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A DISCIPLINA NA ESCOLA PRIMÁRIA: A FORMAÇÃO DO CIDADÃO

2. A DISCIPLINA ESCOLAR: O SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO

2.1. As funções da disciplina escolar: uma educação da vontade

Educar moral ou civicamente, tal como foi apresentado anteriormente, implica dominar e submeter uma vontade que ainda não conhece regras. A criança pequena não tem ainda noção dos limites e das consequências dos seus actos e, portanto, torna-se necessário que desde muito cedo se proceda de modo a que ela aprenda a controlar os seus impulsos.

J. Pereira Dias, respondendo ao Plebiscito sobre o uso da palmatória, promovido em 1896 pela Revista das Escolas, fazia a seguinte afirmação que nos sintetiza a importância da disciplina escolar, tal como era entendida:

«A disciplina é necessária na escola, porque faz manter a ordem, inspira o gosto à obediência, torna mais dóceis os jovens educandos, prepara-os para serem bons cidadãos, obedientes às leis, respeitadores dos direitos de cada um, e justos nas suas determinações e resoluções para com os semelhantes».'19

Daqui se pode depreender que existe uma relação entre a formação moral e cívica da criança e a existência da própria disciplina, sendo esta vista como um meio para atingir a primeira.

A noção de disciplina surge-nos, assim, como um dos meios para proceder à educação integral do aluno, desígnio fundamental da escola primária. Educar, por seu lado, implica mais do que dotar a criança de um determinado e sólido capital de conhecimentos, passa por «criar um método de trabalho, uma orientação, uma consciência de tudo que diz e faz, estimular-lhe o gosto pela actividade, desenvolvera vontade e a personalidade, torná-la um carácter a fim de que harmonize as suas acções com o seu pensar, canalizar-lhe ou desenvolver-lhe o exercício duma aptidão, duma inclinação, e, até

dum instinto, ou promover-lhe a inibição doutros instintos, cultivar-lhe um ideal»50. Estas palavras de

Adolfo Lima permitem-nos estabelecer uma relação directa entre a missão educadora e a vertente disciplinadora da escola. Realmente, a aquisição de métodos de trabalho, o estímulo da vontade e da consciência, a formação do carácter e a inibição de certos instintos e promoção de outros, faz-nos aceder a um nível de acção que só se pode assimilar pela persistência da acção do educador. A educação não pode nem deve ser entendida sem a disciplina e vice-versa, ambos os conceitos estão intimamente ligados, mas aliam-se, por outro lado, a um conjunto de noções que acabam por desembocar na necessidade de formar cívica e moralmente e de preparar para a futura inserção social, só a disciplinação feita desde cedo, na família, e depois continuada na escola poderia dar esses frutos.

Segundo Ferreira Deusdado, a disciplina seria a condição para existir educação, sendo esta «a arte de bem dirigiras crianças» que funciona como um meio «moral que afasta as más influências do meio exterior»5\ Não se pode, portanto, educar sem regras e normas a cumprir, pois essas normas

permitirão à criança resistir às más influências externas e aos impulsos internos. Esta acção exige da parte do educador uma acção contínua e coerente, todos os dias, a todo o momento e a propósito de qualquer situação.

Aos 3 anos de idade, a insubordinação, a má vontade, a insolência, a impaciência e as queixas são características típicas das crianças. Mas, segundo Virgínia de Castro e Almeida52, se

estas atitudes receberem a indiferença dos pais, se não forem combatidas, as crianças tornar-se-ão, aos 10 anos, dissimuladas, arrogantes e manhosas, passando a ser classificadas de mal educadas e procurando furtar-se, sempre que possível, à vigilância, o que as leva à indisciplina e à recusa da autoridade.

Deste modo, tornava-se imperativo que desde cedo a criança adquirisse certos princípios e hábitos que lhe permitissem compreender o lugar que ocupa e a forma adequada de se comportar... era preciso discipliná-la. Em 1873, João José de Sousa Teles53 afirmava que era aos pais que

competia a tarefa inicial e contínua de «desenvolver e aperfeiçoar incessantemente as faculdades da alma e do corpo, até que possa cumprir os seus deveres», e que o deviam fazer empregando «todos os meios ao seu alcance, para que os filhos (...) cheguem no mais curto espaço de tempo, e pelo emprego de processos razoáveis, amenos, e repassados de amor e ternura ao estado de perfeição

50 LIMA, Adolfo. Educar..., In Educação. Revista Quinzenal de Pedagogia. Ano I (1a série), N°6,31 de Março de 1913, pp. 61-63 51 DEUSDADO, M. Ferreira (1995,1a edição 1909). Educadores Portugueses. Porto: Lello § Irmão, Ed., pp. 232-234

52 ALMEIDA, Virgínia de castro e (1933). Crianças Mal Educadas; Lisboa: Livraria Clássica Editora. A autora modificou e adaptou a obra

de Fernand Nicolay "Les Enfants Mal Elevés"

53 TELES, João José de Sousa (1873). Ensino Intuitivo: livro destinado às mães e pães de família e às professoras de instrução primária.

intelectual e moral, que constitui o homem, tal qual deve ser, tal qual Deus quer que ele seja, tal qual a sociedade bem organizada o requer». (Teles: 1873,10)

Assim, se é necessário proceder a esse aperfeiçoamento constante, torna-se vital que a família aceda a um certo número de processos que permitam conseguir esse desígnio de uma forma rápida.

Por seu lado, a escola é vista como «uma sociedade em miniatura» em que os alunos devem «obedecer e subordinar-se às mesmas praxes que os hão-de dirigir, quando forem arremessados para esse turbilhão da vida, onde se vão encontrar em combate aberto e franco com todas as paixões, vícios e virtudes». Assim, ao professor se destina a missão de «preparar os seus alunos para uma perfeita adaptação à ordem social que se achar estabelecida».54

Esta preparação passava pela educação do carácter no intuito de se poder «modificar tendências ou orientar num determinado sentido» e a acção do educador devia «exercer-se desenvolvendo as qualidades inatas boas da criança, tentando corrigir os defeitos adquiridos, aconselhando e apelando para a sua consciência moral», procurando «incutir-lhe no espírito o valor social da dignidade moral».55

A disciplina deve então ser entendida numa perspectiva de educação integral e de direcção moral das condutas. Ela constitui «l'ensemble dês régies et dês influences au mayen desquelles on peut governer les esprits et former les caracteres»55, podendo ser exercida por dois métodos distintos:

o autoritário, que se impõe do exterior através da implementação de regras indiscutíveis e que se baseia na total autoridade e direito do mestre; e o liberal, proveniente do interior, que procura fazer-se compreender mais do que obedecer-se, baseado na persuasão; a regra passa a ser reconhecida e o aluno submete-se livremente a ela, tem em vista a preparação de um indivíduo capaz de se governar a si próprio. Assim, do ponto de vista da formação do sujeito, o melhor sistema disciplinar seria aquele que o ajudasse a aprender a controlar-se, a reflectir, que o impulsionasse para o trabalho livre e espontâneo, não se baseando em recompensas e punições, mas na percepção da existência de consequências naturais dos seus actos através da experiência do bem e do mal que faz a si próprio.

A disciplina serve, assim, a educação moral na medida em que procura prevenir e reprimir de forma directa as tendências viciosas da criança, dirigindo-a para o bem. No entanto, ela pretende excitar a consciência moral levando-a a adoptar regras gerais de comportamento, suscitando-lhe a ideia do dever e, por outro lado, procurando dirigir e orientar a vontade. Esta, por seu lado, é

54 A Disciplina Escolar II. In O Ensino. Ano III, N° 8,30 Abril de 1887, p. 114

55 CORDEIRO, José M. Educação do Carácter. In Educação. Revista Quinzenal de Pedagogia. Ano I, N° 17, 1a série, 15 de Setembro de

1913, p. 199-201

entendida como a «faculdade de se fazer o que se quer», designando «o poder que tem a alma de se determinar com consciência e reflexão, espontânea e livremente, a uma acção preferida»57, de modo a

que a criança perceba que nem sempre pode realizar aquilo que a sua vontade determina, submetendo-a à lei do dever e da necessidade. O livre exercício da vontade não passa, então, de uma liberdade regulada que «supõe o esforço, o império sobre si mesmo», a vontade torna-se assim um acto reflectido e consciente. A educação da vontade, tal com a moral, exige do educador uma vigilância constante de todos os movimentos da criança, de modo a ajudá-la a cada momento a reprimir os instintos e substituindo-os por esses actos produzidos pela reflexão que se devem tornar hábitos. Aqui apresenta-se a utilidade da disciplina pela introdução de mecanismos que permitem a vigilância, a repressão de maus hábitos e o suscitar de hábitos bons.

A disciplina é, portanto, uma educação da vontade: «previne ou reprime os maus procedimentos e tende a formar vontades rectas, caracteres enérgicos, que dispensam o auxílio alheio»58. Enquanto que o ideal daquela educação «consiste numa disciplina bem regrada, que, sem

descurara vigilância necessária, outorgue, todavia, às crianças as liberdades permitidas».59

João da Silva Correia realçava, em 1924, na Revista Escolar, o papel da disciplina escolar na educação da vontade moral ao considerar que este processo devia ser feito através de sensações que pudessem contrariar as inclinações do aluno e que procurassem desenvolver características como a perseverança, incutindo o hábito de levar as coisas até ao fim; ou do domínio de si mesmo, uma vez que o professor habituando os alunos a «estarem quietos e atentos, e a terem boas maneiras nas aulas, cria neles uma disciplina interna permanente» e afirma que «os que aprendem a dominar-se e a dirigir-se na escola são na vida os cidadãos que constituem a opinião pública esclarecida». Conclui que um aluno, ao deixar a escola, «deve ter a vontade suficientemente forte para não recuar perante nenhuma luta (...) suficientemente boa para cumprir virilmente em todas as circunstâncias da vida os seus deveres para consigo e para com os outros».60

Associada como já vimos à noção de aprender e à aquisição de hábitos, a disciplina é encarada quer como o conjunto de regras que regulam a vida da escola, as relações entre os professores e os alunos e os alunos entre si, quer como os meios utilizados para fazer cumprir essas normas.

A disciplina escolar consistiria, assim, num conjunto de procedimentos práticos destinados a assegurar a boa ordem dentro da escola, a promover a autoridade do mestre, a garantir o eficaz 57 COMPAYRÉ, Gabriel. A Vontade, a Liberdade e os hábitos. In Revista de Educação e Ensino. Ano IX, 1894, pp. 359-363

58 COMPAYRÉ, Gabriel. As recompensas e os castigos. In Revista de Educação e Ensino. Ano XI, 1896, pp. 493-506 59A educação da vontade. In Federação escolar. Ano III, N° 149,28 de Julho de 1889, p. 1

desenvolvimento das tarefas escolares e a permitir corrigir defeitos e desenvolver qualidades. Eram pois estas as funções da disciplina na escola e na formação do indivíduo.