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Uma primeira questão que chama a atenção nas teorias do reconhecimento diz respeito à recuperação de Hegel, especialmente em Honneth e Taylor, dos conceitos e teses referentes aos trabalhos de juventude, particularmente àqueles estudos preocupados com a constituição do sistema de eticidade, procedimento esse levado a cabo pelo primeiro autor. Toda a primeira parte de Luta por

reconhecimento de Honneth visa mostrar a importância e a contribuição de Hegel

para percepção de uma luta moralmente motivada nas lutas por reconhecimento. No entanto, um conceito essencial em Hegel é deliberadamente negligenciado nessas teorizações, refiro-me ao conceito de trabalho. Taylor, por sua vez, apesar de levar em conta na sua construção teórica do reconhecimento a relação senhor/escravo tematizada por Hegel, não considera aí a mediação essencial realizada pelo trabalho, a luta por reconhecimento entre senhor/escravo é vista como uma luta meramente moral.

Por exemplo, especialmente na Fenomenologia do espírito, o trabalho é a mediação necessária que permite a formação do mundo cultural.

A educação pelo trabalho é o momento privilegiado em que o homem se põe no elemento da cultura, como ser acrescentado à natureza, e cria para si uma ‗segunda natureza‘ como um fato objetivo e real. Neste movimento, a natureza se torna humana e

se transforma em cultura, ao mesmo tempo em que o homem, ao se apropriar da natureza „externa‟ mediante o trabalho, se apropria também de sua natureza „interna‟ e se faz homem culto. A passagem da natureza à cultura é um processo de

humanização, mediante o qual o homem se torna consciente de sua liberdade e busca o reconhecimento social como forma de vida (SANTOS, 1993, p. 10 – Grifo JBS).

É possível mostrar como, menos preocupado com a questão histórica do trabalho, Hegel está, na verdade, interessado em evidenciar no processo de formação da consciência, a passagem da consciência imediata de si, que leva à certeza abstrata, à certeza adquirida no reconhecimento através do trabalho (SANTOS, 1993). Menos do que uma questão meramente teórica ou especulativa, a negligência do conceito de trabalho, especialmente em Honneth, parece se constituir em escolha teórica deliberada, pois caso privilegiasse os escritos nos quais o trabalho realiza a mediação e informa a idéia de reconhecimento social, Honneth teria, talvez, que prestar conta a toda tradição marxista. Teria que prestar conta, inicialmente com Marx. Nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004),28 por exemplo, a análise detida realizada do trabalho estranhado permite à crítica marxiana apontar os aspectos idealistas da formulação hegeliana do trabal ho, por um lado, e evidenciar o aviltamento do trabalhador, particularmente através das formas de estranhamento engendrada pela forma de trabalho,29 por outro. Estranhamento que cria os obstáculos essenciais que dificultam o reconhecimento social através do trabalho. A teoria do reconhecimento de Honneth teria que prestar conta ainda às formulações marxianas presente em O capital, especialmente no primeiro capítulo: A mercadoria. Marx (1985) realiza uma detida

28

Para uma análise exegética dos Manuscritos econômico-filosóficos, ver: RA NIE RI, 2001. Para uma leitura e interpretação alternativa e polêmica desse período da obra de M arx, ver: ALTHUSSER, 1978; 1979; 1999; MONAL, 2003; LOWY, 2002; FREDE RICO, 1995; GIA NNOTTI, 1966.

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Como pode s er percebido nesta s íntese: ―o trabalho estranhado provoca as seguintes conseqüências: o estranhamento do homem em relação à nat urez a, ou s eja, estranhamento aos objetos do mundo sensível; o estranhamento do homem em relação à sua atividade, isto é, o homem estranha o processo mesmo de efetivação de seu trabalho; o estranhamento do homem em relação ao seu gênero, estranhando tanto a vida genérica quanto a vida individual, estranhamento que aparece, por sua vez, à medida que faz da vida genérica um meio, um instrumento de satisfação da vida individual; o estranhament o do homem em relação a si mesmo, pois quando se põe frente a si mesmo defronta-se, na verdade, com um outro‖ (SILVA, 2007).

exposição das formas de trabalho presente na sociedade capitalista, expondo como a mercadoria é transpassada pela contradição, visto que, no seu interior, valor e valor de uso negam-se dialeticamente, como expressão de duas formas de trabalho contraditórias: trabalho concreto e trabalho abstrato. Além disso, teria que articular os conceito de exploração para dar conta das relações de dominação classe. Aspecto este inexistente, especialmente, na teoria de Honneth e Taylor.

Ainda na tradição marxista, especialmente Honneth teria que, de alguma forma, dialogar com as formulações de Lukács. O pensador húngaro é, dentre os teóricos marxistas, aquele que se propôs a construir uma ontologia do ser social, tomando como fio condutor o conceito de trabalho. O caráter mediador deste permite, a um só tempo, perceber a relação entre o ser social e a natureza, expressando, sobretudo, a passagem no ser que trabalha de uma existência meramente biológica, determinado pelas contingências naturais, em direção ao ser social propriamente dito. É, neste sentido, que Lukács recupera a formulação marxista do trabalho como produtor de valores de uso, como produtor de coisas socialmente úteis, pois

O trabalho, como criador de valores de uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem, - qualquer que sejam as formas de sociedade, - é necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio material entre homem e a natureza, e, portanto, de manter a vida humana (MARX, 1985, p. 50).

Valor de uso, tal como lembra Lukács, pode ser percebido ainda como produto do trabalho humano para reprodução da vida social. É neste sentido que o trabalho poderá ser concebido como fenômeno originário,

categoria fundante do ser social e elemento que lhe permite dar o salto ontológico de superação de uma existência meramente reativa aos

condicionantes do ambiente para vida social propriamente dita.

Constituindo-se, pois, o trabalho como elemento central no processo de humanização do homem. Visto que

No trabalho estão gravadas in nuce todas as determinações que, (...), constituem a essência de tudo que é novo no ser social. Deste modo, o trabalho pode ser considerado o fenômeno originário, o modelo do ser social; é, pois metodologicamente vantajoso começar com a análise do trabalho, uma vez que o aclaramento das suas determinações resultará num quadro preciso dos elementos essenciais do ser social (...). É claro que a sociabilidade, a primeira divisão do trabalho, a linguagem etc. surgem do trabalho, mas não numa sucessão temporal claramente identificável, e sim, quanto à sua essência, simultaneamente (LUKÁCS, 1999, p. 4).30

Conceber o trabalho como categoria ontológica significa descortinar seus elementos constitutivos, isto é, seus elementos e momentos fundantes para retirar daí a tese da centralidade do trabalho como categoria determinante à formação da sociabilidade.31 O desdobramento teórico necessário dessa crítica, como imediatamente se percebe, implica levar em consideração o conceito de classe social.