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A DISCIPLINA NA ESCOLA PRIMÁRIA: A FORMAÇÃO DO CIDADÃO

F. A especificação da posição perante os castigos corporais, procurando apurar argumentos a favor e contra.

1.2. A formação contínua

1.2.1. As conferências pedagógicas

A preocupação a que aludimos não era apanágio do século XX e tinha já passado por momentos importantes como a Reforma da Instrução Primária de 1870122, que instituiu as «conferências entre os professores para o aperfeiçoamento dos métodos e modos de ensino, divisão 121 RAMALHO, Albano - "O professorado Primário Português". In Revista Escolar. N°1, Janeiro de 1921, pp. 19-22

122 Capítulo VIII, art. 89° do Decreto de 16 Agosto 1870, publicado no Diário de Governo N° 194, de 31 de Agosto. Esta reforma da

responsabilidade de D. António da Costa foi abolida, pouco depois, por D. António Alves Martins ficando assim adiada a regulamentação das Conferências.

das classes, e maneira de resolver na escola as questões especiais da instrução». Este documento atribuía as responsabilidades do atraso educativo português à falta de escolas, ao número reduzido de alunos que as frequentavam e à irregularidade da sua frequência, ao desleixo dos pais a que acrescia «a falta do aproveitamento causada da carência geral de um professorado competente, da deficiência dos métodos». Neste contexto percebe-se a intenção de colmatar este último problema com a criação das conferências para professores.

No entanto, só com a reforma de Rodrigues Sampaio de 1878 é que as conferências se estabeleceram, de facto, com uma periodicidade anual e a duração de 8 dias. O objecto destas reuniões era «o aperfeiçoamento dos métodos de ensino, os meios de os levara efeito, e todos os assuntos que especialmente disserem respeito à instrução primária»^. Esta lei foi regulamentada por decreto de 28 de Julho de 1881 que pormenorizava o conteúdo das Conferências Pedagógicas a realizar em cada círculo escolar: «o aperfeiçoamento dos métodos, modos e processos de ensino; a organização material e disciplinar das escolas; a estatística e todos os assuntos que especial e directamente disserem respeito ao desenvolvimento da instrução popular»m. Todos os professores

eram obrigados a assistir às conferências, em relação às professoras a sua presença era facultativa mas ficavam obrigadas, caso não comparecessem, a um relatório que incidisse sobre os aspectos tratados nas reuniões.

Instituíam-se, assim, as Conferências Pedagógicas que surgiam como o espaço comum do debate pedagógico, onde os professores teriam oportunidade de aperfeiçoar métodos e modos de ensino, reflectir sobre as divisões de ensino na classe, trocar experiências e abordar outras questões especiais, referentes ao Ensino Primário. A disciplina escolar foi identificada como um destes pontos sobre os quais deveria incidir a actualização contínua dos professores de instrução primária, e não podemos deixar de notar a sua ligação à questão organizativa das escolas, tal como era evidenciado nos programas de Pedagogia apresentados anteriormente.

Pela pesquisa efectuada, pudemos chegar à identificação do período áureo das conferências - a década de 80 do século XIX, até porque os regulamentos posteriores do ensino primário as omitem. Assim, para esse período foram encontradas algumas publicações com as conclusões apresentadas nessas reuniões, embora se deva realçar que muitas vezes essa publicação era efectuada em jornais locais pelo que a escassez de tempo não nos permitiu uma busca mais alargada. Porém, pensamos ser significativo que o tema da disciplina tenha sido um tema abordado em anos

123 Capítulo IX, arts. 58°-60°, Decreto de 2 de Maio 1878 - Reforma de Instrução Primária. Diário de Governo N° 110 de 16 de Maio. 124Regulamento para execução das leis de 2 de Maio de 1878 e 11 de Junho de 1880; Título V, capítulo I. Diário do Governo, N° 180, de

consecutivos, como podemos comprovar pelo quadro que apresentamos de seguida, o que nos pode levar a concluir que este era um problema de grande importância na vida escolar e que levantava reflexões aos professores. Pensamos também ser correcto deduzir que este era um período de alteração do paradigma disciplinar o que provavelmente levaria os docentes, nomeadamente, do ensino primário a debruçarem-se com maior intensidade sobre esta problemática.

Para compreendermos aquilo que era discutido nas conferências e termos um meio de comparação com os manuais escolares, resolvemos seguir os mesmos pontos de análise que tivemos em conta para a abordagem dessa outra fonte.

Quadro 7 - A disciplina escolar nas Conferências Pedagógicas da década de 1880

Data Cidade Temas

1883

Lisboa

Da Organização da escola

c) Escrituração escolar {registo geral de matrícula com local para referência ao comportamento do aluno; reqisto diário da frequência, e nota mensal da aplicação e comportamento dos aluno) 1883

Porto

Utilidade da disciplina no corpo docente do professorado primário. - Quais são os actos por que se afirma? Fará parte dos deveres do professorado primário?

Organização pedagógica das escolas. Sua necessidade e importância. Quais são as bases em que deve assentar?

1884

Lisboa Influência da disciplina na escola. Meios disciplinares. Se o aluno for incorrigível qual deve ser o procedimento do professor?

1884

Porto Disciplina dos alunos dentro e fora da escola: meios disciplinares; moral, prémios, castigos e suas causas; exclusão dos alunos da escola; batalhões escolares; caixas económicas.

1884

Aveiro

Escolas elementares, ou de 1 ° grau, dirigidas por um só professor. Qual o número máximo de alunos que se pode admitir sem prejudicar a disciplina e o aproveitamento destes, em uma escola de um só professor?

Disciplina dos alunos dentro e fora da escola. - Quais são os meios mais convenientes para as estabelecer?

1885 Lisboa

Organização pedagógica do ensino. 1o Que influência tem a disciplina da escola na educação moral e

cívica do aluno? Por que outros meios se poderão fazer na escola essas educações? 1885

Porto Metodologia - Principais métodos em geral, modos e processos de ensino.

1886 Lisboa Que influência tem a disciplina da escola na educação moral e cívica do aluno? Por que outros meios se poderão fazer na escola essas educações?

1887

Castelo Branco

Prémios e castigos

Direitos e deveres dos cidadãos - como deve fazer-se na escola primária o ensino desta disciplina.

1887

Lagos Disciplina escolar - higiene e meios de aplicar

1887

Horta Utilidade da disciplina no corpo docente do professorado primário. Actos por que se afirma a disciplina. Fará parte dos deveres do professorado?

1887

Funchal Qual o melhor sistema disciplinar?

1887

Arganil

Organização pedagógica escolar - importância desta organização

Missão e deveres do professor. - Quais as qualidades que deve possuir para bem exercer o professorado?

1887

Leiria

Que influência têm os edifícios escolares, convenientemente mobilados, na disciplina e ensino dos alunos.

Deverão os castigos corporais ser banidos completamente da escola? - No caso afirmativo - Quais os meios de manter a disciplina escolar, e conseguir a perfeita educação moral das crianças? - No caso negativo, qual a norma por que se devem regular?

1887

Chaves Disciplina na escola e fora dela - Quais as bases em que se deve assentar o regulamento disciplinar? 1887

Portalegre empregar para a realização destas solenidades escolares Meios disciplinares. - Distribuição de prémios, feita anualmente - suas vantagens - meios práticos a 1887

Lisboa Meios disciplinares. - Distribuição de prémios, feita anualmente - suas vantagens - meios práticos a empregar para a realização destas solenidades escolares

I. A forma como a disciplina contribui para a organização da escola

A boa organização, material e pedagógica, da escola era vista como um dos elementos essenciais para que houvesse um sistema disciplinar eficaz. De facto, tal como já foi referido nos manuais de Pedagogia, era necessário ter em conta que as condições materiais da escola, o número de alunos, o zelo e a preparação do professor interferiam de uma forma intensa nos modelos disciplinares que se podiam implementar.

Nota-se, de facto, uma correspondência recíproca entre organização material e pedagógica e disciplina, e vice-versa, e é, muitas das vezes, inserida neste problema que surge a discussão das questões disciplinares. Em várias conferências foi discutido este assunto, afirmando-se com clareza que quando «o número de alunos é grande, e a casa pequena para os exercícios e movimentos das classes, com pouca luz, mal asseada e sem o material preciso para o ensino, a necessidade dos castigos sobe de ponto, e a escola torna-se bárbara» e concluíam que esta má organização das nossas escolas primárias «atrasa a instrução, dificulta a disciplina, e torna o castigo corporal em parte necessário» S25

Fazia-se, assim, um paralelismo entre as más condições das escolas, a má situação em que viviam e trabalhavam os professores e a necessidade da manutenção dos castigos corporais nas escolas, alertando-se para o facto de que mesmo os melhores pedagogistas, enfrentando condições equivalentes, decerto recorreriam aos mesmos meios disciplinares.

A organização da escola passava também pela escrituração, isto é pelo registo permanente dos progressos dos alunos, mas considerava-se que não bastava registar o aproveitamento e a assiduidade, defendendo-se que o comportamento devia também ser alvo de referência nos escritos a que o professor era obrigado, esta seria uma forma de se poder conhecer o «estado higiénico, moral e pedagógico das escolas». Assim, nas Conferências do Porto de 1883, apresentaram-se os modelos para que o professor pudesse, objectivamente, fazer este registo.

Figura 1 - Quadro de Honra para registo dos alunos que se salientassem por aproveitamento, frequência ou

comportamento

LOPES, A.Simões (dir.) (1884). Conferencias Pedagógicas do Porto em 1884. Porto: Typographia do Commercio do Porto. pp. 60-61

QUADRO DE HONRA

ALUMNOS DIGNOS DE LOUVOR

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Figura 2 - Caderno das notas das lições e de comportamento escolar do aluno

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Uma visualização rápida permite-nos verificar que existe também espaço para registo de informações de carácter disciplinar. Na figura 2 podemos salientar o facto de só ser digno de registo o que se refere à distribuição de bons pontos por aproveitamento, comportamento ou frequência regular, isto é, só se registavam as recompensas distribuídas. Os alunos que mais sobressaíssem seriam, possivelmente, inscritos no quadro de honra (figura 1). No entanto, a figura 3, talvez por ser um registo mensal abrangia as sanções positivas e as negativas, isto é, permitia o registo dos castigos e dos bons pontos distribuídos ao longo de cada mês. De salientar é o facto de se distinguir entre castigos morais e corporais, o que nos permite concluir que apesar de se preconizar a sua supressão na lei, nos programas e manuais de Pedagogia, os castigos corporais continuavam a ser aplicados na prática pelos professores.

Vejamos agora de que forma os professores viam as suas funções e as qualidades necessárias para o exercício da sua missão.

A. A relação da disciplina com as funções e qualidades ideais do professor

Tal como temos vindo a referir a importância atribuída ao professor primário era notável: a ele competia «desenvolver gradativamente tenras inteligências, formar corações, alimentando o espírito, (...) dará alma dos pequeninos entes, que lhe forem confiados, todo o aperfeiçoamento de que ela é susceptível» (Porto: 1883, 51). Pelo seu exemplo devia «dirigir e guiar a infância», um exemplo que devia passar pela observância da disciplina que a ele próprio era imposta - ser obediente aos superiores, acatando, respeitando e cumprindo as ordens e os seus deveres nos quais se incluíam as maneiras decentes e convenientes; a pontualidade; a submissão sem servilismo; e valores como a verdade, a confiança; a prudência e a dignidade. O professor devia ainda evitar o abandono das suas funções por tempo prolongado até porque essa situação dificultava o restabelecimento da disciplina sem que se recorresse «a rigorosos castigos, que as mais das vezes, não surtem o efeito que se tem em vista» (Porto: 1883, 53).

Como autoridade «suprema perante a sociedade escolar», uma autoridade intelectual e moral, o professor devia fazer-se respeitar pelo amor e justiça e não pelo medo ou temor. A «prudência e rectidão na justiça que exerce» e a «firmeza de carácter nas decisões» eram características que, segundo as Conferências do Porto de 1884, podiam permitir que fosse prontamente, e de boa vontade, obedecido pelos alunos ainda que devesse ser inflexível e fazer-se obedecer a todo o custo, no caso de desobediência. Para além disto, salientava-se que o progresso e a disciplina das escolas implicavam que o professor, guiando-se pelo amor ao «bem da humanidade e pelo seu aperfeiçoamento», procurasse «tornar o ensino atraente», «regular o trabalho de modo que o menino

esteja sempre entretido e inspirar-lhe o amor à boa ordem e ao bem». Mas a boa disciplina da escola implicaria, ainda, que o professor prevenisse os comportamentos passíveis de merecer castigo o que só poderia acontecer pela atenção e vigilância permanente e, por outro lado, pelo estímulo constante ao estudo e à boa conduta (Porto: 1884,56-57).

Alguns destes pontos são desenvolvidos mais sobejamente nos manuais de Pedagogia o que nos leva a crer que se considerava que eram características que, assimiladas durante a formação inicial, se encontravam agora no campo do «bom senso pedagógico» do professor que se entendia como essencial para o progresso intelectual e disciplinar das escolas (Lisboa: 1887, 266).