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A DISCIPLINA NA ESCOLA PRIMÁRIA: A FORMAÇÃO DO CIDADÃO

2. A DISCIPLINA ESCOLAR: O SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO

2.2. A disciplina na sala de aula

De uma forma geral, podemos considerar a disciplina a base de toda a organização da escola. Uma escola organizada era, na 2a metade do século XIX, uma local silencioso e votado ao estudo e a

disciplina, com os seus meios, permitia estimular os meninos a esse estudo, premiando uns e castigando outros.

«A boa disciplina para a boa economia do tempo»6\ Este era considerado um dos grandes

«princípios de princípios de alta Pedagogia» que se deviam seguir na escola. A boa organização seria uma forma de orientar e regular os trabalhos escolares, rentabilizando o processo de ensino e de aprendizagem, conseguindo mais resultados no menor espaço de tempo possível.

De facto, a falta de ordem, isto é disciplina, na escola era considerado um dos mais graves erros de ensino que se poderia cometer - «É um erro pretender ensinar sem boa ordem». Seria impossível ensinar fosse o que fosse, sem que o professor tivesse estabelecido «uma períeita inteligência entre ele e a classe», isto é, enquanto o conjunto dos alunos não tivesse compreendido a necessidade de um chefe e de regras capazes de manter «a perfeita ordem, que se chama disciplina» para que existisse a necessária atenção, condição essencial para aprendizagem e para a «influência sobre o carácter dos alunos».G2

Mas como se tornava visível na escola a existência de uma boa disciplina?

J. Gaillard, no artigo "Discipline scolaire™, identifica alguns dos pontos pelos quais se poderia constatar a boa disciplina numa escola. Apresenta-nos um conjunto de rotinas que, servindo para garantir a ordem, acabavam por se tornar hábitos de vida: o cumprimento dos horários regulamentares; a apresentação de justificações para as faltas; a entrada calma e ordenada, em fila; a tomada dos lugares na classe; a verificação da limpeza e asseio dos alunos; a revisão da lição do dia anterior... constituíam elementos contributivos para a aquisição de hábitos e do gosto pela ordem.

Este autor identifica também alguns elementos que permitiriam a confirmação da existência de uma boa disciplina na sala de aula: o silêncio durante as lições (não um silêncio imposto pelo terror mas que subsiste como uma espécie de «communication intime entre les élèves et le maître», até

61 Princípios de Alta Pedagogia na escola. In Educação Nacional. Ano VIII, N° 376,4 de Outubro de 1903

62 Erros no Ensino: Erros de disciplina l-Éum erro pretender ensinar sem boa ordem. In O Meu Jornal. Ano II, N° 54, 22 de Outubro de

1916

porque a «immobilité complete, le silence absolu sont tellement incompatibles avec la nature de l'enfance, qu'ils sont évidemment la marque d'une pénible contrainte»); a atitude dos alunos se levantarem quando entrasse alguém estranho à aula, vista como sinal de polidez e expressão de respeito que se relacionava directamente com a inspiração ao amor à bandeira, à Pátria e à família; a manutenção da ordem quando o professor tivesse necessidade de se ausentar da sala {«On reconnaît à cela le bom esprit qui règne dans l'école et la force du sentiment du devoir qui fait que l'observation de la régie devient indépendante de la crainte qu'inspire celui qui commande.»); a transmissão de ordens por simples sinais e obedecidas de imediato pelos alunos, permitindo ao professor manter permanentemente a calma, inspiradora de respeito e de obediência; o imprescindível pedido de licença, também por sinais, para a tomada de palavra ou saída do lugar; o cumprimento das regras básicas da polidez para com os outros, o cumprimento, o tirar o chapéu, não interromper, o tom conveniente ao falar, a delicadeza com os colegas quer na classe quer no recreio; a preservação dos objectos materiais, os cadernos, os livros {«Les enfants prennent ainsi la bonne habitude de conserver ce qui leur appartient et de respecter la propriété d'autri.»); as livres, mas contidas, brincadeiras de recreio, de modo a não magoar os colegas e a serem interrompidas ao primeiro sinal do mestre; a entrada e saída ordenadas da sala no fim das actividades. Tudo isto correspondia à exteriorização de uma boa ordem disciplinar.

No que diz respeito aos meios para atingir estes resultados, começava por salientar que as características do professor podem tornar fácil ou impossível a manutenção da disciplina. Assim, identifica alguns desses meios: «tous les moyens qu'il emploie tendent à lui concilier l'afection et la confiance dês élèves», mas esta afeição e benevolência devia coexistir com a firmeza e a gravidade, através dela o mestre devia inspirar respeito; devia revelar estabilidade e coerência nas atitudes, mostrando-se imparcial {«S'il veut être juste, il faut qu'il soit vigilant, il faut qu'il prévoie et qu'il voie tout, qu'il sache tout, qu'il connaisse tous ses élèves, qu'il penetre, pour ainsi dire, jusqu'au fond de leur coeur»); devia ter como principal virtude a paciência. Por outra lado, o professor devia ter a preocupação de estudar o carácter dos alunos e de os observar constantemente, o que lhe possibilitaria exercer a sua autoridade e agir no desenvolvimento moral das crianças; a vigilância devia surgir como outra preocupação («Le maître vigilant aura toujours de l'ordre et du silence dans sa classe, parce que, constamment acupé de ses élèves, ils les occupera sans cesse»); e, por fim, o exercício da sua influência no carácter dos alunos pelo exemplo das suas atitudes. Este autor considerava ainda que as condições físicas em que se encontrava a escola são determinantes para a concretização de uma boa disciplina: a disposição das classes e das mesas na sala de aula; a

estrutura do mobiliário, a acústica das salas etc., tudo isto poderia influenciar positiva ou negativamente a disciplina escolar.

Como vimos, além da boa organização da escola, as qualidades pessoais e profissionais do professor eram determinantes para a consecução da boa ordem e do progresso dos alunos. Campagne apresenta mesmo algumas regras disciplinares que deviam orientar o professor:

1. «Convencei os alunos de que vos são prezados, e nesse sentido prezai-os, mostrando-lhes afecto útil. 2. Não deis ordem, sem a resolução de a fazer cumprir.

3. Gerai e nutri no ânimo dos meninos sentimento gerai de amor à ordem e ao bem. 4. Sede fiel ao traçado do vosso proceder.

5. Regulai as coisas de forma que o menino esteja sempre utilmente entretido, sem curar de motivos que o dispensem.

6. Sede justa, nada exija em vosso nome; prescrevei obrigações em nome da ordem, da lei e do regulamento.

7. Na escola, como na sociedade, é melhor prevenir que castigar.

8. Bons métodos, boas lições, e acima de tudo delicadas maneiras do professor, são o fundamento da melhor disciplina.

9. Exercei boas regras disciplinares, com os castigos graduados pelas culpas. »M

Em contraposição, o jornal Educação Nacional, na sua rubrica Um Pouco de tudo, apresenta seis proposições com um carácter mais autoritário, retiradas da imprensa pedagógica belga e estabelecidas por um director duma escola normal, adepto de «sistema militar de educação»:

1. «Não falar aos alunos senão com uma fria polidez e satisfazer a sua vaidade de homensinhos chamando-lhes senhores.

2. Uma classe é uma reunião de crianças, cujo desejo é divertir-se à custa do professor. 3. Nunca gracejeis com os vossos discípulos.

4. Estai sempre graves e falai com um tom magistral, autoritário mesmo. 5. Nunca adieis uma punição; vale mais passar por injusto do que por fraco. 6. Tende em consideração os velhos métodos de nosso país.»65

Estas duas referências permitem-nos constatar a divergência de posições suscitada pelos modelos disciplinares: um preconiza a implementação de um sistema baseado na afeição e na justiça, enquanto o outro sugere processos autoritários, rigorosos e até injustos defendendo a manutenção dos velhos processos pedagógicos nos quais se incluiriam os castigos físicos.

64 CAMPAGNE, E. M. Diccionário Universal de Educação e Ensino; págs. 361-362

65 Um pouco de tudo. In Educação Nacional. Ano VI, N° 311, 7 de Setembro de 1902. É importante referir que neste periódico vão

surgindo algumas indicações que nos levam a crer que o tema "Disciplina escolar" estava na ordem do dia um pouco por toda a Europa, nomeadamente, na Bélgica, Suiça e Inglaterra.