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Pelo que se disse antes, imediatamente, se impõe a seguinte questão: qual idéia de racismo, preconceito e discriminação adotada pelas centrais sindicais? Quanto ao racismo, a CUT, particularmente, o define como uma ideologia – tal como pode ser encontrado em IANNI (2004a) -, ou seja, como uma visão de mundo que concebe as diferenças intelectuais ou morais fundadas a partir das diferenças fenotípicas ou culturais, e as diferenças entre os grupos culturais ou étnicos baseados em distinções biológicas, como pode ser verificado nesta passagem:

O racismo é uma ideologia que postula a existência de diferenças biológicas entre os grupos étnicos e defende a associação de diferenças fenotípicas ou culturais a diferenças intelectuais e

morais [(Resoluções do 5 Congresso Nacional da CUT). CUT, 1994, p.127].

Coerente com a idéia de racismo definida acima, a concepção de preconceito que aparece na Central Única dos Trabalhadores define-se como uma ideação, uma imagem ou representação construída antes mesmo de qualquer experiência efetiva de interação entre os indivíduos e grupos. Conforme apropriadamente lembra a definição, nem sempre uma pré-ideação necessariamente se transforma em uma conduta racista. Neste particular, a concepção presente na CUT acompanha aquela formulada por Guimarães (2004):

Por seu turno, o preconceito é algo como um construtor mental, uma idéia. Como o próprio nome diz, é um conceito prévio que se faz de alguém com base no grupo social ao qual a pessoa pertence, devido ao racismo, ao machismo e outras ideologias e sobretudo à veiculação de estereótipos (características associadas a um determinado grupo social com base em preconceitos). Entretanto, o preconceito é uma idéia que não necessariamente resulta em atitude, em conduta ou ação [(Resoluções do 5 Congresso Nacional da CUT). CUT, 1994, p. 127].

Quanto à discriminação e preconceito, a concepção segue aquela definida pela OIT e Organização das Nações Unidas (ONU): ―Assim, organizações

internacionais como a ONU e a OIT compreendem a discriminação como qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou alterar a igualdade de oportunidade e tratamento‖ [(Resoluções do 5 Congresso Nacional

da CUT). CUT, 1994, p.128]. A discriminação ocorre, portanto, quando indivíduos e grupos não recebem o mesmo reconhecimento social que lhe é devido no convívio social, prática esta que fere o princípio democrático de igual oportunidade e tratamento para todos, cuja inexistência implica desrespeito e não estima social dos atingidos. Por isso, a discriminação presente no ato racista aparece como a

denegação de direitos:

Quando ocorre a ação, exemplificando, quando um profissional de recursos humanos não avalia objetivamente as qualidades de um candidato negro e nega-lhe emprego, temos então a discriminação, que consiste em desigualdade de direitos, de oportunidade e de tratamento em razão da raça, do sexo, da idade e de outros fatores, conforme definido pela OIT, pela ONU e pelos ordenamentos jurídicos de vários países [(Resoluções do 5 Congresso Nacional da CUT). CUT, 1994, p. 128].

Portanto, as lutas contra o reconhecimento denegado manifesto pelo racismo, preconceito e discriminação devem ter como ponto de partida a luta por reconhecimento da sua existência, inicialmente, e por identificar as coletividades e indivíduos mais diretamente afetados por essas práticas, posteriormente. No caso particular do racismo à brasileira, são as mulheres negras aquelas que mais duramente sofrem as conseqüências mais perversas do racismo, preconceito e discriminação no país.

O rumo da luta contra o preconceito, a discriminação e o racismo é começar a reconhecê-los. Começando a reconhecer que as mulheres negras são colocadas na base da hierarquia social, inferiorizadas em relação ao homem branco, à mulher branca e ao homem negro, respectivamente [(Resoluções do 5 Congresso Nacional da CUT). CUT, 1994, p.115].

Há nessa passagem uma sutil crítica àquelas teses de que no Brasil não há racismo, preconceito ou discriminação como resultado de comportamentos racistas, pois, devido à igualdade formal de todos perante a lei, não haveria lugar social no qual o negro, por seus méritos e esforços, não poderia ocupar, e o racismo no Brasil, decorreria, na verdade, apenas da situação de classe. Esse diagnóstico permite, justamente, evidenciar a forma como o Estado concebe e realiza a igualdade, a vigência do racismo e suas práticas. Portanto, o princípio

democrático de igualdade formal dos indivíduos e coletividades tende a reproduzir mecanismos sociais que criam ou ampliam desigualdades de oportunidades e de tratamento entre grupos portadores de reconhecimento denegado. Longe de garantir que o acesso à riqueza socialmente produzida seja social e igualmente repartida, a igualdade meramente jurídica amplia a distância social entre os supostamente iguais em termos de escolaridade, salários, consumo, prestígio, estima e reconhecimento social.

Tomados em conjunto, os dados [pesquisa sobre a situação do negro no mercado de trabalho] desmascaram o embuste segundo o qual a igualdade formal perante a lei é garantidora, por si só, da igualdade de oportunidade e tratamento. Ademais, desmitificam a estratégia do Estado de negar a problemática racial: o mito do paraíso racial – enquanto ideologia de Estado – busca mascarar a brutal desvantagem da população negra comparativamente à população branca, quando, na essência, emprega o racismo como fator de superexploração econômica e de controle social. Ao mesmo tempo em que nega a dimensão da problemática racial na sociedade brasileira, o Estado conserva intactas as fontes reprodutoras do racismo, recriando e reproduzindo um quadro de absoluta desigualdade de oportunidade e tratamento entre negros e brancos a despeito da existência de uma grande parcela de brancos em situação de miséria [(Resoluções do 5 Congresso Nacional da CUT). CUT, 1994, p. 131].

Aliás, esse traço das relações sociais no país não tem passado despercebido para vários analistas. Ora, uma sociedade cujo traço característico mais evidente é a desigualdade, a igualdade só tende a reproduzir as iniqüidades, que na particularidade brasileira têm atingido de modo mais agudo aos trabalhadores e trabalhadoras negras:

O ponto crítico de nosso sistema é a sua profunda desigualdade. Ninguém é igual entre si ou perante a lei; nem senhores (diferenciados pelo sangue, nome, dinheiro, títulos propriedades, educação, relações pessoais passíveis de manipulação etc.) nem os escravos, criados ou subalternos, igualmente diferenciados

entre si por meio de vários critérios. Esse é, parece-me, um ponto- chave em sistemas hierarquizantes, pois, quando se estabelecem distinções para baixo, admite-se, pela mesma lógica, uma diferenciação por cima. Todo o universo social, então, acaba pagando o preço da sua extremada desigualdade, colocando tudo em gradações (DAMATTA, 1987, p. 75).

Assim, a luta política contra o racismo – da mesma forma que a luta das mulheres, dos gays e lésbicas etc. – tem sua singularidade, visto que englobam práticas, representações e processos que não se reduzem ou se esgotam na opressão econômica, ou seja, há uma dimensão social nas lutas por reconhecimento denegado que não podem ser supridas por lutas por produção- redistribuição. Da mesma forma, uma luta circunscrita a remediar o reconhecimento denegado tende a ter resultados, é bom que se diga, não desprezíveis, mas limitado à esfera cultural e ideológica. Nada alterando, portanto, as injustiças de natureza econômica. Por isso, a ação sindical também pode e deve se interessar pela luta anti-racista, observando a particularidade da classe operária brasileira, formada por um contingente expressivo de negros e negras que enfrentam em seu cotidiano reiteradas práticas de racismo, preconceito e discriminação. De fato, o racismo não é uma prática que será superada pela melhoria ou superação das desigualdades de ordem econômica, pois, sobre os(as) trabalhadores(as) soma-se, além da exploração decorrente do sistema capitalista de produção, o reconhecimento denegado presente na esfera cultural- valorativa. Por esse motivo, uma ação sindical omissa ou avessa à problemática do racismo contribui para perpetuar a desigualdade no interior da classe trabalhadora:

Um outro mito que cai por terra é que a questão das desigualdades raciais se esgota na contradição de classe, haja vista que os dados estatísticos comprovam a existência de uma carga suplementar de problemas sobre o trabalhador negro, decorrente da sua condição racial. Temos, portanto, que a questão racial não é um problema dos e para os negros, mas uma questão estrutural da sociedade brasileira. O reconhecimento de que as desigualdades raciais constituem um problema estrutural da sociedade brasileira implica reconhecer o papel fundamental do movimento sindical no combate ao racismo. Noutras palavras, implica reconhecer que, ao não enfrentar a questão racial, o movimento sindical legitima e contribui para a reprodução das desigualdades raciais, frustrando uma espécie de acordo tácito entre o Estado opressor e autoritário e o sindicalismo em torno da marginalização do povo negro. O acordo de que falamos explica o fato de que os dados publicados pelo DIEESE não são sequer lidos pela maioria dos dirigentes, nem considerados na ação sindical. Com efeito, diante do debate sobre a questão racial, os dirigentes se limitam a manifestações solenes de solidariedade que nunca ultrapassam o discurso, isso na melhor das hipóteses. Mas há casos mais esquisitos, em que companheiros sem qualquer informação a não ser aquela fornecida pela ideologia dominante deitam falação sobre as ―vantagens e os benefícios‖ do racismo brasileiro se comparado ao sul-africano ou ao norte- americano. Tomados em conjunto, tais comportamentos configuram o desserviço prestado pelo sindicalismo à luta contra o racismo, compreendida como parte integrante da luta pela democratização da sociedade brasileira. A responsabilidade do sindicalismo no combate ao racismo não se deve, diga-se de passagem, a questões de natureza humanitária, mas ao fato de que metade dos trabalhadores são negros e, portanto, é dever do sindicato incorporar os interesses desse segmento [(Resoluções do 5 Congresso Nacional da CUT). CUT, 1994, p. 132 - Grifo JBS].

Na citação acima, é possível perceber que mesmo com os avanços políticos e organizativos alcançados no início da década de 1990, a CUT, por exemplo, tinha enormes dificuldades em transformar em ações concretas os aprofundados diagnósticos sobre a situação dos trabalhadores negros. Como se verá a seguir, a posição muitas vezes meramente retórica dos sindicalistas parece ter sido influenciada pela concepção de classe e luta política que vicejava, e ainda

viceja, no sindicalismo brasileiro, especialmente aquele praticado pelos ativistas adeptos das concepções tradicionais de esquerda.

A necessidade de articular luta por reconhecimento e luta por produção- redistribuição parece que não passou despercebido por alguns sindicalistas brasileiros. Especialmente quando sublinham que as diferenças entre coletividades pode servir à sociabilidade existente e esta mesma sociedade pode (re)produzir formas de distinção, mesmo opressivas, que contribuem para sua manutenção. Por isso, o racismo serve a um triplo propósito: político, pois divide aqueles que poderiam se unir para lutar contra a forma de discriminação e preconceito que vivenciam na vida cotidiana; econômico, pois serve para estabelecer formas de exploração diferenciadas; cultural, pois tende a estigmatizar identidades sociais vistas como indesejáveis.

As diferenças raciais (...) apóiam e são apoiadas pelo capitalismo e desnudam a essência do racismo: um instrumento de superexploração econômica, de controle social e, no limite, legitimador do genocídio do povo negro brasileiro [(Resoluções do 5 Congresso Nacional da CUT). CUT, 1994, p. 127].

Finalmente, as necessidades da luta política cotidiana, nem sempre permitem para os agentes políticos imediatamente envolvidos tenham uma maior precisão analítica, resultado esse que apenas pode ser atingido como produto de maior e mais ampla formação teórica e política sobre os problemas sociais, processo que neste particular não prescinde da dimensão prática.

Se nos documentos consultados não encontrei uma definição de raça, como se disse antes, ausência que decorre, talvez, de uma escolha política

deliberada, o mesmo não se pode dizer acerca dos grupos e coletividades. O documento abaixo, por exemplo, trabalha com a idéia de grupos raciais, mas, como se sabe e se disse, estes não existem, ou melhor, grupos raciais apenas existem no interior de uma ideologia racial. Parece que, por outras vias, talvez na ansiedade de promover a igualdade de oportunidade e tratamento, os ativistas sindicais recuperam a noção de ―raça‖ em termos essencialistas. A idéia de grupos raciais traz à mente um coletivo que é definido a partir de atributos e capacidades inatas. Sem desmerecer tal recuperação, ela parece de acordo com certas vertentes no interior do movimento negro que, especialmente durante os últimos trinta anos, tenderam a resgatar a noção de ―raça‖ e atribuir-lhe outro sentido político. Em outros termos, parece-me que a finalidade é subverter o reconhecimento denegado atribuído à própria noção de raça:

O debate acerca da necessidade de políticas que promovam igualdade de oportunidade e de tratamento entre os grupos raciais ganha especial realce no momento em que o concerto das

nações se prepara para a 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, programada para o próximo mês de setembro, na África do Sul (CUT/Força Sindical/SDS/CGT/INSPIR, 2001, p. 01 – Grifo JBS).

De tudo que se disse acerca de racismo, preconceito e discriminação é necessário sublinhar ainda um conjunto de pesquisas que pretende ressaltar a particularidade da forma de classificação racial brasileira em comparação especialmente com os E.U.A e a África do Sul.