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OS CASTIGOS CORPORAIS NA IMPRENSA PEDAGÓGICA: O CASO DA PALMATÓRIA

1. Modelos disciplinares divergentes

Após a análise das mais variadas fontes, desde os regulamentos do ensino primário, até aos programas do ensino normal, manuais de pedagogia, conferências e congressos pedagógicos, sem esquecer o contributo essencial da imprensa de educação e ensino, ficamos com a necessidade de clarificar um ponto que foi ficando apenas implícito neste texto - ele diz respeito aos modelos disciplinares que eram preconizados. Fomos por vezes mostrando que havia uma tendência para a alteração do chamado modelo tradicional de disciplina, procurando-se impor um outro que, pondo de lado o autoritarismo do professor e a obediência cega do aluno, pretendia estabelecer um regime de liberdade regulada, de modo a que o aluno aprendesse a dirigir-se a si próprio. Assim, parece-nos certo afirmar que a grande divergência se encontrava ao nível do que se defendia em teoria e aquilo que se considerava possível de implementar, teoria e prática correspondem então a dois modelos distintos mas que acabam por se entrecruzar devido à dificuldade de alteração dos métodos de ensino enraizados nas escolas portuguesas.

Vejamos algumas diferenças entre estes modelos.

O pensamento pedagógico tradicional justifica a punição pela necessidade de moralizar a criança, através da exortação ao bem e do exemplo, mas também, quando isto não resultasse, o mestre deveria procurar convencer e, quando as circunstâncias o obrigassem, deveria constranger; e, pela necessidade de garantir a ordem na classe e favorecer um clima propício ao estudo, entendendo- se, como já vimos, que a transmissão de conhecimentos requer calma e docilidade.

A punição seria, neste contexto, uma arma para combater a dispersão e a agitação dos alunos. Esta concepção estritamente repressiva manteve-se dominante até ao fim do século XIX e resumia-se na necessidade de reprimir os desafios à autoridade e as fugas à regra prescrita. Sob este método disciplinar as sanções eram, por norma, bastante rigorosas e até severas - eram vulgares certos castigos, que no final desse século e inícios do seguinte, passaram a ser reprovados por se considerarem humilhantes: as chibatadas e outros castigos corporais de que certos mestres abusavam porque havia uma grande liberdade de acção neste capítulo da vida escolar.

Entretanto, nesse período de transição, a disciplina começou cada vez mais a ser alvo da regulamentação do Estado de modo a combater as transgressões e os abusos dos professores. A retenção na escola, com encargos de tarefa, a privação da saída, os exercícios dobrados, tomaram o lugar dos castigos físicos que anteriormente se aplicavam, excluindo-se, ou pelo menos contestando- se, a palmatória, o estar de joelhos e as orelhas de burro. Esta disciplina era considerada mais humana mas faltava ainda que os professores a aceitassem e a passassem a aplicar de uma forma realmente paternal e não com o rigor exigido a uma disciplina de cariz militar. Era imprescindível que

os professores compreendessem que só através de um «trato brando, equitativo e paterna/»141, não só

com os discípulos mas também com as famílias, poderia atingir o coração das crianças e nele marcar indelevelmente as ideias de ordem e de obediência necessária.

Com a divulgação dos princípios pedagógicos veiculados pelo movimento da Escola Nova, a sanção deixa de ser vista numa perspectiva normalizadora e dirige-se mais no sentido de fazer compreender ao aluno que a transgressão é uma ruptura do contrato e que a falta é menos um acto de desobediência do que a violação do sentido de solidariedade a que estão submetidos os membros do grupo. Neste contexto, a sanção não serviria para submeter o indivíduo à obediência, mas para o fazer sofrer as consequências sociais dos seus actos, pelo que a coerção deveria ser abolida.

O verdadeiro «espírito de disciplina» que se pretendia implementar «não consiste numa obediência cega, passiva, à vontade de outrem» mas numa «obediência racionada» e activa, às inclinações de alguém que encarnava uma vontade colectiva. O professor passaria a ser o «o representante duma colectividade», qualidade que lhe era delegada pelo poder legítimo, a quem todas as vontades individuais se deviam livremente submeter. Este novo espírito preconizava um novo tipo de liberdade, cujos limites eram estabelecidos pela liberdade dos outros, de modo que se afirmava que «os que sabem obedecer conquistam, pela obediência, a própria liberdade» e este seria o meio para se realizar a ordem social. Na escola o discípulo devia obedecer para realizar a sua aprendizagem e para conseguir a sua educação.142

Assim, compreendemos que a aceitação total deste último modelo implicaria por parte dos professores uma alteração da sua postura dentro da sala de aula, procurando tornar o ensino atraente, apresentando-se como um companheiro, prevenindo mais do que reprimindo. Mas esta mudança incluiria, necessariamente, que em caso de necessidade de punição se adoptassem alternativas aos castigos físicos.

E. Prairat entendia no seu livro La sanction en éducation (2003) que uma prática só se torna, verdadeiramente, obsoleta quando se toma consciência da sua ineficácia. Ora, o que nos parece é que uma grande maioria dos professores primários não se tinham consciencializado das desvantagens do uso dos castigos corporais na educação das crianças e, talvez seja esta, a justificação para que este processo disciplinar se tenha mantido por tanto tempo nas nossas escolas.

Num artigo publicado na coluna Pedagogia da revista A Escola Primária, considerava-se que «para que uma escola produza os seus resultados, de forma alguma pode ser posta de parte essa disciplina que alguns chamam disciplina de ferro» salientando que naquele tempo se havia caído no 141 CAMPAGNE, E. M. Diccionário Universal de Educação e Ensino; pp. 361-362

extremo oposto «de modo que nos grandes centros, quem hoje entra em determinadas escolas, pasma da diferença entre o que era há uns vinte ou trinta anos e o que é hoje». Para o autor o abandono daquele modelo disciplinar era não só a causa da decadência das escolas como da própria sociedade e, apesar de reconhecer a existência de exageros, acrescenta que, enquanto antes «o professor trabalhava menos e os resultados eram melhores, porque os alunos lhe prestavam mais atenção», agora, que se pretendia «fazer um ensino mais à moderna, o professor cansa-se e torna a cansar-se e os resultados não correspondem aos seus esforços» e apontava como causa o facto de o aluno já não temer os castigos do professor perante a falta de atenção. O artigo é concluído com uma frase que nos parece relevante:

«No estado em que ele [o aluno] hoje entra para a escola, isto é, com uma educação de liberdade e com os restritos meios de que o professor pode lançar mão, para que não seja apelidado de «tirano», por aqueles que estão bem longe de conhecer o que são certos «meninos», a quem alguns mais piegas querem reconhecer todos os «direitos», só podemos dizer, que as mais das vezes é perdida a maior parte do trabalho do professor.»143

O que a análise deste artigo nos permite concluir é que a relutância em aceitar, e aplicar, as novas propostas era muita porque se considerava que não eram capazes de apresentar os resultados que se obtinha com a velha disciplina e que faziam com que se perdessem os esforços do professor.

É neste campo, entre o que era proposto pelas teorias pedagógicas e aquilo que os professores estavam dispostos a aceitar e aplicar na prática, que se vai desenrolar este último capítulo.