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A DISCIPLINA NA ESCOLA PRIMÁRIA: A FORMAÇÃO DO CIDADÃO

B. A sua relação com os deveres do aluno;

No que diz respeito aos deveres do alunos e seguindo apenas a orientação destes manuais poderemos verificar dois momentos divergentes: por um lado, aquele que nos é apresentado pelo manual de F. de Castro Freire e J. Freire de Macedo (1868) e, por outro, o que nos é apresentado por L. Chasteau (1902). O primeiro salienta-nos a docilidade, a submissão e o cumprimento exacto das suas obrigações, retribuindo sempre «respostas respeitosas e delicadas às observações que o mestre lhes faz ou acerca da sua conduta ou do trabalho que fizeram ou deviam fazer». (Freire: 1868, 309) Mas estes autores não esclarecem a qualidade desta submissão. No entanto, o segundo salientava que para que haja educação a criança não devia ser «instrumento passivo» mas ser obediente, devia restringir a sua liberdade, adquirir bons hábitos mas sem «ser forçada, submetendo-se passivamente ao jugo duma vontade imposta», devendo «obedecer voluntariamente». (Chasteau: 1902,10)

Deve reforçar-se esta ideia de que todo o aluno devia respeito e obediência aos seus educadores, apesar das diferentes posições em relação à questão.

Como nota devemos referir que sendo estes manuais dirigidos à formação e preparação pedagógica dos futuros professores, este tema dos deveres dos alunos não é muito desenvolvido. No entanto, serve para compreendermos que a organização escolar, passando pela estruturação do espaço físico e relacional120, do tempo e das actividades, se definia também por posturas pre-

determinadas quer para o professor quer para os discípulos.

Após estas indicações podemos constatar que a disciplina escolar não era uma problemática isolada, não se limitava à aplicação de sanções, fossem elas as recompensas ou os castigos, mas partia de um enquadramento e de uma contextualização no espaço, no tempo e no relacionamento dos indivíduos na medida em que o seu sucesso estava dependente do estabelecimento prático de um conjunto de preceitos teóricos que já referimos e que seriam pré-requisitos para a implementação de um sistema disciplinar eficaz.

Vejamos agora o que preconizavam estes manuais de habilitação no que diz respeito em concreto à questão disciplinar.

II. Conceito e objectivos da disciplina

De uma forma geral todos os manuais parecem ver a disciplina como um conjunto de preceitos e de meios destinados a garantir a ordem, a boa convivência e o progresso do ensino. É neste sentido que se orientam as diferentes referências:

• «conjunto dos preceitos que se devem observar na escola para que a ordem, harmonia e regularidade do ensino não sofram a/íeração»;(Affreixo:1875,30)

• «conjunto de meios destinados a manter na escola a ordem, harmonia entre os alunos e regularidade do ensino»; (Baganha:1878,17)

• «conjunto de meios bem coordenados para garantir os resultados da educação e instrução», estes seriam meios que permitiriam agir sobre a índole; (Chasteau: 1902, 311)

• «conjunto de meios que servem para manter a ordem na escola» e que se tornavam visíveis, exteriormente, pela aplicação da inteligência dos alunos aos trabalhos escolares, pela boa vontade em cooperar com o professor, pelo respeito à autoridade do professor e pela adaptação livre às indicações superiores. (Leitão: 1914,48)

120 Com espaço relacional estamos a referir-nos à distribuição dos alunos pela sala que como vimos anteriormente implicava a sua

classificação prévia no sentido de determinar a melhor localização de cada um para garantir a existência de relações entre os diferentes alunos e entre estes e o professor. Esta noção aproxima-nos do quadriculamento, referido por M. Foucault e explicitado no capítulo I.

Fica assim esclarecido que para a Pedagogia a disciplina escolar passava por um somatório de processos cuja função era garantir a ordem na sala de aula e na escola. Os seus objectivos estavam vocacionados para a manutenção na escola de uma profunda organização, tornando-a um espaço silencioso e de estudo, e, para estimular os discípulos, premiavam-se uns e castigavam-se outros. Mas também é feita a alusão à profunda influência que os mecanismos disciplinares tinham na educação moral porque habituava as crianças «às afeições duradoiras e desinteressadas» e as acostumava à divisão racional do tempo, uma vez que supõe regularidade nos trabalhos. Contudo, estes meios produzem efeitos não só ao nível intelectual, pelo desenvolvimento das faculdades intelectuais ao habituar à aquisição constante de novos conhecimentos, como proporcionam a educação física porque conservavam as forças do corpo pela coordenação de movimentos.

Por outro lado, a disciplina era apresentada como «indispensável ao viver na família e na sociedade» (Baganha:1878, 18), na medida em que fixava as relações entre os indivíduos, ao estabelecer deveres e obrigações, proporcionando também a boa ordem social.

António Leitão contestava esta ordem que defende o silêncio e a obediência das crianças na escola levantando uma questão que se tornou marcante no final do século XIX e inícios do século XX: «que importância poderá ter esta espécie de docilidade infantil, quasi obediência cega, para o bom andamento da escola?»

Este questionamento não punha em causa nem a importância da disciplina na escola, nem os objectivos que ela pretendia atingir - a atenção do aluno; a aplicação da inteligência; a apreensão mais pronta das explicações e, consequente, aquisição de mais conhecimentos. A dúvida incidia, fundamentalmente, sobre o tipo de aluno que se pretendia obter. O autor acrescentava que estes propósitos poderiam ser atingidos sem que o aluno se habituasse a «ser unicamente mandado, mas conservando sempre a sua inteira liberdade», a criança respeitadora «educa os seus bons sentimentos», podendo até «modificar o carácter e adquirir hábitos de ordem altamente apreciáveis sob o ponto de vista social e do cumprimento das leis» (Leitão: 1914,49).

Defendendo-se uma autoridade imposta pelo professor ou uma obediência consentida pelo aluno e respeitadora da sua liberdade, parece certa a indispensabilidade dos preceitos disciplinares na escola. Mas quais os processos possíveis para estabelecer qualquer um destes regimes de disciplina na escola?

III. Meios de impor a disciplina

Vejamos agora quais os métodos preconizados pelos manuais para impor a disciplina.

António Leitão refere que estes métodos consistem nos «meios tendentes a prevenir qualquer movimento de desordem» (Leitão:1914, 51), enquanto que L. Chasteau (1902) explica que dependem não só do conceito de homem prevalecente numa dada sociedade e num dado momento, mas que também dependem das características pessoais de cada indivíduo.

A questão do exemplo volta a ser referida quando F. de Castro Freire e J. Freire de Macedo (1868) sugeriam, numa das cartas que compõe o seu manual, que acompanhar a distribuição de prémios aos alunos com «exemplos adequadamente tirados dos livros sagrados» daria um «certo cunho de autoridade à disciplina escolar, robustecendo-a e captando o respeito assim dos alunos, como das suas famílias». Contudo, o exemplo devia ser dado também pela actuação do professor e pelo aproveitamento das ocasiões para generalizar os conselhos - da «falta de um só, tirar-se-á ocasião para moralizar para todos» habituando-se «os meninos a lamentar entre si o procedimento culpável, perdendo os desejos de imitá-lo».

Para além do exemplo, salientavam a necessidade de «meios para corrigir os alunos» e para «convencer os meninos movendo-lhes o coração e a razão para (...) torná-los submissos»; o «constante louvor e recompensa da docilidade»; a publicitação de uma lista dos alunos premiados («meio disciplinar sobremaneira vantajoso»); e, o recurso, em último caso, aos castigos. Este manual defendia que o meio disciplinar a valorizar seria a prevenção.

Tanto José Maria da Graça Affreixo (1875) como D. R. Annes Baganha dividiam estes meios em gerais, «os que devem estar previstos no regulamento escolar e que se aplicam sem modificação» e particulares, aqueles que «se empregam nos casos inesperados e em que a lei foi deficiente». Entre os primeiros eram identificados a afeição que favorece o «ascendente moral do professor» e tem como vantagens «a regularidade na disposição e no tratamento, o cuidado perseverante nas próprias acções, e a força intelectual ou moral que faz subordinar todas as tendências ao fim proposto da educação de infância»; o apelo à razão no sentido de, por um lado, «persuadir o aluno do que é bom ou mau, e por conseguinte do prémio ou castigo merecido por suas acções» e, por outro, conseguir uma obediência proveniente, não da discussão, mas da «convicção intima que deve ter, de que o professor é justo e não o enganará nunca»; e a emulação que é vista como o «sentimento ou desejo de nos tornarmos iguais ou superiores ao nosso semelhante em dotes intelectuais e mesmo físicos» (Baganha: 1878,19) mas utilizada com o maior cuidado para evitar o crescimento do «orgulho e a origem de fortes rivalidades, de invejas e de ódios».

Quanto aos segundos - os meios particulares - Affreixo considerava que o professor os devia empregar «em harmonia com a justiça e a gravidade dos casos especiais que tenha de julgar», pois como dependiam dos casos especiais podiam dar origem a injustiças e «só um professor inteligente e bondoso os pode empregar».

L Chasteau apresentava o sistema das reacções naturais de Herbert Spencer. Este sistema defendia que as sanções se relacionavam directamente com os deveres e as obrigações, permitindo que as crianças as compreendessem como recompensa pelo seu cumprimento ou castigo pela sua infracção. Esclarece que, para Spencer, seria a própria natureza a ensinar a criança e a regular os seus movimentos, fazendo-a adquirir a noção da relação entre a causa e o efeito. No entanto, Chasteau considerava que este não era um método apropriado para garantir na escola a disciplina e preconizava que o melhor sistema disciplinar seria o preventivo e o que apelasse à razão e ao coração com doçura; defendia ainda o uso da emulação mas insistia que as ordens dadas deviam ser obedecidas prontamente, assegurando-se a autoridade do professor.

Entretanto, este sistema preventivo era esclarecido no manual de António Leitão (1914) que indicava alguns dos seus pontos essenciais: a necessidade de implementar a «cultura da atenção» e a vigilância constante; a sucessão regulada de exercícios e sua distribuição de acordo com a disposição do aluno; o interesse das lições, a variedade dos assuntos e o modo de apresentação. O autor afirmava que, só quando a prevenção falhasse, seria necessária a aplicação de penas disciplinares. Por outro lado, continuava a valorizar a utilização da emulação como forma de regular disciplinarmente a sala de aula e controlar os alunos.

Estas especificações dos meios disciplinares não deixam de lado os meios de incentivo e repressão de acções, atitudes e comportamentos, é nestes que se enquadram os prémios e os castigos, tal como já podemos verificar no 2o capítulo.