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3.2 O caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

3.2.1 Histórico da ocupação tradicional da Terra Indígena Raposa Serra do Sol

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol tem cerca de 1.747.474 (um milhão, setecentos e quarenta e sete mil, quatrocentos e setenta e quatro) hectares, situando-se no nordeste do Estado de Roraima e fazendo fronteira com a Guiana e a Venezuela. É entrecortada pelos rios Maú, Tacutu e Surumu e composta de savanas, serras e áreas

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montanhosas. A toda esta plataforma física e geográfica “se sobrepõe um território social e cultural definidor de seus marcos, cujos usufrutuários e guardiães são os povos indígenas Macuxi, Wapixana, Patamona, Ingarikó e Taurepang”92, os quais conformam, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, uma população de mais de 19 mil indígenas, habitantes de cerca de 194 comunidades distribuídas na região93.

Localização da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Disponível em:

http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL464471-5598,00.html. Acesso em: maio de 2012)

Estes povos indígenas se identificam com unidades étnicas mais abrangentes, de filiação linguística Carib, denominadas Kapon e Pemon. Sob a denominação Kapon se identificam os Ingarikó e os Patamona, ao passo que sob a denominação Pemon se identificam os Macuxi e Taurepang. Os Wapixana, por sua vez, não têm ligação com as citadas denominações étnicas mais amplas, uma vez que descendem de grupos de um tronco linguístico diferente, chamado Aruak94.

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NÓBREGA, Luciana Nogueira. op. cit., p. 71.

93 A população de cada uma das etnias situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol é aproximadamente de: 10 mil indivíduos Macuxi; 7 mil indivíduos Wapixana; 600 indígenas Taurepang; e, por fim, os Patamona e os Ingarikó, com cerca de 100 e 1.170 indivíduos, respectivamente. Observe-se, no entanto, que estas etnias possuem povos distribuídos em outras áreas, como em terras da Venezuela ou, no Brasil, na Terra Indígena São Marcos (contígua à Terra Indígena Raposa Serra do Sol), onde a população Wapixana e Macuxi é bastante numerosa. (SOCIOAMBIENTAL. De olho nas terras indígenas: mapas, dados, notícias e mais. Disponível em: http://ti.socioambiental.org/. Acesso em: 08.05.2012).

94 SANTILLI, Paulo. Povos do Roraima. In: MIRAS, Julia Trujillo; et al. (Orgs.) Makunaima Grita: Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os Direitos Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2009. p. 61.

Esta diversidade de etnias, bem como de descendências, não implica, no entanto, padrões culturais totalmente distintos e etnias bem segmentadas:

Embora distintos do ponto de vista da distribuição espacial e da identidade cultural, os Kapon e os Pemon guardam afinidades quanto à organização social, sistema de valores, crenças e cosmologias. A prolongada convivência, embora nem sempre pacífica, aproximou-os culturalmente a ponto de criar-se uma intrincada e complexa rede de trocas, alianças e vínculos, geradora de intensos e estreitos laços de inter-relacionamentos95.

Essa complexidade de vínculos e inter-relacionamentos mantidos pelos habitantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol torna, muitas vezes, difícil a compreensão destas etnias de forma autônoma:

Cada uma dessas etnias apresenta organização, tradições e crenças próprias, embora estas características possam encontrar-se amalgamadas em certos casos. Da mesma forma, os limites entre cada etnia podem mostrar-se tênues, na medida em que são estabelecidas parentelas a partir de indivíduos com procedências diversas, havendo inclusive aldeias e agrupamentos de população mista compostas pelas etnias acima mencionadas96.

Esta intrincada rede de inter-relacionamentos tecida pelos povos indígenas que ocupam tradicionalmente a Raposa Serra do Sol constitui o fundamento de a demarcação desta área ter ocorrido de forma contínua, e não em ilhas, como objetivado por muitos segmentos com interesses opostos aos dos indígenas da região. Todo e qualquer espaço é ali preenchido de “sentido, um sentido, óbvio, culturalmente situado”97.

Os indígenas das varias etnias e comunidades que ali vivem caracterizam-se por serem eminentemente agricultores, utilizando para a produção de seu sustento a agricultura de coivara, técnica rotativa de culturas na qual há um período de descanso do solo, para que ocorra a reposição de nutrientes. Mas não só a técnica da agricultura de coivara, como também a pouca fertilidade do solo e as condições climáticas locais explicam a rapidez com que o solo se exaure e obriga a realização de um rodízio mais intenso de áreas cultiváveis pelas aldeias. Tal rodízio de áreas cultiváveis explica, por sua vez, a mobilidade relativa das comunidades da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e sua dispersão pelo território: cada aldeia é composta por até 200 indígenas e distancia- se de outras aldeias por uma distância que varia entre 10 e 30 quilômetros, sendo esta

95 NÓBREGA, op. cit., p. 81. 96

MOTA, Carolina; GALAFASSI, Bianca. A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol: processo administrativo e conflitos judiciais. In: MIRAS, Julia Trujillo; et al. (Orgs.) Makunaima Grita: Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os Direitos Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2009. p. 77.

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distância imprescindível para garantir a rotação de solos cultivados e a preservação dos recursos ambientais98.

Para melhor compreender a relação diferenciada destes povos indígenas com seus territórios, é imprescindível transcrever as palavras de Luciana Nogueira Nóbrega a respeito da íntima relação entre a geografia da região e a história, cosmovisão e religiosidade dos povos indígenas da Raposa Serra do Sol:

Os pontos geográficos que identificam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol constituem componentes destacados da tradição oral Macuxi e Ingarikó, referências da memória oral através dos quais os indígenas identificam as antigas aldeias, as povoações antecedentes, ‘permitindo aos indivíduos identificar a sua posição social reconhecer os vínculos de descendência com seus ancestrais [...], os laços de consanguinidade e afinidade que os vinculam aos seus contemporâneos e vizinhos’.

Nesse contexto, um marco geográfico assume relevo especial: o Monte Roraima, associado ao centro diferenciado e primordial do universo. De acordo com as narrativas indígenas, a atual configuração do mundo foi forjada pelos irmãos Macunaima e Insikiran que cortaram a grande árvore da vida, isto é, a árvore Wazaká, onde cresciam todas as plantas conhecidas. Uma vez cortada, os galhos da Wazaká espalharam-se pelos locais onde crescem as árvores atualmente. O tronco da árvore da vida, que permanece no solo, é precisamente o Monte Roraima, situado na Serra Pacaraima. Desse tronco jorrou, a partir de então, uma torrente de água que deu origem aos rios atuais, nitidamente o Maú (Ireng), o Contigo, o Miang, o Surumu e o Tacutu, que atravessam o território indígena. Os dois irmãos, ancestrais míticos dos indígenas atuais, nas suas peripécias por esse mundo, também criaram pragas, as doenças que atingem os homens e os procedimentos de curas que as neutralizam99.

A ocupação indígena na área não teve sempre a forma e os limites em que hoje se assenta, sendo sua configuração atual decorrente de processos de

territorialização100: “gestados no jogo de forças entre as potências coloniais e os povos indígenas, definindo uma ocupação que ora aproximou ora compeliu as populações indígenas, através da escravidão, descimentos e aldeamentos, para dentro ou à margem do sistema produtivo colonial”101.

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SANTILLI, Paulo. Povos do Roraima. In. MIRAS, Julia Trujillo; et al. (Orgs.) Makunaima Grita: Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os Direitos Constitucionais no Brasil. Rio de Janeiro: Beco do Azogue, 2009. p. 67 et seq.

99 Ibid., p. 82-83. 100

“(...) processo de territorialização é precisamente o movimento pelo qual um objeto político- administrativo – nas colônias francesas seria a ‘etnia’, na América espanhola as ‘reducciones’ e ‘resguardos’, no Brasil as ‘comunidades indígenas’ – vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais”. Cf. OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnografia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.) A viagem da volta: etnicidade, políticas e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2ª ed. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria / LACED, 2004.

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Segundo a historiografia oficial, remonta ao ano de 1774 as primeiras informações acerca da ocupação indígena na área que hoje conforma a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, haja vista que, neste período, Portugal tomou posse efetiva de tal espaço, expulsando um destacamento militar espanhol da foz do Rio Maú, inclusive contando para tanto com a contribuição dos indígenas. Em seguida à expulsão dos espanhóis, os portugueses, valendo de mão-de-obra indígena, construíram o Forte de São Joaquim e deram início a um mínimo de controle na área da fronteira, o que foi também intentado com a implantação de aldeamentos:

[...] a ocupação do rio Branco constitui caso limite da colonização do Estado do Maranhão e Grão-Pará que, à época colonial, compreendia a Amazônia portuguesa: por todo o vale amazônico, o domínio territorial português se fez valer por meio de aldeamentos indígenas. Isto porque, excetuando-se a fronteira com a Guiana Francesa, estabelecida pelo Tratado de Utrecht em 1713, os limites do noroeste amazônico permaneceram, por largo tempo, intencionalmente indefinidos, pois Portugal não possuía título para reclamá- los; só a ocupação de fato, pelo povoamento, poderia estabelecer tais limites. O Tratado de Madrid, em 1750 – primeira tentativa desde Tordesilhas, de delimitação das fronteiras coloniais luso-espanholas – guiava-se, exatamente, pelo princípio da posse de fato, estabelecendo que cada parte deteria os territórios até então ocupados e povoados. Assim, durante o ministério pombalino, a tônica foi a de povoar “todas as terras possíveis”, contando com a população indígena como base de uma sociedade colonial102.

Visando assegurar o domínio daqueles territórios do Norte frente aos ímpetos coloniais das demais potências europeias e ainda buscando integrar a região ao mercado colonial, os portugueses valeram-se também da estratégia de explorar economicamente os campos do alto Rio Branco, introduzindo a pecuária extensiva, mormente a partir da fundação da Fazendo do Rei. Durante o período imperial, foram fundadas mais três fazendas nacionais na região - fazendas São Bento, São Marcos e São José, as quais abrangiam a quase totalidade dessas terras do Alto Rio Branco, inclusive se estendendo até os limites dos territórios estrangeiros. No entanto, a grande presença indígena na área não se retraiu dos século XVIII e XIX. No ano de 1914, instalou-se uma Inspetoria Regional do SPI na fazenda São Marcos, passando esta a ter jurisdição sobre todo o Alto Vale do Rio Branco.

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Curso do Rio Branco com destaque para a região conhecida como Alto Vale do Rio Branco, onde se encontra a TI RSS (Disponível em: http://mariodemori.blogspot.com.br/2008/05/terra-indgena-raposa-

serra-do-sol.html. Acesso em: maio de 2012.)

Em fins do século XIX e início do século XX, a lenta apropriação dos territórios indígenas propagada no tempo já mostrava graves restrições aos Povos do

Roraima, a este tempo principalmente decorrente da pecuária extensiva:

O primeiro ocupante, geralmente, ao chegar na região pedia autorização ao tuxaua para morar numa velha choupana nas proximidades de um sítio antigo abandonado pelos índios. O tuxaua dava permissão. Com o passar dos anos, o posseiro veio a se transformar num criador de gado. Com isso, a caça vai ficando cada vez mais rara na região, mas como o posseiro às vezes dava um pouco de leite e um pedaço de carne para os índios havia uma acomodação à situação sem que houvesse conflitos manifestos. Com o tempo, a região foi transformada em um ‘depósito de gado’, o que significava, a nível regional, um lugar para a engorda de rebanho [...]. Por essa ocasião, o posseiro já não pedia mais autorização ao tuxaua para tomar qualquer decisão sobre a terra. Era ele quem dizia o que fazer, aonde o gado deveria passar e quem deveria morar na choupana que outrora pertencia à comunidade [...]. Vendendo suas benfeitorias a novos posseiros, os índios passar a ser considerados invasores, confinados a faixas de terras nas encostas das serras. A terra que o posseiro julga ser dono é cercada103.

Tal processo se potencializou no início do século XX, notadamente em decorrência do declínio da exploração de borracha na Amazônia, com o que os trabalhadores que para ali imigraram em busca de melhores condições de vida acabaram, em um movimento posterior, por se estabelecer em Roraima. Esses

103 MELO, Maria Guiomar de. Laudo Antropológico. Relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. 1993. p.32. Apud. NOBREGA, op. cit., p. 77.

contingentes que se deslocavam para Roraima foram estabelecendo moradias em terras do Estado – as fazendas nacionais – e em terras indígenas, indistintamente, até mesmo porque a instituição das fazendas nacionais simplesmente desconsiderou as territorialidades indígenas. Ainda assim, quando as posses recaíam fora das terras das fazendas nacionais foram legitimadas pelo Estado a partir da sua consideração como devolutas, o que, como já visto, não deveria juridicamente ter ocorrido.

Mais um capítulo da ocupação irregular das terras indígenas observou-se com o garimpo. Primeiro, nos anos 1930, com a descoberta de ouro no Rio Maú. Depois, já nos anos 1990, pela chegada de garimpeiros expulsos da Terra Indígena Yanomami em decorrência da operação “Selva Livre”104.

Mapa com destaques para a parcela da Terra Indígena Yanomami que se situa no Estado de Roraima e para a TI Raposa Serra do Sol (Disponível em: http://lagessegal.blogspot.com.br/2010/07/operacao-

curari-iii-garimpeiros-detidos.html)

104 A operação Selva Livre foi desenvolvida no início da década de 1990, tendo por objetivo a retirada de uma população de cerca de 50 mil garimpeiros da Terra Indígena Yanomami. A realização da operação se deu pela intensa pressão internacional sobre o governo brasileiro, uma vez que a garimpagem trazia inúmeros prejuízos para o povo indígena, principalmente em relação às suas condições de saúde. (O ESTADO DE SÃO PAULO. 4 DE MARÇO DE 1993. Disponível em: http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=noticia&id=3260. Acesso em: 20 de maio de 2012).

O garimpo constituiu uma das atividades mais danosas aos indígenas da região. Contudo, o processo de esbulho de terras dos índios que parece ter sido mais bem sucedido foi o presenciado recentemente com a produção de grãos em larga escala. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE - demonstram que o ano de 1992 foi o primeiro em que se evidenciou a realização, no Território indígena Raposa