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3 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA: UM OUTRO LADO DO FENÔMENO

3.2 As contribuições da Sociolinguística: para além do “certo” e do “errado”

Muitas são as contribuições dos estudos sociolinguísticos para a educação. A apresentação da variação linguística, como fenômeno das línguas naturais, tem desencadeado reflexões importantes para o redimensionamento do ensino de língua materna. Não obstante tais avanços, ainda nos deparamos com a necessidade de melhor capilarizar esse patrimônio teórico-reflexivo no meio educacional. Se a reflexão de que a língua varia já chegou aos documentos oficiais e já ganhou materialização em livros didáticos, ainda não ganhou robustez uma discussão, de cunho eminentemente social, que está intrinsecamente ligada a toda e qualquer reflexão sobre a variabilidade linguística: o respeito linguístico.

Labov (2008), ao abordar a mudança linguística, ressalta que a mesma aparece primeiramente como um traço característico de um subgrupo específico, mas que não atrai a atenção de ninguém até avançar no grupo ou se difundir fora dele. E que esse avanço,

inevitavelmente, vai ser associado às características expressivas do grupo de origem, “seja qual for o prestigio ou outros valores sociais associados a tal grupo pelos demais membros da

comunidade de fala” (p. 366). E acrescenta que “à medida que a mudança original adquire

maior complexidade, escopo e extensão, ela adquire mais valor social sistemático e é refreada

ou corrigida na fala formal” (p. 367).

Para ele, a mudança pode ser rotulada como “estereótipo, debatido e notado por todo mundo” (p. 367). E as perspectivas futuras desse estereótipo mantem estreita relação

com a origem do grupo com o qual ele está associado. Se é um grupo que desfruta de prestígio social, então a nova regra não pode ser embargada, mas deverá ser incorporada ao dialeto dominante às custas da forma mais antiga. Se ao contrário, vier de um grupo discriminado socialmente e excluído das camadas dominantes da sociedade, a forma linguística ou regra será estigmatizada, corrigida, rechaçada e até extinta.

O uso de determinadas variantes pode ser bem ou mal avaliado socialmente a depender do indivíduo ou grupo social que as utiliza. Atitudes de intolerância linguística e/ou preconceituosas, fortemente arraigadas socialmente, relacionam-se ao uso de variantes pelas camadas menos favorecidas socialmente. E não raro, isso se torna uma tendência que se naturaliza nos equipamentos sociais, como as escolas, e amalgama-se nas relações interpessoais escolares, tendo a aquiescência de quem age com preconceito e de quem sofre o preconceito. Os resultados de nossa pesquisa de Mestrado corroboraram essa tendência no meio educacional (cf. RAQUEL, 2007).

Não obstante o preconceito linguístico não ter sustentação teórica do ponto de vista sociolinguístico e a variação linguística ser um tópico que precisa ser abordado na escola, conforme orientação das Diretrizes Nacionais para o Ensino na Educação Básica, a discriminação com base em aspectos linguísticos ainda é prática recorrente no país e, não raro, homologadas socialmente.

Em se tratando de espaço escolar, muitos comportamentos contribuem para gerar atitudes de intolerância linguística ou para perpetuar padrões cristalizados na forma de

julgamento dicotômico como “fala certa x fala errada”, “fala bonita x fala feia” (RAQUEL,

2007) e que impedem um direcionamento mais producente em relação ao trabalho pedagógico voltado para o desenvolvimento de habilidades sociolinguísticas que envolvem, por exemplo, o falar, o ouvir, o escrever e o ler.

Não obstante aparecer como conteúdo a ser abordado na maioria dos Livros Didáticos de LP, por exigência do Programa Nacional do Livro Didático, ainda há desafios quanto ao trabalho com variação linguística na escola. O respeito à identidade sociolinguística

do aluno com vistas ao desenvolvimento da construção de uma autoimagem linguística positiva, é um desses pontos que carece de muita reflexão por parte, sobretudo, dos professores responsáveis pelo ensino de língua materna.

O amadurecimento teórico-reflexivo sobre essa questão pode agregar valor e qualidade ao trabalho pedagógico do professor. O conhecimento das causas que dão sustentação ao preconceito linguístico e o entendimento de que o mesmo têm raízes sociais e não linguísticas, poderá assinalar um novo modus operandi nas práticas pedagógicas na escola. O conhecimento e a reflexão contribuem para se despertar a consciência do professor acerca das atitudes linguisticamente embasadas quanto ao fenômeno da variação e quanto à avaliação dos usos da linguagem feito pelo falante. O desconhecimento disso gera a ação de correlacionar os usos da linguagem e a percepção, categorização e avaliação feita dos indivíduos numa dada comunidade com base em critérios de ordem social e não linguística, conforme assinala Mendes (2011). E uma avaliação, nesses moldes, tolhe a livre mobilidade linguística dos grupos socialmente desprestigiados, além de comprometer a compreensão de que um comportamento intolerante e preconceituoso frente à variação linguística denota de forma geral a visão negativa que se tem da identidade social do falante.

O autor, entretanto, entende que a atribuição de valores sociais a usos linguísticos é parte integrante e indissociável do funcionamento sociolinguístico de uma comunidade. Entretanto, o exercício da tolerância deve ser entendido num pano de fundo mais amplo (histórico, político, psicológico), pois não seria possível discutir fatos de intolerância diante de usos da linguagem antes de abordar fatos de percepção e de avaliação linguística, no sentido de começar a entender como uma identidade social se constrói. E a construção dessa identidade social passa necessariamente pela construção da própria autoimagem do falante que, conforme já demonstram estudos realizados pelo PISA12,“a realização acadêmica pode ser determinada por estereótipos pessoais e, implicitamente, por atitudes e crenças das pessoas

sobre sua própria identidade” (OCDE, 2009, p.89).

Nos estudos iniciais de Labov (1966) sobre estratificação social do inglês falado em Nova Iorque, os resultados evidenciaram que as variantes linguísticas discretas carreiam informações sociais que caracterizam os falantes que as utilizam. Assim, as diversas variantes linguísticas empregadas pelo falante em situações e momentos diferentes revelam, igualmente, funções sociais específicas a elas atribuídas. Em razão disso, é pertinente atentar, a priori, para a estreita associação entre uso da linguagem e significado social. Uma

12 Programa Internacional de Avaliação de Estudantes- PISA que é uma avaliação aplicado a alunos de 15 anos

compreensão dessa natureza pode possibilitar aos agentes escolares a clareza acerca dessa relação de modo a contribuir para a desconstrução do preconceito e da intolerância linguística frente às tendências linguísticas dos grupos situados nas faixas mais baixas da escala social.

Bortoni-Ricardo (2005) defende que a sociolinguística pode contribuir, sobremaneira, para a instauração de uma cultura que respeite as diferenças sociolinguísticas e culturais dos alunos. Entretanto, assevera que isso requer uma mudança de postura da escola – de professores e alunos - e da sociedade em geral. A percepção da relação que se estabelece entre a fala e os usos da linguagem moldada pelo critério social em detrimento do critério linguístico é o grande desafio para a instituição escolar que deve se perceber como responsável pelo desenvolvimento de uma nova pedagogia, culturalmente sensível aos saberes dos educandos e atenta às diferenças entre a cultura que eles representam e a da escola.

É nesse contexto que se torna fecunda e oportuna a discussão voltada para a

variação linguística. Dicotomizar toda a diversidade linguística em fala „certa‟ e „errada‟, „bonita‟ e „feia‟, demonstra ausência de conhecimentos da vasta gama de estudos de cunho

sociolinguístico no país, abordando a estreita relação da pluralidade linguística com os fatores culturais e sociais no Brasil. As atitudes de professores e de todos os que constroem o cotidiano escolar devem ser balizadas pelos conhecimentos advindos dessa ciência.

Mollica e Cristovão (2002) corroboram essa defesa em prol da desconstrução da

noção “maniqueísta certo/errado” (p. 1) em termos de fala. Para os autores, o uso desses conceitos “rejeita uma reflexão sobre a coexistência da complexidade de usos, estilos, gêneros

e modalidades linguísticas, ignorando também o papel da relação sociolinguística entre os

usuários e o contexto situacional em que atos de fala são realizados” (p. 1). Acrescentam

ainda que quando a escola se coloca nessa perspectiva de realizar esse tipo de avaliação dicotômica tradicional, passa a ser uma instituição antidemocrática que, juntamente com outros mecanismos, acaba por promover a exclusão social e assumir o papel apenas de agente avaliador de fatos linguísticos.