais, cumprem o papel de mediação frente ao Estado e interferem na formulação e implementação das políticas de governo.

A influência do pensamento marxista no balizamento teórico e programático da RSB destacava a importância do conceito de “determinação” em contraposição ao modelo biomédico prevalente.

Decisiva para a crítica do modelo biomédico de explicação do processo saúde/doença, essa matriz de pensamento identificava a estruturas sociais como determinantes para a produção e desigual distribuição dos riscos sanitários entre as populações (CARVALHO, 1997, p.95).

Mesmo que não desenvolvesse uma análise a respeito da pertinência da teoria da produção socialmente determinada do binômio saúde-doença, com o propósito de orientar as práticas e políticas no setor, o autor acima citado admitia a ampliação de espaços democráticos para a sua redefinição, destacando a importância da concepção gramsciana do Estado ampliado, como fundamento para a intervenção social organizada.