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Se as ciências humanas, no Brasil, já possuem uma significativa tradição de estudos sobre o racismo, o preconceito e a discriminação, e sobre sua articulação com a problemática das classes sociais, então se poderia presumir que a forma como as entidades sindicais trataram o problema tivesse sido objeto de amplas e aprofundadas pesquisas no país. No entanto, uma leitura preliminar dos trabalhos publicados é suficiente para desfazer tal expectativa. Os textos oscilam de um tom de denúncia à ausência de interesse dos sindicalistas pelo racismo, preconceito e discriminação no mercado e nas entidades sindicais (NOGUEIRA, 1996), ou realizam queixas e reclamações sobre doenças ocupacionais que têm afetado, sobretudo, trabalhadores negros em indústrias siderúrgicas (BENTO, 1996); outros versam sobre a possibilidade de implantação da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nos municípios (SILVA Jr., 1996). Todavia, cabe ressaltar, um conjunto diversificado de estudos que têm mostrado as desigualdades no mercado e nos locais de trabalho entre brancos e negros, como já foi mencionado no capítulo anterior.

Bento (2000) destaca que, a não ser pela exposição de intenções e manifestações contrárias à discriminação, não existe programas efetivos nos sindicatos que tenham a discriminação e o preconceito, ou seja, o reconhecimento denegado, como preocupação. Por isso, com algumas exceções, reina o silêncio e o não conhecimento por parte das lideranças sindicais dos problemas relacionados ao racismo, abordados quase sempre desvinculados das questões de classe. Na origem deste comportamento está a crença segundo a qual a unidade da classe trabalhadora deve ser preservada, o que implica pensar esta unidade como sinônimo de todo social, e este é concebido como uma totalidade homogênea. Por trás dessa concepção, porém, aparece o temor de que as particularidades e diferenças provoquem a divisão e, por conseguinte, o enfraquecimento do movimento operário.

Então, o que faz os sindicatos e as centrais sindicais direcionarem seus olhares para o racismo, o preconceito e as discriminações experimentadas pelos negros no mercado e locais de trabalho? Primeiro, a profusão de dados estatísticos confirmando a existência de desigualdades e discriminações sobre negros e mulatos; segundo, a redução do número de sindicalizados impõe às lideranças sindicais a incorporação de novas demandas, tais como: meio ambiente, saúde, gênero, cidadania, racismo preconceito e discriminação raciais (BENTO, 2000). Estas iniciativas buscam recuperar a influência e a legitimidade social do movimento sindical duramente atingido pelo processo de reestruturação

produtiva107 capitalista, afetando os processos de trabalho e a política estatal, pela adoção das políticas de caráter neoliberal,108 especialmente durante a década de 1990.

Assim,

A crise de valores e de legitimidade do sindicalismo fertiliza o terreno para a discussão da diversidade e dos direitos sociais da totalidade dos trabalhadores, criando uma oportunidade para a construção e consolidação de políticas antidiscriminatórias, compreendidas como parte indissolúvel da luta pela afirmação dos direitos humanos e pela conquista da justiça social (BENTO, 2000, p. 334).

Como será discutida adiante, a luta contra o reconhecimento denegado dado pelo racismo, preconceito e discriminação no interior particularmente da CUT, e posteriormente na Força Sindical, seguiu, de um modo geral, o caminho da luta por direitos; especialmente, porque procurou privilegiar a associação desta problemática com a cidadania e a luta por direitos em detrimento do problema das classes sociais e da construção de um projeto político alternativo à ordem social existente. Neste sentido, tanto a CUT e quanto a Força Sindical circunscreveram – e circunscreve ainda hoje – a luta contra o reconhecimento denegado expresso

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O processo de reestruturação capitalista afeta de modo desigual os conti ngentes de trabalhadores: qualificados, semiqualificados e trabalhadores manuais, brancos e negros, homens e mulheres. De fato, sobre estas especialmente, os efeitos têm sido mais perversos, com o predomínio do trabalho informal, em t empo parcial, a domic ílio, mal pago e sem direitos trabalhistas: ―Este quadro afeta de forma direta os trabalhadores e trabalhadoras em nível mundial, considerando-se as trans formações produtivas e a flexibilização das relações de trabalho. Mas também aqui é preciso considerar o enfoque de gênero, pois tais processos geram c onseqüências diferentes para as mulheres, ampliando sua presença no merc ado de trabalho informal, em domicílio e a tempo parcial. Há um grande contingente de trabalhadores no mercado informal, sem garantia dos direitos trabalhistas, onde a maioria é composta de mulheres. Em escala mundial, o que constatamos é um processo acentuado de feminização da pobreza‖ [(Resoluções da 10ª Plenária Nacional da CUT). CUT, 2002, p.118].

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Sobre o impacto das políticas de teor neoliberal sobre a ação sindical, ver, especialmente, as contribuiç ões de BOITO Jr., 2002, 1999; GALVÃO, 2002; TRÓP IA, 2002.

pelo racismo à lógica da cidadania. Parece não ser outro o sentido desta concepção: ―a melhor perspectiva para o movimento sindical é comprometer-se

com as lutas mais amplas. As políticas sociais devem estabelecer a relação entre sindicato e cidadania‖ (NOGUEIRA, 1996, p. 212).

Este tipo de concepção sugere, mesmo assim, que as afirmações segundo as quais o movimento sindical não compreendeu o caráter estratégico da relação discriminação/trabalho por dois motivos essenciais: primeiro, devido à sua origem, porque concebeu, e concebe, a constituição da classe trabalhadora a partir da vinda de imigrantes europeus109, desconsiderando, com isso, a influência e a importância dos negros escravizados para composição da classe trabalhadora brasileira;110 Segundo, devido à distância da interpretação produzida pela

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Esta concepção estava difundida não só entre os ativistas sindicais. Alguns estudos clássicos de sociologia do t rabalho também veicularam esse tipo de compreensão da formação da classe trabalhadora brasileira. Na formação do operariado paulista, por exemplo, algumas pesquisas, para compreendê-lo de modo mais aprofundado, dividiram-no em duas fases (RODRIGUES, 1966). A primeira – de 1900 a 1930 –, diz res peito ao fluxo migratório de trabalhadores estrangeiros para o trabalho nas lavouras de café. Para estimular este processo foram criadas casas e instituições financiadas pelo Estado e pelo capital agrário, a fim de at rair para o B rasil estes imigrantes. A motivação, para tal orientação das elites agrárias, era baseada na crença que a força de trabalho nacional disponível apresentava níveis de produtividade e, portanto, lucratividade inferior aos imigrantes estrangeiros; aliado a isto, a situação nos país es de origem destes imigrantes, sobretudo italianos, espanhóis e portugueses, não era das melhores. Na Itália, por exemplo, a situação do camponês piorava a cada dia, segundo Gramsci a alta do preç o do pão e o tributo pago pelos camponeses aos grandes proprietários de terra do Sul degradava ainda mais o nível de vida no campo (GRAMS CI, 1987). Portanto, será justamente entre os italianos que a propaganda das vantagens nas condições de trabalho nas fazendas brasileiras surtirá maior efeit o e será relativamente a nacionalidade que mais contribuirá para constituição do moderno operariado brasileiro. A segunda fase – de 1930 até 1964 –, será marcada pelo emprego de mão-de-obra nacional, em detrimento dos trabalhadores de origem estrangeira. E sta mudança se explica, primeiro pelo refluxo do processo migratório externo; segundo, pelo increment o da migração interna - devido à estagnaç ão das ec onomias na agricultura, o que provocava uma abundante oferta de trabalho, oriunda de áreas pouco desenvol vidas.

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Parece que este entendiment o não faz parte do universo político-ideológico das principais sindicais brasileiras no período mais recente, ao menos é o que se depreende da passagem a seguir: ―um dos principais desafios postos para a 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo e para a própria sociedade brasileira refere-se à imperiosa necessidade de reparar os danos materiais e morais causados pelo tráfic o transatlântico e a escravização de 4.000.000 de seres humanos e de seus descendentes. O Estado bra sileiro nasce sob a égide do escravi smo e não há riqueza

esquerda e a realidade da população, especialmente da classe trabalhadora de origem negra (NOGUEIRA, 1996). O caráter estratégico da relação discriminação/trabalho parece, pelo que se viu, se reduzir apenas à conquista da cidadania, pois esta relação é evidenciada para demonstrar a debilidade do ―Estado de direito‖ no Brasil e para mostrar a ignorância e omissão do movimento sindical no combate ao racismo:

A histórica ausência do movimento sindical no combate ao racismo atualmente vem sendo superada. No entanto, é forçoso admitir que o movimento sindical já contribuiu para a reprodução e a perpetuação das desigualdades de raça e gênero. O não- reconhecimento de que a desigualdade racial constitui um problema estrutural da sociedade brasileira permitiu que o movimento viesse construindo uma cidadania fragmentada (NOGUEIRA, 1996, p. 220).111

Aqui cabe sublinhar que se os estudos sobre gênero revelaram que a classe trabalhadora tem dois sexos, processo que possibilitou desvelar as várias formas de opressão que atingiam, e atingem, a mulher trabalhadora112 – processo

nem bens acumulados ne ste país que não tenham direta ou indiretamente se beneficiado do trabalho e do sangue dos africanos e scravizados e seus descendentes. Não obstant e, o

paradoxo é que aquela parcela de nossa população que mais trabalhou para engrandecer este país seja exatamente a parcela sob a qual recaem as piores mazelas de nossa sociedade.‖ (CUT/Força Sindical/SDS/ CGT/INSP IR, 2001, p. 03 – Grifo JBS).

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Recentement e, especialmente, a CUT parece ter adquirido maior consciência da nova agenda política que vem desafiando o movimento sindical no sentido de abarcar novas demandas, problemas e reivindicações: ―Ao mesmo tempo, agregamos à agenda sindical o combate ao trabalho infantil, ao trabalho escravo, à discriminaç ão racial, e à luta por um Sistema Público de Emprego, com os sindicatos e a CUT atuando mais diret ament e com os desempregados por meio da Central de Trabalho e Renda de Santo André, dos Laborat órios de Desenvolvimento Sustentados e S olidários da CNM/SNM/CUT, e atuando também nos setores mais marginalizados da sociedade brasileira por meio da Agência de Desenvolvimento S olidário. Nossa mobilização contra o trabalho infantil e o trabalho escravo, como a Marcha Mundial contra o Trabalho Infa ntil e a Marcha Zumbi dos Palmares, conseguiu pautar a agenda governamental e obrigá -lo a algumas ações concretas. A vançamos também na inserção da questão de gênero no cotidiano dos sindicatos e demais instâncias da Central‖ [(Resoluções do 7º Congresso Nacional da CUT). CUT, 2000, p. 25].

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De fato, a organiz ação política das mulheres no interior da CUT é um dos primeiros e mais evidentes sinais da desconfiança dos ativistas sindicais acerca do tradicional entendimento da classe trabalhadora como conjunto homogêneo, cujo desdobrament o é uniformizar o tipo de

que permitiu sublinhar uma forma particular de opressão e discriminação entre os trabalhadores –, parece-me igualmente importante destacar que a classe trabalhadora possui negros, brancos, descendentes de asiáticos, italianos, portugueses, poloneses etc. como forma de conferir relevo às matrizes culturais diversas que se combinaram para formar a sociedade brasileira. Neste sentido, o objetivo que pretendo atingir é ressaltar como as diversas clivagens presentes na classe trabalhadora podem contribuir para ampliar o universo de interlocução do movimento sindical – ao contrário de fragmentar e, portanto, enfraquecer a luta dos trabalhadores. Além disso, as clivagens de gênero, étnicas e de geração113 podem contribuir para entendermos as várias formas de configuração da classe trabalhadora no mundo contemporâneo e, como a partir delas, é possível ou não criar práticas políticas alternativas para enfrentar de forma renovada a problemática das classes sociais. Ademais, os estudos no interior da sociologia do trabalho têm dado pouca atenção às lutas contra o racismo, o preconceito e a discriminação raciais no interior do sindicalismo brasileiro. Isto significa dizer que as lutas contra o reconhecimento denegado dentro do sindicalismo brasileiro, opressão e não rec onhecimento experimentado pelo indivíduo no seu cotidiano: ―Divisão sexual do trabalho e relações sociais de gênero: A trajet ória da organização das mulheres nos movimentos sociais aponta como elemento importante a noção de divisão sexual do trabalho, o que permite perceber a construção social dos papéis exercidos pela mulher no espaço dito ―natural‖‖– a família, e cujos traços têm determinado a desigualdade da mulher na sociedade. Esta noção possibilita melhor compreender a forma como se dá a exclusão da mulher no mercado de t rabalho, dado o

reconhecimento do fardo de acumular o papel de t rabalhadora responsável pela reprodução da

força de t rabalho – como a tarefa principal; e a responsabilidade pesada, porém invisível e não

reconhecida, do trabalho doméstico" [(Resoluções da 10ª Plenária Nacional da CUT). CUT, 2002,

p.112 – Grifo JBS].

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Gramsci, ao analisar o aumento da média de vida na França, destaca estes elementos: ―as velhas gerações vão estabelecendo uma relação cada vez mais anormal com as jovens gerações da mesma cultura nacional, e as massas trabalhadoras acusam uma presença cada vez maior de imigrantes estrangeiros que modificam a sua base. Verifica -se já, como na América, certa divisão do trabalho (ofícios qualificados, para os nativos, além das funções de direção e organização; ofícios não-qualificados para os imigrados )‖ (GRAMSCI, 1989, p. 391).

apesar das importantes iniciativas das centrais, não têm despertado grande interesse dos estudiosos brasileiros.

Do que se disse até o momento parece-me necessário recuperar, mesmo que em traços largos, como o moderno movimento sindical brasileiro emerge na cena política nacional exigindo direitos sociais e políticos além de ganhos salariais. Farei isso para evidenciar que as interpretações sobre esse ressurgimento dos trabalhadores pautaram-se pelo dilema entre reconhecimento e produção-redistribuição ou, em outras palavras, a luta por direitos/dignidade ou a luta contra o arrocho salarial.

3.2 – Novo

sindicalismo

e

o

dilema

produção-