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A primeira constituição a tratar expressamente sobre os direitos indígenas foi a Constituição Federal de 1934, na qual se consagrou a competência legislativa exclusiva da União para tratar sobre os direitos dos índios57 e se reconheceu o direito de tais minorias, inclusive tornando inalienáveis as terras por eles ocupadas. Veja-se a redação do dispositivo acerca dos direitos territoriais: Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.

Pontes de Miranda assim interpreta o dispositivo:

No art. 129, [...] respeita-se a posse do silvícola, posse a que ainda se exige a localização permanente. O juiz que conhecer de alguma questão de terras deve aplicar o art. 129, desde que os pressupostos estejam provados pelo silvícola, ou conste dos autos, ainda que alguma das partes ou terceiro exiba título de domínio. Desde que há a posse e localização permanente, a terra é do nativo, porque assim o quis a Constituição, e qualquer alienação de terras por parte de silvícolas ou em que se achem, permanentemente localizados e com posse, os silvícolas, é nula58. (Grifo nosso)

Posteriormente, a Constituição de 1937 consagrou, nos mesmos termos da Constituição anterior, o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, salvo pequenas alterações textuais, in verbis:

Art 154 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.

56 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24 de fevereiro de 1891.

57 Art. 5° - Compete privativamente à União: [...] XIX – Legislar sobre: [...] m) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.

58 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Apud: CUNHA, op. cit. 1987. p. 84-85.

Por sua vez, a Constituição de 1946, em seu artigo 216, positivou tanto a competência legislativa exclusiva sobre direito indígena59, quanto o reconhecimento aos direitos territoriais dos índios:

Art. 216 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.

Em que pesem as diferenças textuais, as primeiras constituições que positivam os direitos territoriais indígenas carregam uma evidente identidade normativa: trazem em seu bojo o reconhecimento das territorialidades indígenas, mas tão só das terras onde permanentemente se localizam, e o dever de respeito a elas.

Cumpre observar, contudo, que o reconhecimento de tais direitos pelos textos constitucionais não engendrou uma significativa mudança das históricas relações de opressão em que se encontravam as minorias indígenas, até mesmo porque tais mandamentos constitucionais, por si mesmos, não têm o condão de modificar situações tão complexas de opressão e violação de direitos. Era imprescindível, desta forma, que o reconhecimento constitucional agisse como propulsor da reformulação dos instrumentos de atuação do Estado, bem como do desenvolvimento de novas teorias e práticas que fossem aptas a reorientar as relações e práticas indigenistas.

Tal concretização dos comandos constitucionais relativos às terras indígenas não se efetivou, no entanto, em qualquer das Constituições anteriormente citadas. O Estado e seu aparato legal e institucional para a tutela das minorias indígenas continuou semelhante ao existente na Constituição de 1891, na qual os direitos indígenas foram ausentes. Destarte, a atuação do SPI como negociador de terras indígenas junto aos governos estaduais e municipais, que as apropriavam a título de devolutas, persistiu, até os anos 6060, como a principal, praticamente única61, concretização da política de proteção territorial das terras indígenas pelo Estado brasileiro.

A Constituição Federal de 1967 consagrou as conquistas alcançadas pelos povos indígenas no texto das Constituições anteriores e, ainda, avançou em alguns

59 Art 5º - Compete à União: [...] XV - legislar sobre: [...] r) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.

60 ARAÚJO, Ana Valéria; et all. Povos indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. p. 27.

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A criação do Parque indígena do Xingu foi, provavelmente, uma das únicas políticas de demarcação de terras, até a década de 60, que refugia à rotineira prática de se demarcar extensões diminutas de terras e, assim, liberar o entorno de tais “lotes” para que os governos pudessem titular. O Parque Indígena do Xingu foi a primeira demarcação pensada com a finalidade de garantir a reprodução sócio-cultural dos indígenas. Cf. ARAÚJO et all. op. cit., p. 28-29.

pontos: estabeleceu as terras indígenas como propriedade da União62 e referiu-se expressamente ao usufruto exclusivo indígena em tais sortes de terra. Assim redigiu-se o dispositivo sobre os direitos territoriais indígenas:

Art 186 - É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

Em 1969, uma emenda constitucional, de tamanha compleição que é reconhecida por grande parte da doutrina jurídica como uma nova constituição, manteve a competência legislativa exclusiva da União e as terras indígenas como bens desta. Inovou, no entanto, ao ampliar a proteção constitucional dos direitos territoriais indígenas. Veja-se a redação do texto constitucional acerca da matéria:

Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes.

§ 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.

§ 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.

O dispositivo constitucional em questão instituiu uma proteção nunca antes vista no tocante aos direitos indígenas, mormente na norma de seu parágrafo primeiro, cujos termos contrariaram fortes interesses econômicos, afinal, por meio de tal norma, podia-se desconstituir a usurpação de territórios indígenas ocorrida ao longo dos séculos anteriores.

Na década de 60, além das modificações trazidas pelos novos textos constitucionais, destaca-se a extinção do SPI e a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

A extinção do SPI está ligada a existência de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigava acusações de genocídio de índios, corrupção e ineficiência administrativa envolvendo um grande número de servidores desta agência indigenista. Como resultado dessa CPI, pode citar que mais de cem servidores do órgão foram punidos com demissão ou suspensão, incluindo-se em tal número ex-diretores da Agência.

Segundo Oliveira e Freire:

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Criada para continuar o exercício da tutela do Estado sobre os índios, a FUNAI tem os seus princípios de ação baseados no mesmo paradoxo fundador do SPI: o ‘respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais’ associado à ‘aculturação espontânea do índio’ e à promoção da ‘educação de base apropriada do índio visando sua progressiva integração na sociedade nacional’. Na prática, tal como o SPI, o respeito à cultura indígena está subordinado à necessidade de integração e o estímulo à mudança (aculturação) como política prevalece63.

Uma modificação tão somente formal da agência indigenista é explicitada também por Araújo, segundo a qual a “FUNAI ergueu-se sobre os escombros do SPI, aproveitando inclusive sua estrutura de pessoal, recursos, etc. Em outras palavras, um pouco mais do mesmo!”64.

Produto também dos escândalos que levaram à supressão do SPI foi o comprometimento do governo federal em elaborar uma nova legislação indigenista, o que resultou na Lei n° 6.001/1973, denominada Estatuto do Índio.

A nova legislação, no entanto, não destoa do paradigma assimilacionista reinante desde a colonização. Neste sentido, observa Araújo:

Baseado numa concepção que em nada se diferenciava daquela que existia desde o início da colonização, o Estatuto do Índio anunciava o seu propósito logo no seu primeiro artigo: ‘integrar os índios à civilização brasileira, assimilando-os de forma harmoniosa e progressiva’. Em outras palavras, o objetivo do Estatuto era fazer com que os índios paulatinamente deixassem de ser índios. Tratava-se, portanto, de uma lei cujos destinatários eram como ‘sujeitos em trânsito’, portadores, por isso mesmo, de direito temporários, compatíveis com a sua condição e que durariam apenas e enquanto perdurasse essa condição65.

Releva notar, no entanto, que o Estatuto deu destaque para a questão das terras indígenas, reservando para tal matéria boa parte de seu texto. Deve-se salientar, entre outros, a determinação de que as terras indígenas deveriam ser administrativamente demarcadas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com processo estabelecido em decreto do Poder Executivo66 e o estabelecimento de que o reconhecimento do direito territorial de que trata o art. 198 (da Constituição de 1969, então vigente) independeria do processo de demarcação e seria assegurado pelo órgão federal de assistência ao índio67. Por fim, registre-se que ficou estabelecido um prazo de cinco anos para a realização da demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas.

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OLIVEIRA, FREIRE, op. cit. 2006, p. 131. 64 ARAÚJO, op. cit., 2006, p. 31.

65 Ibid. p. 32.

66 Art. 19 da Lei n° 6.001 de 19 de dezembro de 1973. 67

Para regulamentar a norma do art. 19 do Estatuto, o Poder Executivo editou, em 1976, o Decreto n° 76.999, o qual foi sucedido pelos decretos n° 88.118/83, 94.945/87 e, já sob a égide da Constituição Federal de 1988, os decretos n° 22/91 e o n° 1.775/96, vigente atualmente.

No interregno entre o Estatuto do Índio e a Constituição Federal de 1988, pode-se dizer que os direitos indígenas ainda foram rotineiramente violados pelo próprio Estado brasileiro, que, no período militar, o fez principalmente por meio de seus grandes projetos, reunidos no famoso Plano de Integração Nacional, de que é símbolo maior a construção da Rodovia Transamazônica, responsável pela afetação do modo de vida de inúmeras comunidades indígenas.

Ainda na década de 70, contudo, ocorreu uma importante mudança no cenário da discussão da questão indigenista no país: o surgimento do movimento indígena. Organizado, primeiramente, em caráter nacional e, já nos anos 80, articulado também por inúmeras organizações de caráter regional68, o movimento indígena constitui-se em novo e importante ator neste cenário.

Rompendo com o padrão mantido até então, a crença fundamental, neste momento, é de que “ao invés de aguardarem ou solicitarem a intervenção protetora de um ‘patrono’ para terem seus direitos reconhecidos pelo Estado, os índios precisam realizar uma mobilização política própria – construindo mecanismos de representação, estabelecendo alianças e levando seus pleitos à opinião pública”69.

Tal inserção do movimento indígena como mais um ator, e com total legitimidade, para a disputa do direcionamento que deveria tomar a política indigenista no país será essencial para as conquistas e avanços logrados no texto da Constituição Federal de 1988 e no relativo aumento das terras indígenas demarcadas que se observará nas duas décadas seguintes.

Este importante instrumento para a democratização do Brasil e para a luta dos povos indígenas será estudado no próximo capítulo.

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A respeito da ascensão do movimento indígena no cenário nacional e de seu potencial de emancipação social: NEVES, Lino João de Oliveira. Olhos Mágicos do Sul (do Sul): lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas no Brasil. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos para o cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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3 OS DIREITOS INDÍGENAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E SUA APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO NO CASO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL

Mostrado, no capítulo anterior, como ocorreu a desconsideração dos direitos dos índios, habitantes originários do território que hoje constitui o Brasil, e, em momento posterior, como se deu o processo de lento reconhecimento e proteção destes direitos pelo Estado - mormente por meio da consagração do instituto do indigenato na legislação, passa-se, no presente capítulo, a descrever um novo momento desta história.

Adiante, buscar-se-á, primeiramente, descrever o delineamento dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988; e, na segunda parte, mostrar o caminho percorrido até a decisão, pelo Supremo Tribunal Federal, do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no qual houve a adoção da chamada teoria do marco temporal da ocupação indígena ou teoria do fato indígena. Assim, esta segunda parte se subdividirá em três momentos: história da ocupação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, relato de seu processo administrativo de demarcação e descrição de seu julgamento perante o STF.

3. 1 Os direitos dos índios na Constituição Federal de 1988

Os povos indígenas, por meio da intensa mobilização e articulação em torno da Assembleia Nacional Constituinte, lograram para si um capítulo inteiro da Constituição Federal (“Capítulo VIII – Dos Índios”, inserido no “Título VIII – Da Ordem Social”, contendo os artigos 231 e 232), além de outros dispositivos espalhados ao longo do corpo constitucional.

O Brasil tornou-se, com a Constituição Federal de 1988, um dos primeiro Estados latino-americanos a reconhecer constitucionalmente sua diversidade étnica e cultural, rompendo com a histórica intolerância à diferença. Tal ruptura com o paradigma assimilacionista70 também se verificou, em maior ou menor grau, na

70 Pelo paradigma assimilacionista, entendia-se que os índios estavam em um estágio de desenvolvimento – a “barbárie” – anterior ao da sociedade ocidental, devendo, pois, estas sociedades mais desenvolvidas – que estavam no estágio da “civilização” – integrar os índios ao seu grau de desenvolvimento, por meio da aculturação e homogeneização dos índios.

Colômbia em 1991, no México e no Paraguai em 1992, no Peru em 1993, na Bolívia em 1994, e na Venezuela em 1999, apenas para citar alguns países71.

A Constituição Federal de 1988 significou, assim, a superação do paradigma integracionista e assimilacionista e, por conseguinte, a adoção do respeito à diferença como princípio mediador das relações entre os diversos segmentos étnicos e culturais conformadores da identidade nacional. Segundo Araújo:

Ao afirmar o direito dos índios à diferença, calcado na existência de diferenças culturais, o diploma constitucional quebrou o paradigma da integração e da assimilação que até então dominava o nosso ordenamento jurídico, determinando-lhe um novo rumo que garanta aos povos indígenas permanecerem como tal, se assim o desejarem, devendo o Estado assegurar- lhes as condições para que isso ocorra. A verdade é que, ao reconhecer aos povos indígenas direitos coletivos e permanentes, a Constituição abriu um novo horizonte para o país como um todo, criando as bases para o estabelecimento de direito de uma sociedade pluriétnica e multicultural, em que povos continuem a existir como povos que são, independente do grau de contato ou de interação que exerçam com os demais setores da sociedade72. A Constituição, contudo, não só declarou o respeito à diferença, afirmando a diversidade étnica e cultural nacional, como também, a partir da inteligibilidade desta diferença73, estabelece direitos especiais a essas coletividades, imprescindíveis para sua vivência segundo sua própria cultura e seus interesses.

No que toca aos povos indígenas, foi generosa tal proteção constitucional, incidindo principalmente na questão das terras indígenas, uma vez que da manutenção e proteção destas depende a reprodução física e cultural destes povos.

Logo no artigo 20 da Constituição74, há a consagração das terras indígenas como propriedade da União, cristalizando-se o que primeiramente previu a Constituição de 1967 e, em seguida, a Constituição de 1969. Tal disposição, para ser corretamente compreendida, deve ser interpretada sistematicamente com o artigo 231 da Constituição Federal, que, em seu caput, reconhece os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam e, no seu parágrafo segundo, estabelece que estas terras tradicionalmente ocupadas destinam-se à posse permanente dos indígenas, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das suas riquezas. Veja-se:

71 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Constituições de outros países. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/constituicoes/constituicoes-de-outros-paises. Acesso em: 10.05/2012.

72

ARAÚJO, op. cit., p. 45.

73 A diferença sem inteligibilidade conduz à indiferença (SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. p. 31)

74 Segundo o art. 20 da Constituição Federal de 1988: São bens da União: [...] XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios;

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

[...]

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (Grifo nosso)

A propriedade da União sobre as terras indígenas, como se nota, tem feição bem particular, tratando-se de uma propriedade vinculada ou propriedade reservada constituída unicamente com a finalidade de garantir uma maior proteção às terras destinadas à posse permanente e ao usufruto exclusivo dos indígenas, ou seja, constitui- se unicamente em benefício dos indígenas75. Desta forma, distancia-se totalmente do regime de propriedade do Direito Civil e, por outro lado, não se coaduna ao conceito de bem público afeto ao Direito Administrativo, não se adequando, por exemplo, à tradicional classificação dos bens públicos, quanto à sua destinação, em bens de uso comum do povo, bens de uso especial76 e bens dominicais:

Longe destas três categorias, a terra indígena é indisponível ao poder público, não possível de utilização por ele, e vedada ao uso comum de todo o povo brasileiro, mas tão-somente ao uso do próprio povo indígena, segundo seus usos costumes e tradições. Não é, portanto, categoria de terra pública. Não é, tampouco, terra particular, privada, da comunidade ou do povo indígena. Sendo assim não se enquadra no conceito dogmático de propriedade. Propriedade não é77.

Segundo o citado autor, apesar de não consubstanciarem as terras indígenas espécie de propriedade particular, nada impede que, em seu interior, possa ser constituída propriedade individual, se assim for conforme os usos, costumes e tradições do povo indígena:

Mas, se dentro dela não é possível a existência de propriedade privada, individual, segundo o conceito da lei, porque já está definida como domínio da União, é passível a apropriação individual segundo os usos costumes e tradições do povo que ali habita. Usos, costumes e tradições querem dizer, na prática, direito. Ora, a apropriação individual ou coletiva, de um grupo

75 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 856.

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José dos Santos Carvalho Filho sustenta que as terras indígenas seriam bens públicos de uso especial, uma vez que “existe a afetação a uma finalidade pública, qual seja, a proteção a essa categoria social”, afirmando ainda que “não é estritamente um serviço administrativo, mas há objetivo social perseguido pelo Poder Público” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 1140). Adota-se aqui, no entanto, a posição de Carlos Frederico Marés, para quem as terras indígenas não são bens de uso comum do povo, bens dominicais ou bens de uso especial, uma vez que “em todos eles [...] a posse é do Poder Público ou precariamente concedida a outrem, por ato de vontade do proprietário público” (SOUZA FILHO, op. cit., 1998, p. 123.)

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familiar, ou de um gênero, se fará, então, segundo o direito indígena, que resolverá os eventuais conflitos que ali se estabelecerem. É vedado, portanto, o exercício do direito brasileiro de propriedade dentro das terras indígenas, mas, ao contrário, são cogentes as normas do direito consuetudinário indígena. Dentro deste raciocínio, estamos falando de território, embora sem soberania e com pouca autonomia78.

Assim, as terras indígenas são constitucionalmente formuladas como propriedade da União, propriedade esta bastante sui generis, caracterizada pela vinculação à garantia da posse permanente e coletiva dos indígenas, aos quais cabe o usufruto exclusivo.

A posse permanente não reflete qualquer significação para o passado, mas sim para o futuro, no sentido de as terras indígenas, inalienáveis e indisponíveis, serem destinadas para sempre ao habitat dos indígenas79. Já por usufruto exclusivo das