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3.2 O caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

3.2.3 O julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol perante o

No dia 20 de abril de 2005, o então Senador da República pelo Estado de Roraima, Augusto Affonso Botelho Neto, propôs perante o STF uma ação população contra a União, pedindo, liminarmente, a suspensão da Portaria n° 534/2005 – que declarou os de forma contínua a área tradicionalmente ocupadas pelos índios – e de seu ato de homologação pelo Presidente da República e, ao fim, a procedência total da ação, com a anulação dos atos reputados ilegais. Esta ação popular recebeu, naquela Corte Constitucional, a designação de Petição n° 3.388/RR.

O ajuizamento da ação no STF se explica pelo fato de, nos autos da Reclamação n° 2.833/RR, este Tribunal ter-se julgado competente para apreciar todas as demandas relativas à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, tendo em vista considerável conflito federativo existente entre a União, responsável pela demarcação de terras indígenas, e o Estado de Roraima, que teria substancial parte de seu território – 7,79% – declarada, nesta oportunidade, como de ocupação tradicional indígena e, portanto, um bem da União.

123 Art. 20, §2° da Constituição Federal: A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.

O autor popular sustentou a necessidade de anulação dos referidos atos pelo fato de a nova portaria ter se fundado inteiramente no processo de demarcação que engendrou a Portaria n° 820/1998. Desta forma, carregava todos os seus vícios, os quais já eram contestados judicialmente por meio de inúmeras ações.

A propositura da ação fundou-se em suposta necessidade de preservar o

patrimônio público, que estaria sendo afetado com a demarcação de forma contínua da

Terra Indígena. No entanto, admite o autor popular, em sua petição inicial, a realização de demarcação de forma descontínua, em ilhas, “preservando as áreas necessárias à exploração econômica”. Desta forma, dimana de tal afirmação a intensão do autor de, na verdade, buscar a preservação não do patrimônio público, mas de patrimônios particulares, não legítimos de serem protegidos por meio de ação popular. A peça inicial fundamentou-se em várias razões: violação do procedimento previsto no Decreto n° 1.775/96; comprometimento à soberania nacional; comprometimento à economia do Estado; ofensa aos princípios federativo, da razoabilidade e do devido processo legal etc.

A ação foi distribuída por prevenção ao Min. Carlos Ayres Britto, relator da Reclamação n° 2.833/RR, sendo indeferida monocraticamente a suspensão liminar dos atos atacados e determinada a citação da União. Na contestação, a União, depois de versar sobre a história da ocupação da área pelos povos indígenas, arremata seu raciocínio com o juízo de que “não é o procedimento demarcatório que cria uma posse imemorial, um habitat indígena, mas somente delimita a área indígena de ocupação tradicional, por inafastáveis mandamentos constitucionais e legais”124.

Após, o então Senador da República pelo Estado de Roraima Francisco Mozarildo Cavalcante pediu que fosse incluído no polo ativo da ação.

Já concluída a instrução, com apresentação de contestação e razões finais pela União e emitido parecer pela Procuradoria Geral da República, foi aos autos a FUNAI pedir seu ingresso no polo passivo da ação. Entre outros argumentos, o órgão indigenista sustentou que “a posse dos indígenas é originária (indigenato), muito anterior à de todos e qualquer não índio, não perdendo tal caráter em razão da expulsão de seus genuínos habitantes”.

124 STF. Petição n° 3.388/RR. Relatório do Min Carlos Ayres Britto. p. 4. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760. Acesso em: 20 de maio de 2012.

Dois dias após, o Estado de Roraima requereu seu ingresso como litisconsorte ativo, agregando novos fundamentos à causa de pedir do autor. Dentre estes, pelo objeto deste trabalho, destaque-se a questão do marco temporal da ocupação indígena. Transcrevo parte da argumentação do autor:

[...] não é minimamente razoável pretender concluir ser o Alvará Régio de 1680 ou ainda a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, os divisores de águas na questão concernente ao lapso temporal quanto às terras tradicionalmente ocupadas por índios, posto que, naquele período, a maior parte das terras brasileiras eram ocupadas por indígenas.

(...)

Mais prudente estabelecer a Constituição de 1934 como sendo o marco, ou seja, o ano que o Estado Brasileiro reconheceu o direito a posse aos indígenas que nelas se achem, permanentemente localizados, não fazendo nem utilizando o termo “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Desta forma, pode ser reconhecido o direito de posse aos índios repita-se das terras que nelas se achavam permanentemente localizados a este tempo125.

No primeiro trecho, visou o Estado roraimense incutir a ideia de que, no período anterior ao seu reconhecimento pela Constituição de 1934, seriam ilegítimos os direitos territoriais indígenas (e, portanto, “não-direitos”), pois o Alvará de 1680 ou a Lei de Terras de 1850126 não se prestavam a legitimar tais direitos de forma prudente.

Já no segundo trecho, almejou o Estado do Roraima que os título de propriedade incidentes em terras consideradas indígenas pela Constituição Federal de 1988127 fossem considerados válidos, se a origem da cadeia dominial datasse de período anterior à constitucionalização dos direitos indígenas – 1934, pois antes disto seriam ilegítimos tais direitos – ou, mesmo se datassem de período posterior a 1934, se o título não tivesse por objeto terras em que eles se achassem permanentemente localizados128, isto é, nos locais de suas habitações e de suas atividades produtivas. Os demais espaços indígenas a que a Constituição Federal de 1988 conferiu proteção – os imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e os necessários a sua reprodução física e cultural – seriam, assim, relegados, porquanto, como não

125 Estado de Roraima. Manifestação nos autos da Pet. 3388/RR. Apud: NÓBREGA, op. cit., p. 139. 126 Como já explicado, a interpretação de que a Lei de Terras resguardou os direitos territoriais indígenas constituiu posterior entendimento doutrinário, acolhido muito tempo depois pelo Judiciário, sendo, àquela época, as terras indígenas consideradas devolutas.

127 Art. 231. [...] § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

128 As Constituições de 1934, de 1937 e de 1946 utilizaram o elemento da “localização permanente” dos indígenas, para definir as terras a que estes teriam seus direitos territoriais reconhecidos. As Constituições de 1967 e de 1969 restringem este reconhecimento somente às “terras que habitam”, vindo a Constituição Federal de 1988 a reconhecê-los de forma bem mais ampla.

reconhecidos como dos indígenas na Constituição de 1934, tornaram-se então, segundo o Estado de Roraima, terras devolutas e, portanto, pertencentes aos Estados.

Em suma, o Estado de Roraima buscou que o marco temporal da ocupação indígena fosse a Constituição de 1934 e que a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol se efetuasse em ilhas, pois somente poderiam ser demarcados em observância à Constituição Federal de 1988 os territórios que já haviam sido legitimados pelas Constituições anteriores. Trata-se de uma variação do uso da teoria do marco temporal, ainda mais elaborada, com vistas a alcançar uma maior restrição aos direitos indígenas.

O Estado de Roraima concluiu sua petição assentando novos pedidos, os quais consubstanciam determinações que, se julgados procedentes, deveriam ser aplicáveis a qualquer demarcação de terras indígenas. Foi, assim, a ação popular em questão projetada para o quadro das ações de controle abstrato de normas129.

Além disso, a esta altura já se vislumbrava que a Pet. 3388/RR seria, dentre as ações que discutiam a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a ação utilizada pela Corte para solucionar a questão desta Terra Indígena. Isto geraria, por consequência, a solução, nos mesmos moldes, das demais ações, pois estavam em litispendência em decorrência da liminar concedida na Ação Cautelar n° 2009-3/RR. Assim, ocorreu a intervenção de inúmeros posseiros, comunidades indígenas e Municípios afetados pela demarcação, os quais, pedindo que fossem incluídos na lide, agregavam mais elementos à ação.

Enfim, em 27 de agosto de 2008 teve início o julgamento da ação, o qual teve fim somente em 19 de março de 2009, após quatro sessões de julgamento.

No julgamento da Petição n° 3.388/RR, além da declaração da regularidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, outros dois aspectos se tornaram objeto de candentes discussões. O primeiro diz respeito a uma inovadora técnica de decisão utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da qual os principais fundamentos da decisão são deslocados para a parte dispositiva do acórdão e, o mais relevante, são revestidos de efeitos erga omnes, e não inter partes, o que se esperaria dos efeitos de uma ação que discute um fato individualizado. O segundo aspecto relevante do julgado concerne à adoção da teoria do marco temporal da ocupação indígena como norte a ser observado na demarcação de terras indígenas.

129

Da longa ementa que recebeu130, importa registrar, de acordo com os fins a que se propõe este trabalho, o seguinte trecho que cristaliza a teoria do fato indígena e uma importante ressalva a tal teoria:

11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa —— a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) —— como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol”. 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias ativas. O próprio conceito do chamado “princípio da proporcionalidade”, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo.

12. DIREITOS “ORIGINÁRIOS”. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente “reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de

130 STF. Ementa da Petição n° 3388/RR. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=Pet.SCLA.%20E%203388.NUME .&base=baseAcordaos. Acesso em: 12.05.2012. Tal acórdão conforma o ANEXO A deste trabalho.

uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê- los chamado de “originários”, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (§ 6º do art. 231 da CF). (Grifos nossos)

Evidenciado o caminho percorrido até a consagração da teoria do fato indígena, ou do marco temporal da ocupação indígena, pelo Supremo Tribunal Federal, reserva-se, para o próximo e último capítulo, a análise em si de tal teoria.

Indígenas acompanhavam o julgamento da TI RSS em frente ao prédio do STF (Disponível em: http://afinsophia.com/category/indio/. Acesso em: maio de 2012)

4 A TEORIA DO MARCO TEMPORAL DA OCUPAÇÃO INDÍGENA OU TEORIA DO FATO INDÍGENA

Neste capítulo, será abordada a teoria do marco temporal da ocupação indígena ou teoria do fato indígena, questão que, como se mostrará, não é inovação recente na doutrina e na jurisprudência pátrias, mas que encontrou maior visibilidade diante da sua enfática discussão, ou mesmo adoção “com ressalva”, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Petição n° 3.388/RR.

Desta forma, será explicitada, em um primeiro momento, a construção da teoria nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, tendo como referencial os votos dos ministros Carlos Ayres Britto e Menezes Direito, por serem os votos que lapidaram a teoria do marco temporal, mas que se distinguem quanto a uma importante ressalva prevista no voto do Ministro Relator: a posse nativa não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não índios.

Já em um segundo momento, serão analisadas as implicações práticas da utilização da teoria do marco temporal da ocupação indígena na concretização das demarcações. Aqui, serão analisados os efeitos da teoria do marco temporal sem a ressalva quanto às terras esbulhadas, porquanto desta forma a conceberam os ministros do STF, com exceção do Relator, que consolidou no acórdão do julgamento sua posição.

Em seguida, abordaremos, por ser um consectário da adoção da teoria do fato indígena, as novas formas de aquisição de ‘terras indígenas’ pelas comunidades indígenas, momento no qual serão estudadas as possibilidades de ampliação de uma terra indígena ou da própria criação de territórios indígenas em bases geográficas nas quais não se verificava ocupação indígena na data de promulgação da Constituição Federal de 1988, sendo-lhe, portanto, posterior. No mesmo tópico, também será rapidamente abordada a vedação à ampliação de terras indígenas, por ser também decorrência da teoria do marco temporal.

Por fim, no último ponto do capítulo, será analisada a teoria do fato indígena conjugada à ressalva contida no voto do Relator e consolidada no acórdão do julgamento, qual seja, a de que a posse nativa não se perde onde, ao tempo da

promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho.

Passa-se, então, ao estudo proposto.

4.1 Os votos dos ministros do STF e a discussão sobre o marco temporal da ocupação indígena no julgamento da Petição n° 3.388/RR

O voto do relator, como cediço, é o primeiro voto a ser proferido em um julgamento e, no caso da Petição n° 3.388/RR, constituiu a fonte primeira da discussão acerca do marco temporal da ocupação indígena, o que foi, posteriormente, também tratado por outros ministros em seus votos, com entendimento semelhante ao do Relator. Contudo, ao contrário deste, os demais ministros olvidaram de uma sutil, porém importante ressalva prevista no longo voto do Ministro Carlos Britto.

Segundo o Ministro Carlos Ayres Britto, a demarcação de terras indígenas “não cai sob o poder discricionário de quem quer que seja”, pois “há precisas coordenadas constitucionais para a identificação das terras a demarcar”131. Neste sentido, o Ministro registrou o que chamou de conteúdo positivo do ato de demarcação, que seriam elementos a serem verificados neste processo: (1) o marco temporal da ocupação, (2) o marco da tradicionalidade da ocupação, (3) o marco da concreta abrangência fundiária ou da finalidade prática da ocupação tradicional e (4) o marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da proporcionalidade”.

Neste trabalho, por questão óbvia, o nominado marco temporal da ocupação será o foco do estudo, sendo o marco da tradicionalidade, por implicações que se explicitará adiante, também abordado. Quanto aos demais elementos do conteúdo positivo do ato de demarcação, não serão abordados, porquanto não influenciam no objeto de estudo e, de uma forma ou outra, já estão inseridos nos termos da Constituição.

Dessarte, a respeito do marco temporal da ocupação, explicou o Relator: [...] a Nossa Lei Maior trabalho com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como o insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, ‘dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam’. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não para aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. [...] É exprimir: a data de verificação do fato em si da

131

ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro132. (negritado e sublinhado no original)

Neste ponto, vislumbra-se a definição do que é o indigitado marco temporal da ocupação, também designada de “teoria do fato indígena” pelo Ministro Menezes Direito. Acrescentou o Ministro Relator que este marco temporal reflete um decidido propósito: “o propósito constitucional de colocar um uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre toda e qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior”133.

Carlos Britto estava certo. As discussões acerca de qual momento deveria ser utilizado, para aferir a existência da ocupação pelos indígenas e dos seus limites, são constantes em processos administrativos ou judiciais a respeito de demarcações, sendo tais argumentos, via de regra, levantados pelos interessados em restringir os limites das terras indígenas, como se verificou no próprio caso da demarcação da TI RSS. Neste caso, por exemplo, objetivando a demarcação da Terra Indígena em ilhas, argumentou o Estado de Roraima nos autos da Petição n° 3388/RR:

[...] não é minimamente razoável pretender concluir ser o Alvará Régio de 1680 ou ainda a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, os divisores de águas na questão concernente ao lapso temporal quanto às terras tradicionalmente ocupadas por índios, posto que, naquele período, a maior parte das terras brasileiras eram ocupadas [sic] por indígenas.

(...)

Mais prudente estabelecer a Constituição de 1934 como sendo o marco, ou seja, o ano que o Estado Brasileiro reconheceu o direito a posse aos indígenas que nelas se achem, permanentemente localizados, não fazendo nem utilizando o termo “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Desta forma, pode ser reconhecido o direito de posse aos índios repita-se das terras que nelas se achavam permanentemente localizados a este tempo134.