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3.2 Condição juvenil: trabalho precoce, trajetórias de escolarização e sociabilidade

3.2.3 As desigualdades de escolarização nos meios populares

A qualidade do ensino básico público constitui um dos maiores problemas enfrentados por estudantes oriundos das classes populares aspirantes ao ensino superior. Sob o discurso da democratização do acesso ao ensino, esconde-se a face perversa da desigualdade de condições de escolarização e acesso ao saber que se estrutura ao longo da vida. O relato de Kim Xavier apresenta importantes elementos para esta reflexão:

[...] na cidade que eu vivo nem tinha escola particular e só tinha uma escola de ensino médio. Seria interessante para eu ter estudado na particular ou ter me preparado de alguma forma, no ensino médio, para prestar vestibular, essas coisas. Mas, não tinha escola particular. [...] nas instituições públicas, o ensino tem muitas falhas e aí, o aluno, quando eu peguei na prova do vestibular mesmo, que eu fiz, tinha questões que eu nunca tinha nem estudado. Referentes à química, biologia, porque são oferecidas muito poucas aulas no ensino médio. Duas aulas de química e física. Então, tinha questão do vestibular que eu nunca tinha estudado. (Kim Xavier, 22 anos)

A ampliação do quantitativo de vagas e a progressiva extensão da obrigatoriedade do ensino médio, conforme preconiza a Lei No. 9394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional29- implicou um aumento do número de jovens na escola, mas não significou ampliação do acesso ao conhecimento. A este respeito, Dayrell (2007) avalia que, no contexto da massificação do ensino médio, a relação dos jovens pobres com a escola expressa uma nova forma de desigualdade social: do acesso aos recursos para a sua subjetivação. Para esse autor a escola, que poderia ser um dos espaços para o acesso a esses recursos, não o faz. Ao contrário,

“gera a produção do fracasso escolar e pessoal”30.

29 No Título III da referida Lei, “Do Direito à Educação e do Dever do Estado”, art. 4º, a educação escolar pública está preconizada como dever do Estado, mediante a garantia de: “2. Progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio”.

30 A análise de Dayrell (2007) tem por base as relações estabelecidas entre juventude e escola em contextos eminentemente urbanos. Todavia, entendemos que essa análise é perfeitamente viável se referida a contextos como o dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, onde coexistem o rural e o urbano. A este respeito, SILVA Jr. e NETTO (2011, p.56) ponderam que “ao longo da história da educação brasileira a educação dos grupos menos favorecidos fora negligenciada pelo Estado e seus mandatários, e pôde-se perceber que no meio rural isso se manifestava de maneira mais intensa. Como marca de uma educação liberal, mesmo sobre a chancela do signo ‘para todos’, a maior parcela da humanidade esteve historicamente à margem do processo educacional, e no Brasil não foi diferente”.

Um agravante dessa questão31 em regiões como a dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

– onde o rural e o urbano coexistem em relação de extensão e complementariedade – foi e é “a

histórica marginalização do meio rural nos processos de elaboração e implementação das

políticas educacionais brasileiras” (SILVA Jr. e NETTO, 2011). Aliado a este aspecto,

destacamos a transposição precária do modelo educacional urbano a contextos como o dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, que se revelam no número de escolas públicas que oferecem o ensino fundamental e o ensino médio completo, na formação e valorização do corpo docente, na taxa de crianças que frequentam o ensino fundamental na série adequada, na taxa de adolescentes que frequentam o ensino médio na série adequada, nos índices de evasão destes níveis de ensino, na qualidade dos recursos didáticos disponíveis, na oferta e qualidade do transporte escolar, dentre outros.

O relato de Aline ilustra a condição de estudantes que se submetem ao trânsito diário entre as zonas rural e urbana ou que migram para as cidades para concluírem seus projetos de escolarização sem garantias de que encontrarão, na escola, adequadas condições de acesso ao conhecimento.

No meu ensino fundamental, início, eu estudei na roça mesmo. Só que lá não tinha pré [escola]. A gente já começava direto na primeira série. Depois eu fui estudar num distrito, a partir da quinta série até a oitava série. Depois eu tive que me mudar, porque lá não tinha ensino médio.

[...] não tinha o ensino médio lá no distrito, lá na roça que eu morava. Aí, como não tinha o ensino médio, tinha muita gente que era igual eu, sabe... não tinha informação, não buscava nada... aí então pararam por ali. Eu fui para Novo Oriente, porque eu queria continuar pelo menos o ensino médio. (Aline, 22 anos)

A partir do relato de Aline podemos refletir sobre o contingente de jovens residentes na zona rural que interrompem seus processos de escolarização em virtude da falta de informações, de precárias condições de deslocamento, de difíceis condições de articulação trabalho/escola e, até mesmo, pelo desinteresse provocado por uma educação distanciada da sua realidade social e regional32.

31Referimo-nos ao ensino básico público.

32 Os problemas da educação no Brasil são muitos, mas, no meio rural, a situação é mais complexa. Os currículos dessas escolas, geralmente, têm dado ênfase aos direitos básicos da cidadania e, portanto, de uma vida digna, reduzida aos limites geográficos e culturais da cidade, negando-se a reconhecer o campo como um espaço social e de constituição de identidades e sujeitos (SILVA Jr.; NETTO, 2011, p. 48)

Faleiros (2008, p. 66), em escrito intitulado “Juventude: trabalho, escola e desigualdade” pondera que “a desigualdade de capitais de origem ou de partida não oferece as mesmas chances aos jovens”. Segundo dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, no Vale

do Mucuri, em 2010, a expectativa de anos de estudo aos 18 anos era, em média, 8,5 anos e, no Jequitinhonha, 8,9 anos. Esse índice é referente ao número médio de anos de estudo que uma geração de crianças a qual ingressa na escola deverá completar ao atingir 18 anos de idade, caso os padrões atuais se mantiverem ao longo de sua vida escolar (ATLAS BRASIL, 2013). Isso quer dizer que, nas atuais condições de escolarização, a maior parte da atual geração de crianças dos Vales do Mucuri e do Jequitinhonha está sujeita a não concluir nem o ensino médio. O Atlas também traz indicadores da Taxa de Frequência Líquida no Ensino Médio33 que, no Jequitinhonha, é de 39,81% e, no Mucuri, de 35,53%. No Ensino Superior, esta taxa34 cai para 5,85% no Mucuri e 5,83% no Jequitinhonha, bem abaixo da média estadual, que é de 14,97%. Conforme Faleiros (2008), essas condições desiguais assemelham-se a uma “corrida com barreiras na qual se manifestam, de forma marcante, além da desigualdade de capital e renda,

as condições de etnia, cor, gênero e território”. Os dados apresentados dão-nos a mostra de que

dentre aqueles que “correm ao sinal de largada”, milhares esbarram nos obstáculos ao longo do trajeto, que será mais longo ou mais curto dependendo dos dispositivos e disposições a que têm acesso.

Para aqueles que ultrapassam essas barreiras, a desigualdade revela-se também nas condições de funcionamento das escolas. Além da precariedade da estrutura física e do

funcionamento das escolas, há “carência de professores, desmotivação dos profissionais, laboratórios e bibliotecas fechados” (LEÃO, 2011, p. 106;107). Referindo-se à realidade do Pará, o mesmo autor faz menção a uma “pedagogia da precariedade”:

[...] na sua materialidade a escola é precária em si, mas também porque alimenta entre os jovens estudantes o sentimento de que seus projetos de vida têm que ser ‘curtos’, moldados na provisoriedade e na incerteza, principalmente entre os jovens com menos recursos econômicos. (LEÃO, 2011, p. 106;107)

33 “Razão entre o número de pessoas na faixa etária de 15 a 17 anos frequentando o ensino médio regular seriado e a população total dessa mesma faixa etária multiplicado por 100. As pessoas de 15 a 17 anos frequentando a 4ª série do ensino médio foram consideradas como já tendo concluído esse nível de ensino” (ATLAS BRASIL, 2013). 34 “Razão entre o número de pessoas na faixa etária de 18 a 24 anos frequentando o ensino superior (graduação, especialização, mestrado ou doutorado) e a população total dessa mesma faixa etária multiplicado por 100” (ATLAS BRASIL, 2013).

Essa análise de Leão (2011) reitera as ponderações de Sposito e Galvão (2004, p. 348)

de que “a máxima ‘educação para cidadania’” dá margem a práticas nem sempre compatíveis

com este princípio. O acesso ao conhecimento é muito desigual e a qualidade dos recursos educacionais de que dispõem os jovens destas regiões interfere no modo como estes jovens avaliam as possibilidades de ingresso no ensino superior35 e as executam36. No que diz respeito aos jovens da nossa pesquisa, se por um lado os processos de escolarização apresentaram-se deficitários (especialmente no que diz respeito aos seus anseios de acesso ao ensino superior), por outro a escola contribuiu significativamente na construção e vivência da sua condição juvenil.